As faces ocultas da terceirização: Uma “mix” de velhos textos e
novas ideias
1. Uma explicação necessária
Esse artigo
não é exatamente inédito. Em grande parte, reproduz trechos já escritos e
publicados pelo autor. Aproveita especialmente o artigo “Terceirizando o Direito” e, em dose menor, o
texto “A terceirização revisitada”. No entanto, procura deixar mais clara a
essência do problema e traz algumas colocações novas.
2. Superando a contradição
Desde as suas origens, o
capitalismo vem tentando superar uma contradição que ele mesmo criou: a de ter
de reunir para produzir, sem poder
evitar os efeitos unificantes dessa
reunião.
Como sabemos, foi a fábrica,
basicamente, quem agregou os trabalhadores, viabilizando o sindicato; e foi o
sindicato quem forjou – direta ou indiretamente - o Direito do Trabalho,
opondo-se aos excessos do sistema.
Mesmo em países como o Brasil, a
pressão existiu[1]; e,
ainda que menos forte, foi levada em conta, pois o que se quis – entre outras
coisas - foi evitar que o sindicato
nascente ameaçasse a estrutura de poder.
Além disso, mesmo as normas que
trouxemos da Europa chegaram banhadas de sangue. Assim, de um modo ou de outro,
o sindicato esteve sempre presente – não
importa muito quando ou aonde
E a construção do Direito do
Trabalho não se deu, é claro, de uma só
vez, nem apenas formalmente. Ao longo dos tempos, a pressão operária não só
continuou a produzi-lo, de variadas maneiras, como lhe adicionou uma sanção
paralela – a greve - aumentando um pouco
sua efetividade - sempre desafiada e precária.
Hoje, essa contradição parece
estar sendo superada, e uma das razões
mais importantes é exatamente a terceirização. E isso é fácil de ver, se
analisarmos as suas duas espécies.
É que, em nosso país, a palavra
“terceirização” tem sido usada em dois sentidos, ou para duas situações
diferentes: a) quando a empresa externaliza suas etapas de produção; b) quando
a empresa internaliza trabalhadores alheios.
A primeira forma evoluiu em
meados do século XX, na indústria de automóveis, e hoje, como sabemos,
espalha-se por quase todos os lugares.
Já a segunda faz sucesso há menos tempo, embora tenha origens ainda mais
remotas: basta lembrar, por exemplo, que
na Grécia antiga já se alugavam escravos para o trabalho nas minas.
Enquanto a primeira forma de
terceirizar – ao lançar para fora etapas
do ciclo produtivo - fragmenta objetivamente os trabalhadores, a segunda os divide também subjetivamente, opondo terceirizados a
empregados comuns.
Assim, pelo menos em termos de
tendência, já se pode pensar em produzir sem reunir, e até mesmo em reunir sem unir. Os trabalhadores estão
menos juntos nos dois sentidos – físico e emocional ou psíquico.
E a consequência se faz presente
no Direito do Trabalho, que é um Direito diferente
- pois como opõe os que têm aos
que não têm os meios de produção,
está sendo sempre tensionado, e depende em boa dose da força coletiva.
Assim, em todo o mundo,
praticamente, as fontes materiais do Direito do Trabalho vão se tornando menos presentes
- e isso quando o próprio conteúdo de
suas matérias não se inverte. Além disso, o grau de efetividade decresce.
Em outras palavras: depois de
expropriar os trabalhadores dos modos de produzir e de defender suas vidas, o
capital os expropria dos meios de produzir e defender suas leis.
Antes, a mesma fábrica – grande,
vertical, homogeneizadora – que explorava os homens também lhes permitia,
paradoxalmente, reduzir a exploração. Se de um lado dividia o trabalho, ao
mesmo tempo somava os trabalhadores.
Nesse sentido, talvez se possa
concluir até que a alienação produzida pela linha de montagem atuava como fator
favorável à luta coletiva, na medida em que o empregado podia encontrar no sindicato
a identidade, o orgulho e a satisfação que o trabalho lhe sonegava.
É verdade que essa hipótese parece
incompatível com a realidade brasileira,
onde o sindicato viveu, por muito tempo, atrelado ao Estado; mas mesmo esse
atrelamento, na prática, nunca foi absoluto, e por isso não impediu
experiências libertárias – como as que criaram as centrais sindicais, só para
citar um exemplo.
Mas o que importa mesmo é notar
que as relações de trabalho vêm sofrendo
uma profunda transformação. Hoje, a fábrica se dissolve – repartindo-se - e desse modo se resolve, pois vai
dissolvendo também os encontros,
tanto físicos quanto subjetivos. Mesmo quando o trabalho se recompõe, tornando-se
menos dividido, os trabalhadores já não se somam como antes.
Por tudo isso, a terceirização
não é apenas o que parece ser. Mais do que uma nova técnica de estruturar a
empresa, ou de produzir de forma flexível, ou de enfrentar a concorrência,
ou mesmo de reduzir os custos (como a
acusam tantas vezes com razão), ela esconde uma estratégia de poder.
Ela enfraquece, corrompe e –
tendencialmente – até elimina o sindicato, pelo menos enquanto inventor e
sancionador de um verdadeiro Direito Social[2];
e assim, por extensão, também
enfraquece, corrompe e (no limite) pode até eliminar esse mesmo Direito, pelo
menos enquanto meio importante de
redistribuir riquezas.[3]
No entanto, há outro ponto - essencial - que às vezes passa despercebido:
quando se trata da dignidade do
trabalhador, no sentido mais profundo da expressão, as duas formas de
terceirizar podem gerar efeitos distintos.
É o que tentarei mostrar mais
além.
3.Para diferençar as duas formas
Vimos que numa das formas de
terceirização a empresa leva para fora
etapas de seu ciclo produtivo; ao passo que na outra traz para dentro trabalhadores alheios.
Se atentarmos para o lugar onde essas duas formas de
terceirização em geral se desenvolvem, podemos chamar a primeira de externa e a segunda de interna. Mas ainda que adotemos essa
terminologia – como faremos aqui - é preciso admitir que a diferença
relacionada com o lugar é relativa.
De fato, pode acontecer – mesmo
por exceção - que a empresa externalize
etapas de seu ciclo produtivo, mas suas parceiras atuem na mesma planta,
num único ambiente – como ocorre em algumas fábricas de automóveis. Outras vezes, inversamente, a empresa
internaliza empregados de outra, mas esses trabalhadores permanecem fora dela –
como é o caso de alguns call-centers.
Assim, para entender melhor as
diferenças e os significados das duas
formas de terceirização, talvez seja interessante voltarmos a uma velha e sábia
lição de Olea, ao comparar o trabalho por conta própria com o trabalho por
conta alheia[4].
No trabalho por conta própria, o
produto pertence ao trabalhador do início ao fim do processo produtivo. O
artesão faz o seu cesto de vime e só num segundo momento o transfere – se
quiser – para as mãos do comprador.
Já no trabalho por conta alheia,
o produto vai passando imediatamente para o empresário, em tempo real, na medida
em que está sendo fabricado. É como se, pouco a pouco, o cesto do artesão fosse
escorrendo de suas mãos e encontrando as mãos do outro.
Pois bem. A terceirização
externa, como dizíamos, lembra o trabalho por conta própria. Uma empresa
contrata a outra, mas o que lhe interessa é o produto final. Por isso, só ao
término da produção passa a ter propriedade sobre ele. Já a terceirização
interna se articula com o trabalho por conta alheia.
4. O digno e o indigno nas duas formas de terceirizar
Considerada em si mesma, a primeira espécie de terceirização – que faz a
empresa se organizar em rede - não é mais nem menos aviltante do que
qualquer outra forma de trabalho por conta alheia. Em princípio, para o
operário, não faz diferença trabalhar para quem fabrica parafusos ou para quem
se serve deles para montar geladeiras.[5]
Vista essa mesma questão sob o
ângulo da empresa, não há diferença de fundo entre duas fábricas, cada qual
especializada num certo tipo de relógio – de pulso ou de parede, por exemplo –
e entre duas outras, cada qual produzindo uma parte do mesmo tipo de relógio – seja a pulseira, o mecanismo ou o
vidro. Aliás, nas atividades mais complexas
– como na indústria de aviões ou de computadores – chega a ser quase impensável a produção inteira a cargo
de um único fabricante.
É verdade que a precariedade
tende a aumentar na medida em que se
avança para as últimas malhas da rede. E isso não só porque as parceiras costumam ser cada mais
frágeis, como porque são menos visíveis –
a tal ponto que as situadas nas bordas mais distantes podem se esconder
até nos porões de um velho prédio ou num fundo de quintal.
Nesse caso, então, o que a grande
empresa não pode fazer, a pequena faz por ela: paga pouco, sonega direitos,
usa máquinas velhas e perigosas, ignora
normas de prevenção de acidentes. E tudo isso, naturalmente, barateia os
contratos: a pequena passa a ter condições de cobrar da grande um preço menor
pelas peças que fabrica.
Ora, ao pagar um preço menor, a
grande empresa se faz cúmplice das práticas aviltantes da pequena. E esse aviltamento,
imposto indiretamente pela primeira, pode se tornar verdadeira condição de
sobrevivência da segunda, que trava uma luta de morte com outras candidatas a parceiras.
Esse fenômeno, ao recrudescer,
trouxe de volta realidades que pareciam em declínio – como o trabalho escravo
ou infantil; e pôs em contato, em relação de simbiose, empresas de ponta com fazendas ou oficinas
clandestinas.
Essa mistura - do grande com o
pequeno, do velho com o novo, do robô com o operário, do empregado de avental
branco com o lavrador descalço ou o imigrante sem papéis – pode sugerir uma transição
entre dois modelos; estaríamos, assim, vivendo um presente ainda impreciso, a
meio caminho entre o passado e o futuro. Mas também é possível concluir,
inversamente, que o novo modelo é exatamente isso, essa mistura, o que
indicaria que o futuro já chegou.
De todo modo, como eu dizia, esse
modo de organizar a empresa – se considerado em si mesmo - nada tem
de particularmente degradante. Por mais
que seja recorrente, a precariedade é
circunstancial. Não compõe necessariamente
o modelo. Aliás, aqui ou ali, a situação
pode até se inverter, como acontece ou acontecia (só para citar um exemplo
famoso) na chamada “Terceira Itália”[6].
Por isso, nessa forma de
terceirização, é possível corrigir certos efeitos, pelo menos do ponto de vista do homem
trabalhador, visto individualmente. Basta aplicarmos o art. 2º §2º da CLT, que
trata do grupo econômico, com os cuidados de elastecermos o conceito de grupo e
de concluirmos pela presença de um empregador único.[7]
Permanece, é verdade, aquele outro efeito, relacionado com o
coletivo. Quanto mais a empresa se parte, mais ela reparte objetivamente a
classe operária, ainda que cada segmento possa se manter subjetivamente unido.
Mas essa é uma realidade com a qual o sindicato e o próprio Direito devem
aprender a conviver, pois não se pode esperar que uma fábrica de bicicletas
produza desde os seus pneus até as peças do câmbio ou o plástico do pisca pisca, e menos ainda que uma
fábrica de cervejas também produza bicicletas.
Já na segunda forma de
terceirizar, repito, as coisas são bem diferentes. O que se produz, aqui, não
são parafusos ou geladeiras, mas o próprio trabalhador. Ele se coisifica
da maneira mais completa possível. O empregador já não compra ou aluga
simplesmente a força de trabalho; aluga
o trabalhador por inteiro – ossos,
cérebro, músculos - e em seguida o
subloca a outra empresa, ganhando na diferença de preço.
Por adquirir uma segunda natureza
– a de coisa – esse homem pouco se identifica com o outro - o empregado da tomadora - mesmo estando ao
seu lado. À maneira dos antigos escravos ou das vacas de uma fazenda, ele tem a
sua marca, que é também o seu estigma.
Por igual razão, ele está livre
para ser negociado como um cacho de bananas e largado sem cerimônia num ou
noutro galpão, à espera de alguém que o recicle. E não apenas é descascado de sua condição humana, como
também está sujeito, por isso mesmo, a ser jogado no lixo rua com muito mais
naturalidade[8].
Esse homem-coisa se sente
diminuído aos seus próprios olhos, pois
não é – sequer minimamente – dono de seu destino. E se é verdade que num
caso ou noutro pode acabar se habituando a essa nova condição, é difícil saber
o que seria mais trágico.
Dizem[9]
que na Itália, onde o emprego doméstico
ainda é pouco comum, muitas famílias deixam seus cachorros na rua quando viajam
nas férias de agosto; na volta, simplesmente compram ou recolhem
outros, e assim vão vivendo, de férias em férias, de cachorro em cachorro. Essa
situação não lembra a do terceirizado?
É verdade que a relação de
emprego comum também carrega traços de
mercadoria. Mas essa natureza mercantil está presente mais na força de trabalho
do que no trabalhador considerado em si mesmo – por mais que não se possa
dissociá-los por completo.
Assim é que nas entrevistas de
seleção, por exemplo, ao menos lhe informam aonde irá trabalhar, não costumam
despejá-lo aqui ou ali, sem preaviso, e exploram a sua energia em razão do que ela produz. Não o alugam
como faz um sitiante quando o vizinho lhe pede o trator; não ganham dinheiro negociando o seu
corpo, como age o cafetão com as mulheres da vida. E isso faz
toda a diferença.
Embora a empresa que cede o
trabalhador não possa legalmente lhe cobrar qualquer taxa, [10] é
evidente que o faz - por vias travessas
- ao encurtar seu salário. Aliás, não fosse assim, seria mesmo inviável
terceirizar, pois não haveria de onde
extrair o lucro. Não é preciso ser economista para concluir que é exatamente
essa diferença que explica o processo, em termos econômicos.
Mas não é só. Essa prática opõe
trabalhadores a trabalhadores, degradando o próprio grupo, enquanto classe. O
terceirizado ambiciona o cargo do empregado comum – e este sente o risco de se
tornar terceirizado. Um despreza ou inveja o outro; ao menos em potência,
disputam este bem valioso e escasso que é o emprego mais seguro e mais
valorizado socialmente. Assim - e de um modo mais intenso do que nunca - a empresa consegue externalizar para a classe
operária a própria lógica da concorrência.
Pois bem. Vimos que alguns dos efeitos
perversos da primeira forma de terceirizar -
os que afetam diretamente o trabalhador – podem ser neutralizados pela
lei. No caso, a lei seria especialmente o art. 2º § 2º da CLT, que trata do
grupo econômico.
Já os da segunda, não. A menos, é
claro, que venha a ser proibida. E isso poderia ser feito até mesmo sem lei
específica, já que se trata de trabalho indigno, e a Constituição assegura
exatamente o oposto[11]. No
entanto, o contexto político conspira contra a solução jurídica.
Ora, é impossível conviver com a
terceirização sem conviver também com sua natureza coisificante. Se, na terceirização externa, o trabalho indigno (mesmo existindo com frequência) é
circunstancial, na interna compõe a própria essência do modelo. Dai por quê ela sempre precariza – seja qual for o salário ou a condição de saúde
do trabalhador. A menos, é claro, que se reduza o conceito de indignidade ou de
precarização.
E a mesma conclusão nos serve se
a analisarmos do ponto de vista da fraude.
Em geral, quando nos deparamos
com uma terceirização, só falamos em fraude quando a empresa trai os fins da norma. Mas a grande fraude, na
verdade, é a própria terceirização. Ela está
contida na própria norma que a prevê.
Como já observava, essa prática degrada não só os terceirizados, e nem apenas os
trabalhadores em geral – o que já seria muito - mas o
próprio Direito do Trabalho como um todo. Nesse sentido, falar em
“terceirização fraudulenta” chega a ser redundante.
Por tudo isso, se não se quer ou
não se consegue proibir essa forma de terceirizar, o que
se pode combater, basicamente, é
apenas o salário menor, as condições
ambientais piores ou a representação
sindical mais frágil - o que está
longe de ser tudo, mas também está
longe de ser pouco.
E é possível também, reduzir o
número de suas vítimas – inserindo limites e condições para que se possa
terceirizar. Na verdade, é exatamente isso
o que faz – de forma importante, a meu ver - a Súmula no. 331 do TST.
Naturalmente, como dizem os
chineses, tudo ou quase tudo na vida tem o seu lado yin e o seu lado yang, e
é possível ver naquela Súmula uma forma de legitimar a onda terceirizante,
reforçando o processo de flexibilização. E é inegável que – até certo ponto –
isso realmente acontece.
Mas prefiro ver as coisas de
outro modo. A onda é realmente forte, mas foi também por isso que o Direito –
como filho do sistema - teve de se compor com ela. E é nessa postura – quase
humilde – que ele mostra sua inteligência, pois minimiza os estragos e introduz
uma cunha – ou contradição – na nova arquitetura que o sistema tenta construir.
E essa cunha é tão relevante que tem provocado as fortes investidas do bloco conservador não só junto ao
Congresso Nacional – a exemplo do recente PL n.
4330 – como no Supremo Tribunal Federal. Na verdade, são táticas
diferentes para viabilizar a mesma estratégia.
Não custa insistir que mesmo com
os atuais critérios persistem a indignidade e a fraude, além de uma
discriminação tão grande, e ao mesmo tempo tão naturalizada, que a respiramos
sem sentir, como fazemos com o ar. Mas
sem aqueles critérios,
naturalmente, a situação se
agravaria muito mais.
Em favor da terceirização,
costuma-se argumentar, no plano político ou econômico, que só assim a indústria
nacional se tornará competitiva. Mas o argumento prova demais, pois a ser assim
deveríamos então eliminar todo o
Direito do Trabalho, pois dessa forma nem a China nos alcançaria...
Na verdade, como diz um expert em Administração de Empresas[12],
a busca da qualidade total – nela incluída a redução de custos – é um processo
que não tem fim. A redução dos patamares sociais só ajuda a
provocar novas comparações e em seguida novas reduções.
Em desfavor da Súmula n. 331 do
TST, costuma-se criticar sobretudo o critério de distinção que separa as
atividades-meio das atividades-fim. Seria discriminatório e artificial,
causando incertezas.
Ora, a verdadeira – ou maior –
discriminação é a que segmenta o universo operário, opondo terceirizados a não
terceirizados em geral. Se (ainda) não é viável, concretamente, impedi-la, a
solução encontrada pela jurisprudência não diminui – mas ao contrário, aumenta
- de importância.
Quanto ao critério em si, sabemos
todos que a atividade é fim quando se relaciona em linha reta não só com o
objeto da atividade empresarial, mas com a própria causa que deu origem à empresa – seja ela fabricar relógios ou
divulgar conhecimento. E para os casos
de fronteira – que não são muitos - basta aplicar o princípio jurídico da
interpretação mais favorável ao trabalhador.
A hipótese dos call-centers pode se encaixar aí. A
lei permite a terceirização “inerente” a
esta atividade. Mas como já fez notar a Ministra Rosa Maria, hoje abrilhantando
o STF, os dicionários dão àquela palavra
vários sentidos, que vão do essencial
ao pertinente. Se adotarmos, como
devemos, o benefício da dúvida, teremos de concluir que “inerente”, no caso,
significa apenas “pertinente”.
Ora, sendo assim, devemos inferir
que a lei mantém o critério da Súmula. Ou seja: só pode haver terceirização na
atividade meio. Aliás, é o que também recomenda um princípio ainda mais
importante, e que não é apenas do Direito do Trabalho – o princípio da
dignidade humana.
Pois bem. A atividade da
operadora de call center é fim, e não
meio. Como certa vez ponderou a Ministra Maria Calsing, do TST, o atendimento
ao cliente é previsto enquanto obrigação da empresa até pelo Código do
Consumidor. No mínimo, teremos aqui, mais uma vez, dúvida razoável, que atrai o
princípio do in dubio pro operario.
Na verdade, a importância de se
restringir a terceirização em atividade fim pode ser percebida até pela forte
pressão contrária exercida pelas empresas que terceirizam.
4. Algumas palavras a mais sobre o Direito do Trabalho
Ao longo de sucessivas décadas, o
Direito do Trabalho foi se construindo em torno de um projeto. Nos anos gloriosos, que pareciam não ter
fim, a idéia era fazer de todo homem um empregado e de todo empregado um
consumidor – redistribuindo rendas e realimentando o ciclo produtivo.
Hoje, o Direito do Trabalho sofre
fortes pressões contrárias, inclusive
ideológicas; e tende a ser – como acontece, em dose menor, com outros ramos
jurídicos – muito mais reativo, pragmático, circunstancial. Em tempos de poucos
sonhos e bandeiras, o seu próprio projeto entra em crise, o que o faz ser
questionado por dentro.
Nesse novo contexto, infelizmente,
a (re)construção desse importante ramo jurídico passa a depender não
apenas do jogo de forças entre o capital
e o trabalho, mas de iniciativas isoladas
de atores que nem sempre avaliam o que pode acontecer.
Aliás, num tempo como o de hoje,
parece que tudo pode acontecer: para
o bem e para o mal, as idéias correm livres, soltas e leves, como as folhas que
os ventos arrancam das árvores. Ligam-se apenas circunstancialmente a um ou
outro argumento, que esconde quase sempre uma aspiração econômica.
Até certo
ponto, essa aspiração parece estar em sintonia com os movimentos de rua, com as
relações humanas em geral e com a própria crise da regra jurídica. Em todos os
lugares, respira-se, hoje, um clima de maior liberdade, que acaba potencializando
o credo neoliberal – pois também a empresa exige ser leve, livre e solta,
desgarrada das amarras jurídicas.
No entanto, a
aparente sintonia não pode justificar o fim das amarras, já que – no plano das
relações laborais – a desigualdade de forças não só continua, como se
aprofunda. Hoje, ainda mais do que antes, mantém-se atual a visão de Lacordaire,
segundo a qual “entre o fraco e o forte,
entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta”.
A propósito, observa com razão
Mauricio Godinho Delgado[13]
que o País vai bem, em ambiente de quase pleno emprego; e não há nada – nem
mesmo no plano econômico – que justifique propostas para ampliar as
terceirizações.
E na verdade o risco é ainda
maior do que parece.
À primeira vista, as
consequências seriam apenas de ordem quantitativa. Haveria uma transformação crescente e massiva de empregados comuns em terceirizados,
como se o mundo do trabalho fosse
invadido pelo virus da peste.
Até onde se pode ver, esse
cenário, realmente, parece provável. E os efeitos para os terceirizados seriam
provavelmente catastróficos, não só em relação aos direitos trabalhistas, em
sentido estrito, como no tocante à saúde e à segurança no trabalho.
Mas as vítimas não seriam apenas
eles, por mais numerosos que fossem. Seriam também os outros, os remanescentes,
pois aumentaria a pressão geral, para
baixo, sobre os salários e condições de trabalho – potencializando a competição e o medo.
Mais ainda do que isso, porém,
todo o Direito do Trabalho sofreria um abalo. E até as subjetividades sofreriam
transformações.
De fato, num contexto assim, de
autêntica e generalizada marchandage,
qual sentido assumiria o princípio da proteção? E quais outras criaturas
estranhas não entrariam depois por aquela porta? Como fazer valer a CLT, se até uma pequena lei, ou uma simples
súmula, for capaz de desafiar e até de ridicularizar a própria essência do
Direito do Trabalho? Qual seria a postura dos novos juizes, ao aplicar as
antigas normas, se até mesmo o trabalho indigno se naturalizaria, a ponto de se
tornar uma regra jurídica?
E como evitar novas investidas
aviltantes se o Direito do Trabalho, em última análise, estaria todo impregnado
e deturpado pela idéia da terceirização? Como pretender que o sindicato atue, ajudando a criar e a reforçar o Direito
estatal, se esse mesmo Direito conspira contra ele? O que esperar desse novo
trabalhador – em seus variados papéis de empregado, pai de família ou cidadão
que constrói seu país – se ele se vê ou se sente não como homem inteiro, mas
como um homem-coisa, que pode até acabar
se habituando com isso?
São questões para se pensar.
(*).
Professor na Pós-Graduação da PUC-Minas.
[1] Cf. a
propósito BIAVASCHI, Magda. Direito do
Trabalho no Brasil: 1930-1942. São Paulo: LTr.
[2] Como o
chamava, entre nós, o grande Cesarino Júnior.
[3] A propósito
dessa função do Direito do Trabalho, cf. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de
Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2012, passim.
[4] Olea,
Alonso. Introdução ao Direito do Trabalho. Coimbra: Alamedina, 1965, passim.
[5] É
verdade que às vezes o valor que a sociedade confere ao produto acaba se
refletindo no valor que ela confere ao produtor, ou seja, ao trabalhador.
Assim, por exemplo, o operário que trabalha numa fábrica de computadores tende
a ser mais valorizado do que o mecânico de uma oficina de conserto de
geladeiras, ainda que ambos possam ter baixa qualificação. Mas o fato de uma
empresa externalizar parte de sua produção não conduz, necessariamente, a uma
depreciação do trabalho executado pelos empregados de suas parceiras.
[6] A
expressão ganhou fama por volta dos anos 90, quando começaram a surgir no norte
daquele país empresas pequenas, sofisticadas e altamente especializadas, muitas
delas voltadas para a exportação, e que
forneciam elementos para as grandes. No início, o fenômeno foi visto por alguns
sociólogos como a antecipação de uma realidade que se tornaria globalmente
presente.
[7] Como se
sabe, há duas interpretações possíveis em relação àquele artigo. Pode-se
entender, de um lado, que a solidariedade das empresas do grupo é apenas passiva, ou seja, para efeito de pagar
créditos do empregado, ou que também é ativa,
ou seja, para efeito de cobrar dele o trabalho, o que as tornariam – todas –
empregadoras.Em outras palavras, haveria um empregador aparente (o contratante
formal) e um empregador real ((o proprio
grupo). Neste último sentido sinaliza (com alguma reserva) a Súmula 129 do TST.
[8] O
descarte constante de pessoal só não acontece assim no setor público, de vez
que, como sabemos, as empresas se sucedem e os trabalhadores permanecem.
[9] Relato
da amiga Lorena Vasconcelos Porto, brilhante Procuradora do Trabalho.
[10] Essa
proibição está explícita na lei do trabalho temporário.
[11] Pode-se
também acenar com a aplicação do
princípio que veda o retrocesso, tão bem exposto por Daniela Muradas (O
princípio da vedação do retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr,
2010).
[12] Salvo
engano, Chiavenatto.
[13] Em
conferência no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, dia 27 de setembro
de 2013, quando foi homenageado.
(*) Márcio Túlio Viana, ex-Magistrado do Trabalho,
aposentado, jurista e atualmente professor na Pós-Graduação da PUC-Minas
(Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais).
Nenhum comentário:
Postar um comentário