Liminar assegura a advogada cega o direito de peticionar em papel

A advogada Deborah Maria Prates Barbosa, inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil seccional do Rio de Janeiro (OAB-RJ), impetrou o MS em seu próprio favor, a fim de restaurar seu direito de exercer a advocacia com liberdade e independência, sob o argumento de que o PJe está inacessível aos deficientes visuais, por encontrar-se fora das normas internacionais de acessibilidade na web. Deborah Prates questiona ato praticado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que negou o peticionamento em papel, considerado por ela como inconstitucional.O ministro Ricardo Lewandowski, no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), deferiu liminar no Mandado de Segurança (MS) 32751, a fim de garantir a possibilidade de uma advogada cega apresentar petições, em papel, até que os sites do Poder Judiciário tornem-se completamente acessíveis em relação ao Processo Judicial Eletrônico (PJe).
A advogada afirmou que a Recomendação 27/2009, do CNJ, determina
que sejam tomadas as providências cabíveis para remoção de quaisquer barreiras
que pudessem impedir ou dificultar o acesso das pessoas com deficiência aos
bens e serviços de todos os integrantes do Poder Judiciário. Ressaltou, ainda,
que uma Resolução do CNJ instituiu o peticionamento eletrônico “sem, contudo,
ter garantido às pessoas com deficiência amplo e irrestrito acesso aos sites”.
“O conteúdo dos sites não está codificado, de modo que os leitores de tela dos
deficientes visuais não podem ler/navegar nos portais”, completou.
Deferimento
Ao deferir a liminar, o ministro Ricardo Lewandowski determinou
ao CNJ que assegure à impetrante o direito de peticionar fisicamente em todos
os órgãos do Poder Judiciário, a exemplo do que ocorre com os habeas corpus,
até que o processo judicial eletrônico seja desenvolvido de acordo com os
padrões internacionais de acessibilidade, “sem prejuízo de melhor exame da
questão pelo relator”, no caso, o ministro Celso de Mello.
“Ora, a partir do momento em que o Poder Judiciário apenas
admite o peticionamento por meio dos sistemas eletrônicos, deve assegurar o seu
integral funcionamento, sobretudo, no tocante à acessibilidade”, destacou o
ministro. Para ele, “continuar a exigir das pessoas portadoras de necessidades
especiais que busquem auxílio de terceiros para continuar a exercer a profissão
de advogado afronta, à primeira vista, um dos principais fundamentos da
Constituição de 1988, qual seja, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da
CF)”.
De acordo com o ministro, a preocupação dos constituintes foi a
de assegurar adequada e suficiente proteção às pessoas portadoras de
necessidades especiais. Ele citou os artigos 3º, IV; 5º; 7º, XXXI; 23, II; 37,
VIII; 203, IV e V; 208, III; 227, II, parágrafo 2º, 244, todos da Constituição
Federal. O ministro destacou ainda que o Estado tem a obrigação de adotar
medidas para promover o acesso das pessoas portadoras de necessidades especiais
aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, “sobretudo de forma
livre e independente, a fim de que possam exercer autonomamente sua atividade
profissional”.
MEDIDA CAUTELAR EM MANDADO DE SEGURANÇA 32.751 DISTRITO
FEDERAL
RELATOR :MIN. CELSO
DE MELLO
IMPTE.(S) :DEBORAH MARIA PRATES BARBOSA
ADV.(A/S) :DEBORAH MARIA PRATES BARBOSA
IMPDO.(A/S) :CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ
ADV.(A/S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
Trata-se de mandado de segurança, com pedido de medida
liminar,
impetrado por Deborah Maria Prates Barbosa contra ato
praticado pelo
Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
Preliminarmente, a impetrante requer o benefício da
gratuidade da
justiça por não possuir capacidade financeira para
custear as despesas
legais relativas à propositura da presente demanda sem
o prejuízo
próprio e do sustento da família.
No mérito, narra que ajuizou medida administrativa
junto ao CNJ
com o objetivo de dar cumprimento à Recomendação
27/2009 do próprio
Conselho, a qual determina
“fossem
tomadas as providências cabíveis para a remoção de
quaisquer barreiras que pudessem impedir e/ou
dificultar o acesso das
pessoas com deficiência aos bens e serviços de todos
os integrantes do
Poder Judiciário”.
Argumenta que seu objetivo, assegurado na Convenção
sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (Art. 9º), foi de
restaurar o direito de
exercer a advocacia com liberdade e independência, uma
vez que o
processo judicial eletrônico é totalmente inacessível
às pessoas com
deficiência visual, pois não foi elaborado com base nas
normas
internacionais de acessibilidade web (Consórcio W3C).
O Presidente do CNJ indeferiu, todavia, o pleito
urgente formulado,
sob o argumento de que a necessidade de auxílio de
terceiros da
Supremo Tribunal Federal
Documento assinado
digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura
de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil. O
documento pode ser
acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob
o número 5214827.
MS 32751 MC / DF
advogada para o envio de petições eletrônicas não
configuraria dano
irreparável a ser preservado.
Irresignada, a impetrante propõe o presente mandamus,
sob o
fundamento de que a decisão do CNJ viola seu direito
líquido e certo de
acessibilidade aos sistemas e tecnologias da informação
e comunicação do
Poder Judiciário.
Argumenta, para tanto, que o Conselho editou ato
normativo
impondo que todas as petições e outros procedimentos
judiciais sejam
feitos eletronicamente, “sem, contudo, ter garantido às pessoas com deficiência
amplo e irrestrito acesso aos sites”.
Acrescenta, nessa linha, que
“os sites
não foram construídos conforme determinam as
normas internacionais de acessibilidade web, valendo
dizer sem a
obediência ao Consórcio W3C. Logo, o conteúdo dos sites
não está
codificado, de modo que os leitores de tela dos
deficientes visuais NÃO
podem ler/navegar nos portais”.
Por essas razões, requer o deferimento da liminar para
o fim de
conceder à impetrante o direito de permanecer
peticionando em papel até
que os sites do Poder Judiciário fiquem acessíveis, de
acordo com as
normas internacionais de acessibilidade web (Consórcio
W3C).
Fundamenta o periculum
in mora no fato de que está impedida de
exercer
a advocacia por meio do processo judicial eletrônico
hoje existente.
É o relatório necessário.
Decido.
Inicialmente, defiro o pedido de justiça gratuita, eis
que presentes os
requisitos legais.
Examinados os autos, tenho que o caso é de deferimento
da medida
liminar.
Como é cediço, o Poder Judiciário de todo o País vem a
cada ano
buscando aprimorar a informatização do processo
judicial. Nesse sentido,
o CNJ tem tido uma atuação de destaque com o objetivo
de, por meio de
sistemas informatizados modernos e eficazes, tornar o
processo judicial
mais célere como garante o art. 5º, LXXVIII, da
Constituição Federal.
Na mesma esteira, esta Suprema Corte, por exemplo,
passou a
adotar a forma eletrônica como única maneira de
protocolizar as peças
no Tribunal, conforme dispõem os arts. 19 e 20 da
Resolução 427/2010, in
verbis:
“Art. 19
As seguintes classes processuais serão recebidas e
processadas, exclusivamente, de forma eletrônica:
I – Ação Direta de Inconstitucionalidade;
II – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão;
III – Ação Declaratória de Constitucionalidade;
IV – Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental;
V – Reclamação;
VI – Proposta de Súmula Vinculante;
VII – Ação Rescisória;
VIII – Ação Cautelar;
IX – Habeas Corpus;
X – Mandado de Segurança;
XI – Mandado de Injunção;
XII – Suspensão de Liminar;
XIII – Suspensão de Segurança;
XIV – Suspensão de Tutela Antecipada.
Art. 20 Os pedidos de habeas corpus poderão
ser
encaminhados ao STF em meio físico, caso em que serão
digitalizados
antes da autuação, para que tramitem de forma
eletrônica”.
Como se nota, a única exceção à obrigatoriedade de
peticionamento
eletrônico no STF é para o ajuizamento de habeas corpus,
que, embora
admitido o seu ingresso por meio físico, será
convertido em meio
eletrônico.
Ora, a partir do momento em que o Poder Judiciário
apenas admite o
peticionamento por meio dos sistemas eletrônicos, deve
assegurar o seu
integral funcionamento, sobretudo, no tocante à acessibilidade.
Ocorre que isso não vem ocorrendo na espécie. Conforme
narrado
na inicial deste writ, o processo judicial eletrônico é totalmente
inacessível
às pessoas com deficiência visual, pois não foi
elaborado com base nas
normas internacionais de acessibilidade web.
Dessa forma, continuar a exigir das pessoas portadoras
de
necessidades especiais que busquem auxílio de terceiros
para continuar a
exercer a profissão de advogado afronta, à primeira
vista, um dos
principais fundamentos da Constituição de 1988, qual
seja, a dignidade
da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).
Além disso, tal postura viola o valor que permeia todo
o texto
constitucional que é a proteção e promoção das pessoas
portadoras de
necessidades especiais. Destaque-se, verbi gratia,
o contido nos seguintes
dispositivos:
“Art. 3º
Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil:
(…)
IV - promover
o bem de todos, sem preconceitos de
origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
Art. 5º Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e
rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XXXI - proibição
de qualquer discriminação no
tocante a
salário e critérios de admissão do trabalhador portador de
deficiência;
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios:
(…)
II - cuidar
da saúde e assistência pública, da proteção e
garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Art. 37. A administração pública direta e indireta de
qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte:
(…)
VIII - a lei reservará percentual dos cargos e
empregos públicos
para as pessoas
portadoras de deficiência e
definirá os critérios de
sua admissão;
Art. 203. A assistência social será prestada a quem
dela
necessitar, independentemente de contribuição à seguridade
social, e
tem por objetivos:
(…)
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de
deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal à
pessoa portadora
de deficiência e ao
idoso que comprovem não
possuir meios de prover à própria manutenção ou de
tê-la provida por
sua família, conforme dispuser a lei.
Art. 208. O dever do Estado com a educação será
efetivado
mediante a garantia de:
(…)
III - atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los
a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e
opressão
(…)
II - criação de programas de prevenção e atendimento
especializado para as pessoas portadoras de deficiência física,
sensorial ou mental, bem como de integração social do
adolescente e do
jovem portador de deficiência, mediante o treinamento
para o trabalho
e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e
serviços coletivos,
com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de
todas as formas de
discriminação.
§ 2º - A lei disporá sobre normas de construção dos
logradouros
e dos edifícios de uso público e de fabricação de
veículos de transporte
coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas
portadoras de
deficiência.
Art. 244. A lei disporá sobre a adaptação dos
logradouros, dos
edifícios de uso público e dos veículos de transporte
coletivo
atualmente existentes a fim de garantir acesso
adequado às pessoas
portadoras de deficiência, conforme o disposto no art. 227, § 2º”
(grifos meus).
Como se percebe, a preocupação dos constituintes foi a
de assegurar
adequada e suficiente proteção às pessoas portadoras de
necessidades
especiais. Não por outra razão, o Brasil é signatário
da Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, promulgada
pelo Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009.
Especificamente quanto ao tema da acessibilidade aos
sistemas
eletrônicos, dispõe a referida Convenção:
“1. A fim
de possibilitar às pessoas com
deficiência viver
de forma independente e participar plenamente de todos os aspectos
da vida, os Estados Partes tomarão as medidas
apropriadas para
assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em
igualdade de
oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico,
ao transporte, à
informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias
da informação e comunicação, bem como a outros serviços e
instalações abertos ao público ou de uso público,
tanto na zona urbana
como na rural. Essas medidas, que incluirão a
identificação e a
eliminação de obstáculos e barreiras à acessibilidade,
serão aplicadas,
entre outros, a:
2. Os Estados Partes também tomarão medidas
apropriadas
para:
(…)
g) Promover
o acesso de pessoas com deficiência a novos
sistemas e tecnologias da informação e
comunicação, inclusive
à Internet””
(grifei).
Assim, é de se ter em conta a obrigação de o Estado
adotar medidas
que visem a promover o acesso das pessoas portadoras de
necessidades
especiais aos sistemas e tecnologias da informação e
comunicação,
sobretudo de forma livre e independente, a fim de que
possam exercer
autonomamente sua atividade profissional.
Entendo, portanto, presentes a plausibilidade das
alegações contidas
na inicial e, também, o periculum in mora.
Isso porque a exigibilidade de
peticionamento eletrônico como única forma de acesso ao
Poder
Judiciário, sem que os sistemas tenham sido elaborados
com base nas
normas internacionais de acessibilidade web, impede o
livre exercício
profissional da impetrante.
Isso posto, defiro
o pedido liminar a fim de determinar
ao CNJ que
assegure à impetrante o direito de peticionar
fisicamente em todos os
órgãos do Poder Judiciário, a exemplo do que ocorre com
os habeas corpus,
até que o processo judicial eletrônico seja
desenvolvido de acordo com os
padrões internacionais de acessibilidade, sem prejuízo
de melhor exame
da questão pelo Relator sorteado.
Comunique-se, solicitando-se informações.
Dê-se ciência à Advocacia-Geral da União para que,
querendo,
ingresse no feito (art. 7º, II, da Lei 12.016/2009).
Após, ouça-se a Procuradoria Geral da República.
Publique-se.
Brasília, 31 de janeiro de 2014.
Ministro RICARDO
LEWANDOWSKI
Vice-Presidente no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal
Link: http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=259216
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