Ricardo
Antunes: A servidão involuntária
Desde os primórdios da humanidade a
luta pela dignidade do trabalho tem sido prometeica. No Brasil, se o trabalho
indígena foi um exercício comunal, a saga europeia do colonizador nos impôs o
trabalho compulsório, inicialmente dos aborígenes e depois dos africanos.
Com a abolição da escravatura, o
imigrante branco foi escolhido para o mundo industrial, excluindo-se os negros
que povoavam a produção rural. E o trabalho negro, especialmente o das
mulheres, foi empurrado para o emprego doméstico, perpetuando a herança servil
da nova casa-grande urbana.
Foi a partir de 1930 que a modernização
capitalista do país obrigou, depois de décadas de lutas operárias, a se pensar
em uma legislação social protetora do trabalho.
De modo conflituoso e contraditório,
nasceu a CLT, que tinha a aparência da dádiva, mas resultava de uma real
impulsão operária. Converteu-se na verdadeira constituição do trabalho no
Brasil, ainda que seus direitos excluíssem os assalariados do campo.
Hoje estamos à frente de um novo
vilipêndio em relação aos direitos do trabalho, cujo significado e consequência
têm requintes comparáveis à escravidão, ainda que em sua variante moderna.
Descontentes com os direitos conquistados pela classe trabalhadora, neste
contexto de crise, os capitais exigem a terceirização total, conforme consta do
projeto de lei nº 4.330/04, agora rebatizado no Senado como projeto de lei da
Câmara nº 30/2015.
Em nome da falaciosa "melhoria da
qualidade do produto ou da prestação de serviço", o projeto elimina de uma
só vez, a limitada disjuntiva existente entre atividades-meio e atividade-fim.
Uma empresa poderá recorrer a outra,
para contratar trabalhadores, eliminando a relação direta entre empregador e
assalariado. Como na escravidão. Neste passe de mágica, todas as modalidades de
trabalho poderão ser terceirizadas. Até os pilotos de aeronaves.
Com um Congresso lépido e faceiro nas
práticas negociais, impulsionado pela lógica volátil do capital financeiro, uma
nova servidão involuntária está sendo urdida.
Dinheiro gerando mais dinheiro, na
ponta fictícia do sistema financeirizado global e respaldado em uma miríade de
formas pretéritas de trabalho (precarizado, flexibilizado, terceirizado,
informalizado, "cooperado", escravo e semiescravo) na base da
produção.
As falácias presentes no projeto de lei
são todas conhecidas: em vez de criar empregos, ela desemprega, uma vez que os
terceirizados trabalham mais tempo e ainda percebendo menores salários.
Em vez de "qualificar" e
"especializar", temos o contrário, pois são nas atividades
terceirizadas que se ampliam ainda mais os acidentes, as mutilações, os
adoecimentos, os assédios, as mortes e os suicídios. Basta lembrar a indústria
petrolífera e de energia elétrica.
Assim, o projeto de lei da Câmara não
quer regulamentar os terceirizados, mas de fato desregulamentar o trabalho em
geral. Se o quisesse, era só alterar seu o artigo 2º, eliminando a
possibilidade de terceirização em "qualquer de suas atividades" e
mantendo a regulamentação dos terceirizados que atuam nas atividades-meio.
Simples assim, mas isso desmascara o real objetivo do famigerado projeto de
lei.
O que motiva os seus defensores é de
fato a redução salarial, de custos e de direitos da totalidade da classe
trabalhadora, pejotizando ainda mais as relações de trabalho.
Já está mais do que hora de dizer –em
alto e bom som– que a terceirização avilta o trabalho em todas as suas formas e
deve, por essa razão, ser combatida por todos.
É preciso acrescentar, porém, que o que
está na pauta hoje é o risco iminente da terceirização total, inclusive das
atividades-fim, que deve ser obstada para que não se gere ainda mais trabalho
aviltado.
RICARDO ANTUNES, 62, é professor
titular de sociologia da Unicamp. É autor de "Riqueza e Miséria do
Trabalho no Brasil III" (Boitempo) e de "The Meanings of Work"
(os sentidos do trabalho), publicado na Índia pela editora Aakar Books
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