O estadista solitário
por Mino Carta — publicado 20/07/2015 02h35
O reformador
Bergoglio recupera a palavra de Cristo e o valor da Caridade, que se tornaram
letra morta em largos momentos da história da Igreja
Osservatore Romano/AFP
A
família Goulart visita João XXIII em 1962 e, talvez sem querer, antecipa
Morales
Papa Francisco é
hoje em dia o único, grande estadista de dimensões mundiais, reformador
determinado, corajoso, inspirado. Óbvio nele o propósito de reparar os males
provocados à Igreja Católica pelos pontificados de João Paulo II e Bento XVI,
dignos da politicagem e da devassidão das
cortes papais da Renascença e responsáveis por uma conspícua evasão de fiéis. A
par disso, entretanto, é ele quem se ergue contra o que define como a “ditadura
sutil” imposta à humanidade pelo poder do dinheiro,
para aprofundar vertiginosamente o abismo entre ricos e pobres.
Ao escolher seu nome
no momento de tomar assento na cadeira de Pedro, o jesuíta Bergoglio deu um
claro indício dos rumos desejados para sua ação, como se a cultura própria da
ordem de Inácio de Loyola se aliasse ao despojamento cristão do Pobrezinho de
Assis, para assinalar o retorno à palavra de Cristo, pregador do amor ao próximo
como fonte da igualdade, ideia revolucionária illo tempore até o nosso
presente.
Como escreveu Ronald
A. Knox em seu Enthusiasm, a Chapter in the History of Religion, a
crença de que “o primeiro período da Igreja foi uma idade do ouro” revelou-se
bastante questionável. De fato a pretensão de manter intacta a lição de Cristo
foi frequentemente geradora de desvios e equívocos, cismas e heresias. De certa
forma, papa Francisco, como Paulo de Tarso, emite sua Epístola aos Coríntios
(nada a ver com os torcedores corintianos), sobretudo na passagem que diz
respeito à Caridade, a mais importante entre as virtudes teologais.
Corinto no século I
era cidade do mais desbragado meretrício, mesmo entre os católicos a
licenciosidade dominava, e o ex-soldado fulgurado por um raio divino a caminho
de Damasco cuidava de colocar no bom caminho a sua grei. As questões que a
Epístola de Paulo levanta são distantes das atuais, mas a Caridade é invocada
com energia, e a virtude se coaduna à perfeição com a pregação de Cristo.
Paulo é figura
controversa, como verdadeiro fundador de uma Igreja que ao longo dos séculos se
afastou das ideias de quem a apoiou sobre uma pedra chamada Pedro, acabou por
dividir com o Imperador do Sagrado Romano Império o poder do mundo, e assumiu
até as feições de monarquia mundana depois da doação do Castelo de Sutri pelo
rei longobardo Astolfo, no VIII século. Não foi por acaso que o papa coroou em
Roma Carlos Magno imperador, e alguns dos seus sucessores, e humilhou outro,
Henrique III.
O papa tornou-se dono
de toda a Itália central, impediu a unificação do país e a criação de um Estado
Nacional até a segunda metade do século XIX, e, sempre que se sentiu ameaçado,
não hesitou em pedir socorro aos reis europeus e seus exércitos, de sorte a
garantir a divisão da península. A palavra de Cristo foi letra morta, em
benefício do mais duradouro poder temporal por direito divino em dois milênios.
Ao cuidar de sua
grei, papa Francisco tem de redimir a Igreja dos seus pecados, e neste sentido
há de se mover sua modernização, para o entendimento das dinâmicas
desencadeadas pela melhor compreensão da natureza e da evolução humana ao sabor
do conhecimento. E ainda, e sempre, pela tolerância, mais ainda, pela
misericórdia, na medição dos limites do ser humano, de resto determinados pelo
Criador, segundo quem acredita, e tão pouco respeitados por quem até ontem
mandou urbi et orbi.
Com Francisco, ocorre
o retorno à ideia da igualdade, contra o neoliberalismo em pleno vigor e contra
a miséria que resulta dele, em proveito da felicidade terrena de banqueiros,
especuladores e rentistas, diante da passividade, ou mesmo da resignação de
quantos haveriam de se opor. A viagem papal pela América Latina confirma e
fortalece a postura do estadista, bem como a contrariedade daqueles que, além
dos expoentes da Cúria Vaticana finalmente tirados de cena, a linha papal
constrange e ameaça.
Um colunista nativo
clama contra “a monstruosidade herética” com que Evo Morales, “protoditador da
Bolívia”, presenteou “o argentino Bergoglio”: um Cristo “que suja as mãos com o
sangue de 150 milhões de crucificados”. Mal sabe o colunista que em algum canto
do Vaticano está guardado outro emblema vermelho.
Regresso súbito ao
Brasil em 1961. Jânio renuncia e seu vice, João Goulart, é tido em odor de
comunismo pelos senhores da casa-grande e por seu porta-voz, a mídia nativa,
sempre alerta. Daí, fortes resistências, manu militari, à sua posse no
posto abandonado. Ao cabo, desenha-se o compromisso e Jango assume à sombra do
Parlamentarismo, pelo qual hoje se bate o senador José Serra. Um ano depois,
Jango, juntamente com esposa e filhos, Denize e João Vicente, visita João
XXIII, de muitos pontos de vista política e espiritualmente aparentado com
Francisco.
Uma caixa de madeira
forrada de veludo e ricamente entalhada é o presente de Goulart ao papa
Roncalli. João Vicente, incansável na evocação da figura paterna, ouviu de
Darcy Ribeiro uma história, publicamente divulgada em um livro (Invenção e
Descaminho, Editora Avenir, 1978). Autor da caixa, o marceneiro Manoel, o
qual, tempo depois da visita de Jango ao Vaticano, procurou Darcy, então chefe
do Gabinete Civil da Presidência, e confessou, não sem candura: “No fundo da caixa,
entalhei a foice e o martelo”. Comentaria Darcy, ao recordar: “Naquele palácio,
o único comunista era mesmo o seo Manoel”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário