Costa Rica
Brasileiro assume presidência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos
Em entrevista, Roberto Caldas
diz que profissionais da Justiça ainda desconhecem decisões da CIDH e espera
tornar a corte mais acessível
por
Alex Rodrigues, da Agência Brasil publicado 15/02/2016 09:03, última modificação 15/02/2016 11:54
Em entrevista, Roberto Caldas diz que profissionais
da Justiça ainda desconhecem decisões da CIDH e espera tornar a corte mais
acessível
Foto:
Dr. Roberto Caldas
Brasília – O juiz brasileiro
Roberto Caldas toma posse hoje (15) na presidência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos. Eleito para o cargo em novembro de 2015, o jurista
sergipano, de 53 anos – 30 dos quais de prática profissional – já responde pela
entidade desde o primeiro dia do ano, mas sua posse formal foi agendada para
coincidir com a inauguração do ano judicial interamericano e o período
ordinário de sessões de julgamento.
Entre as principais atribuições da
corte está zelar pela correta aplicação e interpretação da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos por todos os países que ratificaram o tratado, de 1969.
Cinco novos casos vão ser apreciados
pela corte entre os próximos dias 17 e 22. Entre eles, está a denúncia contra
suposta omissão do Estado brasileiro no chamado caso da Fazenda Brasil Verde,
que envolve indícios de trabalho análogo à escravidão em uma fazenda particular
do Pará, entre os anos 1980 e 2000. O governo brasileiro reconhece que houve,
no episódio, violações de direito trabalhista, mas nega que milhares de
trabalhadores tenham sido submetidos à servidão ou ao trabalho forçado, não
sendo, portanto, o caso de o país ser responsabilizado internacionalmente.
Em entrevista à Agência Brasil,
Roberto Caldas disse que planeja dar prioridade à divulgação das sentenças da
corte entre os operadores da Justiça (juízes, servidores, procuradores e
advogados) dos países que ratificaram a Convenção Americana Sobre Direitos
Humanos, texto aprovado em 1969, mas, segundo o juiz, pouco conhecido e aplicado
pelos profissionais de alguns Estados-partes, entre os quais o Brasil. “Várias
gerações foram formadas sem estudar direitos humanos e direitos
internacionais”, destacou.
Outros desafios, segundo ele,
serão incrementar o diálogo com a sociedade e equilibrar o orçamento da
corte, tentando convencer os países americanos a ampliar suas contribuições
para que não seja necessário suspender ou adiar projetos. Atualmente, mais da
metade dos recursos do tribunal são obtidos por meio de acordos de cooperação e
doações de países europeus.
A cerimônia de oficialização da posse,
em San José, na Costa Rica, começará às 13h30 (horário de Brasília) e
será transmitida ao vivo. Paralelamente, a corte promove também, a partir
desta segunda-feira, o seminário internacional Histórias e Perspectivas da
Corte Interamericana de Direitos Humanos em um Mundo Global. O objetivo é
debater as diferentes visões e perspectivas sobre a atuação do tribunal e dos
poderes judiciários nacionais, bem como os desafios em um mundo global. O
seminário também será transmitido no site da corte.
Entrevista: "Profissionais da
Justiça ainda desconhecem decisões da CIDH"
Com 30 anos de experiência
profissional, o sergipano Roberto Caldas, 53 anos, preside a Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) desde o começo do ano. Oficialmente,
porém, sua posse ocorre nesta segunda-feira (15), em San Jose, na Costa Rica,
onde funciona a sede da mais alta corte do sistema americano de promoção dos
direitos humanos, cuja principal atribuição é zelar pela correta aplicação
e interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos por todos os
países que ratificaram o tratado, de 1969.
Tendo advogado em casos ligados aos
direitos trabalhistas e sociais – inclusive perante o Supremo Tribunal Federal
(STF) –, Roberto Caldas atuou como juiz auxiliar nos três processos envolvendo
o Brasil que a CIDH julgou entre 2007 e 2010. Entre eles está o que atribuía ao
Estado brasileiro a responsabilidade por não ter apurado devidamente o
desaparecimento, a tortura e morte de guerrilheiros no Araguaia, na década de
1970. Na ocasião, Caldas declarou que os fatos apurados configuravam crimes de
lesa-humanidade, cujo julgamento a Lei da Anistia não podia impedir.
Indicado pelo governo brasileiro em
2013, com o apoio de entidades de classe e organizações sociais, ele foi eleito
juiz titular daquela corte, tornando-se o segundo brasileiro a ocupar o posto
desde a criação do órgão, em 1979. Após ocupar a vice-presidência do tribunal,
foi eleito para presidir a CIDH pelos próximos dois anos, repetindo a
trajetória do primeiro brasileiro a chegar à entidade, o jurista Antônio
Augusto Cançado Trindade (1995/2006).
Especialista em ética e direito
constitucional e ex-membro da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho
Escravo, Caldas se empolga ao falar sobre a importância da CDIH para a promoção
dos direitos humanos. Mesmo ao responder sobre as dificuldades orçamentárias da
entidade, que recebe mais recursos de países europeus do que dos próprios
Estados-membros americanos - uma ameaça no momento em que o Continente Europeu
se vê obrigado a mobilizar esforços para responder à crise humanitária
decorrente das ondas migratórias.
Caldas também espera colaborar para
tornar a corte mais acessível – hoje, só 1% das denúncias apresentadas à
comissão interamericana chegam ao julgamento da corte. Em entrevista
à Agência Brasil, o ritmo tranquilo de sua fala só se alterou quando
reconheceu que profissionais da Justiça do país ainda desconhecem decisões da
CIDH, que são obrigados a aplicar, e diante da polêmica em torno dos Estados
Unidos, que ignoram a Convenção Americana – único assunto sobre o qual se
furtou a opinar.
O juiz acredita que, com maior
visibilidade da CIDH, é de se esperar que mais organizações sociais
recorram ao tribunal contra o Estado brasileiro, conforme entrevista a seguir:
O senhor assumiu uma das sete cadeiras
da Corte Interamericana de Direitos Humanos em fevereiro de 2013, indicado pelo
governo brasileiro. Após ocupar a vice-presidência, o senhor foi eleito por
seus pares para presidir a entidade. Apenas um brasileiro [o jurista Antônio
Augusto Cançado Trindade] havia ocupado tais cargos antes. Há, para o Brasil,
alguma implicação política e prática dessa maior visibilidade na corte?
É relevante. É a cultura jurídica
brasileira que está sendo homenageada. Ainda que, a partir do ingresso na
corte, os juízes passem a ser considerados representantes interamericanos.
Perante o tribunal, o vínculo nacional de cada juiz deixa de existir. Apesar
de, atualmente, não podermos votar nos casos que envolvem nossos países de
origem. Há, inclusive, grande controvérsia em torno dessa decisão, adotada
antes de meu ingresso na corte, porque a própria Convenção Americana estabelece
que os vínculos nacionais não se mantêm após a nomeação.
Quais serão suas prioridades à frente
da corte?
Roberto Caldas – É muito
importante incrementarmos o diálogo com a sociedade e com os próprios
Estados-Membros da OEA [Organização dos Estados Americanos] – especialmente com
os Poderes Judiciários nacionais – para fortalecer e estruturar a corte como um
tribunal de nível superior. Cada julgamento da Corte Interamericana estabelece
um precedente de interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos, e a
maioria dos países adota essas decisões como normas legais equivalentes às suas
constituições. Por isso, o diálogo é importante para que as interpretações da
Corte Interamericana sejam aplicadas cotidianamente por todas as autoridades
dos Três Poderes nacionais.
Até recentemente, quase metade dos
recursos financeiros da corte vinha de doações de países europeus? Esta
situação persiste?
Roberto Caldas - Continua.
Entendemos que essa situação deve ser aperfeiçoada. A cooperação internacional
com países europeus ou de outros continentes deveria ser apenas para
aperfeiçoarmos alguns serviços e projetos, e não como acontece hoje, ser de
fundamental importância para o funcionamento da corte. Qualquer déficit
orçamentário deveria ser suprido pelos próprios Estados-Membros. Vamos nos
esforçar para que os Estados garantam recursos fixos ordinários a fim de que
não fiquemos dependendo de cooperação internacional ou renovação de convênios,
o que não é desejável para a independência e o funcionamento normal do tribunal.
E qual a expectativa orçamentária para
2016?
A partir das doações dos estados, a
Organização dos Estados Americanos deve nos repassar cerca de US$ 2.7 milhões.
Além disso, algo em torno de US$ 3 milhões normalmente vêm da cooperação
internacional. Nossa preocupação é que esse valor tende a diminuir, já que os
países europeus estão redirecionando seus recursos para enfrentar os reflexos
da onda migratória com que toda a Europa está lidando. Esse também é um grande
desafio. É importante que os estados americanos passem a dar o aporte
necessário para que a corte, que já opera com orçamento abaixo do necessário,
não deixe de realizar serviços fundamentais. Grande parte dos nossos serviços é
prestada por voluntários, o que está longe do ideal. Podemos ter que diminuir o
número de sessões de julgamento, o que resultaria em atraso na apreciação de
processos, entre outros problemas.
Quantas denúncias anuais, em média, a
Comissão Interamericana recebe, quantas ela encaminha para o julgamento da
Corte e quantas efetivamente são julgadas?
Roberto Caldas – A Corte tem
recebido da Comissão Interamericana, em média, cerca de 20 novos casos
contenciosos por ano. Eles são apresentados pela Comissão de julgamos, todos
eles. É preciso observar que a Corte é mais importante pela qualidade de suas
sentenças do que pela quantidade, já que cada decisão estabelece um precedente
a ser seguido por todos os Estados e não só pelo que é citado no processo. Eu
não saberia dizer agora o número exato, mas a comissão recebe em torno de 2 mil
denúncias anuais. Logo, é diminuto o número de casos que chegam à Corte.
É necessário e possível tornar esse
trâmite mais amplo e célere?
Roberto Caldas – Não há demora na
corte. Sempre podemos aperfeiçoar os trâmites, mas hoje, na corte, os casos são
apreciados entre 18 e 24 meses, em média, o que é uma duração bastante
razoável. Já na comissão, realmente, há uma certa demora, com alguns casos
ultrapassando 20 anos para serem analisados e remetidos para julgamento da
corte. A comissão já está enfrentando esse problema com vigor. Além disso, nos
últimos anos, incrementamos bastante o diálogo entre os dois órgãos.
Qual a implicação das normas
internacionais que o Brasil ratificou, como a Convenção Americana dos Direitos
Humanos, para as leis brasileiras? Um país sofre algum tipo de sanção quando
infringe esses tratados?
Após serem ratificadas por qualquer
país, as normas internacionais passam a ter o mesmo vigor, o mesmo peso das
leis locais do país. A Convenção Americana, também conhecida como Pacto de San
José, traz princípios fundamentais para a proteção e promoção dos direitos
humanos. Por isso, normalmente, equipara-se às constituições nacionais. No
Brasil, o patamar hierárquico da convenção continua em debate no STF [Supremo
Tribunal Federal], que discute se ela está em grau constitucional ou
infraconstitucional. De qualquer forma, ela é de vigência obrigatória, e todos
os operadores de Justiça têm obrigação de aplicá-la. Sua não aplicação pode
levar um país que a tenha ratificado a ser condenado na Corte Interamericana.
Os operadores da Justiça (juízes,
servidores, procuradores e advogados) brasileiros estão familiarizados com os
preceitos gerais dos direitos humanos, com os mecanismos internacionais de
proteção e com as decisões da Corte Interamericana?
Há um déficit imenso. Uma pesquisa de
2008 revelou que a utilização de decisões da corte e da Convenção Americana de
Direitos Humanos é mínima. Várias gerações foram formadas sem estudar direitos
humanos e direitos internacionais. A minha própria geração, durante a
graduação, na maioria dos casos não teve nada sobre isso na faculdade.
Estávamos vindo de um período autoritário, durante o qual proibiu-se o ensino
dessas e de outras matérias. Isso torna ainda mais importante a presença do
Brasil na Corte Interamericana. Para chamar a atenção para o tema, multiplicar
o conhecimento sobre o sistema e, assim, chegarmos ao patamar desejado. Já
houve uma melhoria, mas notamos que a comunidade jurídica brasileira ainda
conhece pouco o sistema americano de promoção de direitos humanos.
O simples fato de a comissão
interamericana apreciar uma denúncia e, não havendo acordo, considerar que as
informações apresentadas pelos denunciantes são suficientes para que a corte
julgue os fatos, é suficiente para arranhar a imagem de um país?
Esta é uma consideração que pode ter
múltiplas facetas. Alguns entendem que sim, que o país está sendo exposto,
colocado no banco dos réus, sob a luz dos holofotes. Outros entendem que isso é
uma sequência natural e lógica. Claro que quando se trata de um fato repetido,
que já tem precedente, a comissão interamericana age de forma mais vigorosa. Aí
sim, o embaraço é inegável.
Uma das primeiras denúncias que a corte
vai julgar em seu mandato envolve o Brasil. Trata-se do caso da Fazenda Brasil
Verde, que envolve o suposto trabalho escravo em uma fazenda particular do
Pará, entre os anos 1980 e 2000. Esse julgamento, independentemente da sentença
final, também prejudica a imagem do Brasil, hoje apontado internacionalmente
como referência no combate ao trabalho escravo?
Não deveríamos distinguir as obrigações
estabelecidas por Estados-Membros das [obrigações] externas. A Convenção
Americana de Direitos Humanos, por exemplo, deve ser obrigatoriamente aplicada
pelos países que a ratificaram, caso do Brasil, e os Poderes Judiciários
Nacionais têm que lidar com esse dispositivo, garantindo que ele seja cumprido.
O fato de uma denúncia de eventual desrespeito à convenção chegar à corte pode
resultar em um redirecionamento ou criação de determinadas políticas públicas,
a obrigação de observar o que estabelece o pacto internacional. Sobre o caso
específico da denúncia contra o Estado brasileiro, por minha nacionalidade, eu
não participarei desse julgamento. Logo, só me resta esperar pela decisão dos meus
colegas juízes.
Quantas denúncias contra o Estado
brasileiro estão pendentes de julgamento na corte? Há expectativa de que o
número de casos remetidos à corte pela comissão interamericana aumente nos
próximos anos?
É natural que quanto mais um sistema se
torna conhecido, mais ele é acessado. É crível, portanto, que aumente o número
de denúncias feitas à comissão interamericana e, consequentemente, de casos
remetidos à corte. Isso não quer dizer que está aumentando o grau de violações
aos direitos humanos, mas sim que o sistema internacional está sendo mais
acessado em busca de respostas às violações. Isso já ocorreu com outros países
e acredito que aconteça também com o Brasil. Hoje, na corte, temos apenas dois
casos pendentes de julgamento. Na comissão, no entanto, há vários. Só em 2015
foram apresentadas cerca de 100 novas denúncias.
Então a expectativa é de que o número
de julgamentos em geral aumente?
Sim. E acredito que também passaremos a
julgar mais casos relativos aos chamados direitos sociais, como o direito à
vida, à saúde, à educação ou ao trabalho. Temas extremamente relevantes para os
países da América, já que o continente é marcado por uma distribuição de renda
precária e pela desigualdade social. É possível que, dada a nova composição da corte,
passemos a julgar essas questões como violações aos direitos humanos, segundo
uma tendência de que o desrespeito a esses direitos também pode ser
judicializado.
Em 2010 o senhor atuou como juiz
nomeado no julgamento de episódios ocorridos durante a chamada Guerrilha do
Araguaia. A corte condenou o Estado brasileiro a investigar os fatos,
determinar o paradeiro dos desaparecidos, julgar e punir os responsáveis. Na ocasião,
o senhor afirmou que os Poderes Públicos dos países que aceitaram a Convenção
Americana de Direitos Humanos devem respeitá-la, inclusive adequando suas leis
às decisões da corte. Para o senhor, os “crimes de desaparecimento forçado,
execução sumária extrajudicial e de tortura, perpetrados sistematicamente pelo
Estado brasileiro para reprimir a Guerrilha do Araguaia, são exemplos acabados
de crimes de lesa-humanidade, e seu julgamento não pode ser impedido pela
passagem do tempo ou por dispositivos normativos, como a Lei da Anistia”. Na
condição de presidente da corte, o que o senhor diz sobre esse episódio? O
Brasil deve julgar e punir os agentes do Estado que, durante a ditadura
civil-militar sequestraram, torturaram, mataram e, em muitos casos, desapareceram
com os corpos de oponentes do regime e, em alguns casos, de pessoas que não
tinham ligações com a luta armada?
Em relação à guerrilha, essa foi a
sentença da corte, e é nossa opinião, lavrada sobre a jurisprudência anterior.
A sentença deve ser integralmente cumprida, e esperamos que a interpretação do
tribunal seja devidamente aplicada pelo Brasil. Lógico que cada país tem seu
ritmo, mas já estamos vendo que a decisão começa a ser observada por algumas
instâncias do Judiciário. Acreditamos que o Supremo Tribunal Federal também o
fará quando chegar a hora.
Os Estados Unidos resistem a ratificar
a Convenção Americana dos Direitos Humanos, mas, ainda assim, a sede da
comissão interamericana fica em Washington. O senhor é favorável à
transferência da entidade para outro país que reconheça a validade do tratado
internacional?
Esta é uma questão política que compete
aos estados discutir e diz respeito à comissão. É um tema aberto à discussão,
mas não me cabe, como presidente da corte, emitir minha opinião sobre o tema.
Nenhum comentário:
Postar um comentário