terça-feira, 1 de novembro de 2011

Giovanni Alves: O Mundo do Trabalho diante da Barbárie Social e da Crise de Civilização



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   Barbárie social e devir humano dos homens
Por Giovanni Alves.
O que consideramos “barbárie social” é uma dimensão da barbárie histórica que se constitui como metabolismo social nas condições do capitalismo global em sua etapa de hipertrofia financeira. Ela é um elemento compositivo da era histórica de declínio estrutural do capital caracterizado pela constituição do capitalismo global. É a terceira modernidade do capital em sua etapa senil capaz de colocar, no plano global, impasses civilizatórios inéditos na história humana.  
A nova era de barbárie social se caracteriza, por um lado, pela crise de valorização e a financeirização da riqueza capitalista, que provocaram alterações estruturais na dinâmica da acumulação de valor, com impactos diruptivos no padrão de concorrência intracapitalista e no processo de desenvolvimento e organização das políticas públicas e estruturação do mercado de trabalho, com a crise do emprego e a disseminação da nova precariedade salarial no núcleo orgânico mais desenvolvido do sistema mundial do capital.
Por isso, a ideologia do neoliberalismo se impõe como ideologia orgânica da ordem política do capital. Mesmo partidos de “esquerda” assumem hoje nos países capitalistas mais desenvolvidos plataformas políticas neoliberais. A lógica férrea da ordem burguesa senil constrange cada vez mais os partidos políticos que optaram por permanecer no interior do jogo democrático representativo de cariz liberal.
Por exemplo, torna-se cada vez mais perceptível a crise estrutural da social-democracia e partidos socialistas europeus cada vez mais incapazes de conciliar crescimento econômico e desenvolvimento social, ou ainda, conciliar Estado de bem-estar social e Estado político do capital a serviço dos interesses do capital financeiro (o que explica o crescimento da concentração de riqueza e desigualdade social nos países capitalistas europeus, berço histórico da social-democracia européia).
Por outro lado, a nova era de barbárie social se caracteriza pela reestruturação produtiva do capital sob o espírito do toyotismo. Exacerba-se o contraste entre racionalização intraempresa capitalista sob a lógica do trabalho flexível e irracionalidade social com a disseminação do desemprego de longa duração e a precarização estrutural do trabalho. Na medida em que o capitalismo global é a etapa superior do capitalismo manipulatório, acirra-se o processo de dessocialização do proletariado desterritorializado pela nova precariedade salarial com impactos importantes na consciência necessária de classe. Nesse caso, o poder da ideologia e a intensificação do fetichismo da mercadoria devido a vigência do mercado na estruturação social, compôs um cenário qualitivamente novo de desefetivação do ser genérico do homem.
Estas são as novas condições sócio-históricas no interior das quais se desenvolvem as contradições do modo de produção social de mercadorias no plano global e, portanto, as novas condições da luta de classes no século XXI. É com a terceira modernidade do capital que a barbárie se instaura como metabolismo social, isto é, constitui-se como “barbárie social”, a nova dimensão da barbárie histórica dentro do capitalismo. Ela altera os referentes histórico-epistemológicos da luta de classes, colocando novas tarefas políticas para a luta anticapitalista e para o pensamento radical comprometido com a critica do capital (o que veremos mais adiante).
Mas, como podemos caracterizar efetivamente o conceito de “barbárie social”?
Em primeiro lugar, trata-se de um conceito sociológico que diz respeito a uma forma histórica de metabolismo social – um modo social de troca orgânica entre o homem e a natureza – que se constitui na etapa histórica da crise estrutural do capital.
Metabolismo social significa a ineliminável troca orgânica entre homem e natureza onde a natureza implica tanto a (1) “natura naturans”, como diria Spinoza, isto é, o mundo do ecossistema natural ou meio-ambiente que abriga a espécie humana, quanto (2) a “natura naturata”, ou seja, o mundo social dos homens, as relações sociais dos homens com outros homens e também as relações sociais dos homens consigo mesmo, ou seja,  o homem em sua auto-referencia pessoal. Deste modo, o modo de produção capitalista não é apenas um modo de produção de mercadorias, mas também modo de reprodução social ou modo de controle do metabolismo social ou troca orgânica historicamente determinado.
Na fase histórica da crise estrutural do capital desenvolve-se com intensidade e amplitude, o sociometabolismo da barbárie que possui como traço histórico-ontológico, a degradação estrutural da troca orgânica entre homem e natureza no sentido amplo de “natura naturans” e “natura naturata”. Por isso, temos por um lado, a crise ecológica; e por outro lado, a crise do humano. A dinâmica histórica posta pelo novo metabolismo social do trabalho com a nova precariedade salarial instaura o que podemos considerar como sendo a crise do humano como crise do trabalho vivo. Ela se compõe do complexo de crises que decorrem do processo de precarização-do-homem-que-trabalha: crise da vida pessoal; crise de sociabilidade; crise de auto-referência humano-pessoal.
A vigência plena do capitalismo manipulatório sob a dominância do capital financeiro, com a precarização estrutural do trabalho, caracterizada pela presença do desemprego de massa e a nova precariedade salarial compõem o cenário de barbárie como metabolismo social, isto é, processo cotidiano de desefetivação do ser genérico do homem. Deste modo, dessocialização e manipulação reflexiva dilaceram o devir humano dos homens, obliterando tendencialmente sua capacidade de “negação da negação” – eis o sentido da barbárie social.
O estado de barbárie social é a nova condição histórica no interior da qual os homens e mulheres fazem a história. É uma etapa de crise social irremediável contínua e persistente que afeta a ordem burguesa global. Contra o estado de barbárie social, as multidões se insurgem. Mas trata-se ainda de multidões com insurgências contingentes que expressam, com seu movimento de rebeldia, a presença efetiva e ampliada da condição de proletariedade. Não se trata da classe do proletariado, apesar da multidão estar imersa na condição de proletariedade.
A presença da desefetivação humano-genérica que caracteriza o sociometabolismo da barbárie não implica anulação da capacidade de resposta e a dessocialização e manipulação reflexiva que caracteriza o sistema do capitalismo manipulatório não conduz irremediavelmente à inércia coletiva. O estado de barbárie social não significa o colapso da história, mas sim, pelo contrário, a necessidade radical de fazer história. Entretanto, os obstáculos objetivos para a “negação da negação” na perspectiva da consciência de classe se colocam tendo em vista o estado de barbárie social.
A etapa histórica de crise do capitalismo global que assistimos hoje põe com intensa candência a contradição radical entre a necessidade do controle social – isto é, o socialismo – e os obstáculos efetivos à democratização radical das sociedades humanas postos pelo estado de barbárie social. O controle social e a democratização radical das sociedades humanas implica a formação efetiva da classe social do proletariado como sujeito histórico-coletivo constituído por individualidades pessoais humano-genéricas capazes de “negação da negação” da ordem sociometabólica do capital.
Com a nova etapa de crise do capitalismo global surge nos países capitalistas mais desenvolvidos – como EUA e Europa – os movimentos sociais das multidões imersas na condição de proletariedade que expressam em si e para si, carecimentos radicais de democratização efetiva da vida social num cenário de barbárie histórica de alta intensidade. Na verdade, as multidões de “indignados”, compostos em sua maioria por jovens e adultos precários, desempregados, sem perspectiva de futuro no interior da ordem burguesa. Trata-se de multidões de proletários histórico-mundiais, como diria Marx e Engels (inclusive proletários de “classe média”, órfãos do Estado de bem-estar social). Entretanto, os “indignados” não são capazes de expressar em si e para si, a “negação da negação” no sentido de ser o sujeito histórico-político de classe capaz de operar o salto qualitivamente novo no plano sócio-político e inclusive sociometabólico. Os “indignados”, como o espectro de Hamlet, clamam nas praças que há algo de podre no reino do capitalismo desenvolvido (o dito “Primeiro Mundo”). Ou como o menino da fábula de Hans Christian Andersen, exclama que o rei está nu. É a resposta humana possível – hoje – à ordem da barbárie social.    
Desde as suas origens como modo de produção social, a barbárie histórica tem caracterizado o capitalismo. Massacres, genocídios e múltiplas formas de degradação humana caracterizam a civilização do capital em seu desenvolvimento histórico como traço indelével da história das sociedades de classes, caracterizada pela divisão entre explorados e explorados, oprimidos e opressores. A barbárie histórica dentro da civilização do capital é um traço ineliminável do desenvolvimento contraditório do capitalismo histórico. Entretanto, o que salientamos é que, em sua etapa de crise estrutural, o capital explicita outra dimensão particular-concreta de barbárie histórica: o que denominamos de “barbárie social”, a barbárie como metabolismo social, que emerge, com vigor, na época da decadência histórica do capitalismo mundial e que se caracteriza pela desefetivação do ser genérico do homem.
Como Karl Marx e Friedrich Engels, concebemos a barbárie como dizendo respeito, por um lado, a uma temporalidade histórica da evolução cultural da espécie humana (a barbárie é uma etapa do desenvolvimento histórico que antecede a civilização); e por outro lado, como uma dimensão intrínseca do modo de produção capitalista, sendo ela, deste modo, um traço compositivo essencial do capitalismo industrial como modo de produção de mercadorias (é o que Marx observou como sendo a “barbárie dentro da civilização”). Portanto, buscamos salientar a percepção da barbárie como traço histórico compositivo da civilização do capital. Ao invés de serem antípodas, para Marx, a barbárie é determinação reflexiva da forma histórica de civilização do capital.
Deste modo, podemos distinguir a “barbárie exterior a civilização” e a “barbárie interior a civilização” ou “barbárie histórica” propriamente dita. Um detalhe: a “barbárie social” que temos salientado acima seria uma dimensão compositiva da barbárie histórica na etapa da crise estrutural do capital e vigência do capitalismo manipulatório.
1. A“barbárie exterior a civilização” é identificada como etapa do desenvolvimento histórico da espécie humana (por exemplo, a barbárie dos povos primitivos). Deste modo, Marx concebeu a barbárie como estágio de desenvolvimento histórico quando, por exemplo, nas suas notas etnológicas (“Ethnological Notebooks”), assumiu o conceito de barbárie como estágio do desenvolvimento com base no trabalho de Lewis Henry Morgan (na sua “Ancient Society”, Morgan identificou a Barbárie Inferior com a manufatura da cerâmica; a Barbárie Média com a domesticação de animais no hemisfério oriental, a irrigação e a utilização do tijolo de adobe e da pedra na arquitetura do hemisfério ocidental, e Barbárie Superior com a manufatura do ferro e a invenção do alfabeto fonético). Em “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Friedrich Engels assumiu grande parte do esquema antropológico de Morgan, incluindo o seu tratamento da barbárie como um estágio entre a Selvajaria e a Civilização.
2. A“barbárie interior a civilização do capital” ou barbárie histórica pode ser identificada com os modos de brutalidades que vigoram nas sociedades de classes (guerras, massacres, degradação humana e destruiçãoem massa). Ocapitalismo histórico como a sociedade de classes mais desenvolvida, reiterou, em escala planetária, brutalidades terríveis a serviço da expansão do capital. Por exemplo, nas etapas do colonialismo e imperialismo, os atos de brutalidades são inomináveis, expondo com vigor a concepção de Marx da “barbárie interior a civilização do capital”. Deste modo, a barbárie que ressurge no interior da civilização burguesa aparece como “barbárie histórica”.
É interessante observar que ao criticar o colonialismo, Marx trata não os povos colonizados como bárbaros, mas o contrário – os burgueses como aqueles que levam a barbárie interior da civilização do capital, para a periferia capitalista. A burguesia exporta barbárie na medida em que “…podem modelar o mundo conforme a sua própria imagem sem qualquer interferência”. Diz Marx, em 1853, no artigo “Os futuros resultados do domínio britânico na Índia”: “A profunda hipocrisia e a barbárie inerente da civilização burguesa jazem desvelados diante dos nossos olhos, quando os desviamos do seu lar, onde ela assume formas respeitáveis, para as colônias, onde ela está nua”.
Para Marx, o colonialismo inglês na Índia expunha, derrubando a máscara de hipocrisia burguesa, a barbárie inerente a civilização do capital. Seria na periferia capitalista que a burguesia metropolitana liberal e democrática, exporia sua face bárbara, criando aquilo que Mike Davis iria denominar de “holocaustos vitorianos”, tendo em vista a expropriação imperialista do excedente da sociedade indiana, provocando ondas massivas de fome e a imposição de salários miseráveis aos trabalhadores indianos. Por exemplo, no livro “Holocaustos coloniais”, Davis observa que as rações que os britânicos proporcionavam a trabalhadores ocupados em trabalhos árduos em Madras, na Índia, em 1877, tinham um valor calórico inferior àquele que os nazistas vieram a proporcionar aos prisioneiros forçados a trabalho árduo no campo de concentração de Buchenwald em 1944.
Portanto, o colonialismo inglês na Índia devastou a indústria daquele país, difundindo a miséria e a degradação, enquanto transformava a Índia num simples produtor de matérias-primas agrícolas para a Grã-Bretanha. De fato, o imperialismo britânico serviu como força de destruição, demolindo as forças produtivas da Índia e provocando subdesenvolvimento mesmo quando introduzia as forças da indústria moderna dentro da sociedade indiana.
Ao discorrer sobre “A gênese do capitalista industrial (no livro I de “O Capital”), Marx citou a obra “Colonisation and Christianity”, de William Howitt, que escrevera: “As barbaridades e as atrocidades desesperadas da assim chamada raça cristã, em toda a parte do mundo, e sobre todos os povos que foram capazes de subjugar, não têm paralelo em outros de qualquer outra raça, mesmo feroz, mesmo analfabeta, e mesmo despida de compaixão e de vergonha, em qualquer era da Terra”.
Entretanto, a “barbárie histórica dentro da civilização do capital” se expressa também por meio da exploração e espoliação vinculada diretamente ao modo de produção de mercadorias nos primórdios da Revolução Industrial.  Por exemplo, nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” (de 1844), Marx, referindo-se à degradação do trabalho vivo que sobreveio com a ascensão do capitalismo nos primórdios da Revolução Industrial, observou: “As formas (e instrumentos ) mais brutais de trabalho humano reaparecem [sob o capitalismo]; por exemplo, o moinho de castigo (tread-mill) utilizado pelos escravos romanos tornou-se o modo de produção e o modo de existência de muitos trabalhadores ingleses”. Mais tarde, em 1847, num discurso sobre “Salários”, Marx referiu-se metaforicamente à utilização do moinho de castigo na moderna produção capitalista (e nos sistemas prisionais) como uma doença. Diz ele: “O moinho de castigos re-emergiu outra vez dentro da civilização. A barbárie reaparece, mas criada no regaço da própria civilização e pertencendo-lhe, portanto barbárie leprosa, uma barbárie que é a lepra da civilização”. No “Manuscrito econômico de 1861-3”, Marx citou uma passagem do economista russo Heinrich Friedrich von Storch que denunciava a degradação das condições de trabalho e o enfraquecimento da saúde dos trabalhadores assalariados como um reflexo do retorno à barbárie que freqüentemente acompanhou o crescimento da civilização burguesa.
Na medida em que a civilização burguesa possui a barbárie inerente a si, ela – a barbárie – tende sempre a reaparecer no interior do desenvolvimento critico do capitalismo histórico. Nossa hipótese é que a crise estrutural do capital alterou o espaço-tempo da barbárie histórica. Ela não se restringe tão-somente aos movimentos territoriais do neocolonialismo e imperialismo que acompanham a nova ordem global do capital sob a hegemonia político-militar dos Estados Unidos da América; nem ao “momentum” de interregno da acumulação de capital e crises de superprodução que caracterizaram o capitalismo histórico; nem apenas a exploração e espoliação vinculada diretamente ao trabalho estranhado e a produção de mercadorias. Os territórios da barbárie histórica – a barbárie inerente a civilização burguesa – extrapolam os registros sócio-territoriais originais.
Na verdade, a barbárie histórica permeia hoje, com a crise do capitalismo global, a totalidade do metabolismo social do sistema produtor de mercadorias. Com a crise estrutural do capital, o sociometabolismo da barbárie assume uma dimensão global, instalando-se no próprio núcleo territorial orgânico do sistema mundial do capital e centro dinâmico de acumulação de valor.
Com a precarização estrutural do trabalho, que se torna traço ineliminável e recorrente da dinâmica social capitalista, a barbárie histórica em sua dimensão de barbárie social, aparece como crise da vida pessoal das individualidades de classe cada vez mais imersas na condição de proletariedade. É a crise pessoal que, nos marcos da nova precariedade salarial, decorre da insegurança social para adultos e corrosão da futuridade e frustração irremediável para jovens licenciados.
Com a precarização do homem-que-trabalha, a barbárie social aparece como barbárie interior, corroendo, como “lepra”, a percepção lúcida e o entendimento racional de homens e mulheres sobre os outros (crise de sociabilidade) e sobre si mesmo (crise de auto-referencia pessoal). Na verdade, explicita-se com vigor o estranhamento caracterizado por Georg Lukács como sendo a contradição insana entre o desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, o desenvolvimento da capacidade humana, e o desenvolvimento da personalidade humana. Na época da barbárie social, o desenvolvimento da capacidade humana que se manifesta no desenvolvimento espetacular das forças produtivas do trabalho social, tende a potencializar tão-somente capacidades singulares, desfigurarando, aviltando, etc, a personalidade do homem.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Terceira modernidade do capital, crise de civilização e barbárie social

Por Giovanni Alves.
O sentido radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito a incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas pela nova materialidade sócio-técnica em virtude da degradação das condições materiais de reprodução humana, inclusive no pólo desenvolvido do capitalismo global. Este é um traço indelével do esgotamento histórico de um modo planetário de controle do metabolismo social baseado na propriedade privada dos meios de produção social e divisão hierárquica do trabalho.
O que consideramos como crise estrutural do capital possui as caracteristicas de uma “sindrome” social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. É o que temos denominado de sociometabolismo da da barbárie ou barbárie social.
Na verdade, vivemos uma nova era civilizatória que inaugura a terceira modernidade do capital. Sob as condições da barbárie social, o capitalismo histórico altera qualitativamente a dinâmica da luta de classes, que se contrasta, por exemplo, com a dinâmica histórica inscrita na segunda modernidade do capital, caracterizada pela lógica cultural do modernismo.
O capital adquire sua dimensão real tão-somente a partir da segunda modernidade, ou seja, a instauração do modo de produção capitalista propriamente dito. Constitui-se a grandeindústria com o sistema de máquinas que põe a subsunção real do trabalho ao capital. Esta importante inflexão histórica propiciou um salto qualitativamente novo na dinâmica civilizatória do capital. É possível dizer que, com a segunda modernidade do capital, que tem inicio com a Primeira Revolução Industrial, a partir do século XIX, e que prossegue até a última metade do século XX, o capital se consolida como sistema planetário, ou seja, sistema de controle do metabolismo social global. É nesse período histórico que se constitui o mercado mundial e todas as determinações sociais descritas num impressionante vigor literário por Karl Marx e Friedrich Engels n´O Manifesto Comunista, de 1848.
A segunda modernidade do capital é a modernidade-máquina, temporalidade histórica em que se constituiu um estilo de pensamento, de política e de sensibilidade estética que poderíamos caracterizar como modernista. Foi nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo ocidental, no bojo do qual se desenvolveu o processo de modernização que constituiu-se a classe social (burguesia e proletariado) e o Estado nacional em torno da qual se consolida o território propriamente dito da Nação e da Cidade. São tais determinações essenciais que irão compor a identidade social de homens e mulheres da segunda modernidade. Enfim, a segunda modernidade é a modernidade propriamente dita.
Por modernidade entendemos um conjunto de experiências de vida: experiência do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida, que é hoje em dia compartilhado por homens e mulheres em toda parte do mundo. Assim, desde o século XVI, constitui-se no Ocidente a modernidade do capital, que assume diversas formas histórico-temporais, por conta do desenvolvimento do modo de produção capitalista.
Diremos com Marshall Berman, no seu livro clássico “Tudo que é sólido se desmancha no Ar”, que “ser moderno é encontrarmo-nos em um meio-ambiente que nos promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo – e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos. Ambientes e experiências modernos atravessam todas as fronteiras de geografia e de etnias, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia; neste sentido, pode-se dizer que a modernidade une todo o gênero humano. Mas é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: envolve-nos a todos num redemoinho perpétuo de desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como disse Marx, ´tudo o que é sólido se desmancha no ar´”. Esta percepção de Marshal Berman é a percepção aguda da modernidade clássica, a segunda modernidade do capital, a modernidade da grande indústria e do modernismo, que irá expor a forma essencial deste processo de modernização do capital.
Por “modernismo”, que se vincula a esta segunda modernidade, entendemos como sendo, de acordo com Perry Anderson (no livro “As origens da pós-modernidade”), “a espantosa variedade de visões e idéias que visam a fazer de homens e mulheres os sujeitos, ao mesmo tempo que os objetos, da modernização, a dar-lhe o poder de mudar o mundo que os está mudando, a abrir-lhes caminho em meio ao turbilhão e apropriar-se dele”. Deste modo, o modernismo como lógica cultural da segunda modernidade do capital, são visões e valores carentes de utopia social. Enfim, são visões culturais e políticas que emergem no período de ascensão histórica do capital. O modernismo é o espírito político-cultural da segunda modernidade do capital.
Deste modo, podemos distinguir a primeira modernidade do capital, que transcorreria do século XVI à última metade do século XVIII e seria caracterizada pela ascensão histórica do capitalismo comercial e capitalismo manufatureiro. Neste período de constituição do capitalismo moderno, as sociedades européias ainda estavam imersas em relações sociais tradicionais, marcadas pela dominação de classe aristocráticas e agrárias, ainda não subsumidas à lógica do capital industrial, mas apenas à lógica do capital mercantil.
A segunda modernidade do capital seria a modernidade da Primeira e Segunda Revolução Industrial, do surgimento da grande indústria, do modo de produção capitalista propriamente dito, da subsunção real do trabalho ao capital, da transição dolorosa e luminosa para a última modernidade do capital, a terceira modernidade.
A terceira modernidade do capital seria a modernidade tardia, a modernidade sem modernismo, ou a modernidade pós-modernista. É a modernidade do espírito do toyotismo que explicita um nova implicação sociometabólica da produção social: a maquinofatura em contraste com a manufatura ea grandeindústria. A terceira modernidade é a modernidade do capitalismo manipulatório e da crise estrutural do capital. É a modernidade da predominância do capital financeiro sobre as demais frações do capital. A terceira modernidade seria a modernidade do precário mundo do trabalho e da barbárie social. Enfim, com a terceira modernidade nos inserimos noutra temporalidade histórica do capital, com impactos decisivos na objetividade e subjetividade da classe dos trabalhadores assalariados e do trabalho vivo. Com a terceira modernidade altera-se a dinâmica histórica da luta de classes na medida em que está posta a precarização do homem-que-trabalha como um traço indelével da nova precariedade salarial.
Apesar de estarmos inseridos na temporalidade histórica da terceira modernidade do capital, somos constrangidos ainda, no plano da memória histórica e da imagem social, pela segunda modernidade do capital, a modernidade do modernismo, a modernidade da forma cultural prenhe de projetos de utopias concretas (como diria Ernst Bloch).
Enquanto a primeira modernidade do capital era prenhe de utopias abstratas, como a de Thomas Morus (“A Utopia”) ou de Tomazo di Campanella (“Cidade do Sol”); ou mesmo de Charles Fourier e Robert Owen; a segunda modernidade do capital nasce com o proletariado industrial e os projetos sociais do comunismo político em meados do século XIX no bojo da crise de 1848, aprimeira grande crise do capitalismo ocidental. Seu marco histórico maduro são as revoluções sociais de 1848, evento crucial que inspirou o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. As revoluções sociais de 1848 abrem um novo período histórico da luta de classes.
O processo social da segunda modernidade do capital é caracterizado pelo espírito do modernismo, isto é, o conjunto de doutrinas e práticas estéticas e políticas amplamente heteróclitas, assincrônicas e intrinsecamente contraditórias, como a própria modernização do capital no período de sua ascensão histórica. Neste período, temos a ascensão e crise do Estado social, com seus partidos e sindicatos de classe e com os projetos de utopias sociais caracterizados pelo comunismo histórico e pela social-democracia clássica. Constituiu-se o mundo do trabalho organizado cuja dinâmica da luta de classes propiciou uma precariedade salarial caracterizada pelo emprego estável dos trabalhadores assalariados organizados. É o período histórico das conquistas sociais do trabalhismo organizado, da legislação do trabalho e do Welfare State. Nele vigoram como estilo cultural e político da subjetivação de classe, tanto o reformismo social-democrata, quanto o comunismo político como forças estruturantes da defensividade do trabalho.
Na temporalidade histórica da segunda modernidade do capital ocorre o surgimento e desenvolvimento dos Estados nacionais, com destaque para a constituição hegemônica dos Estados Unidos como nação moderna, de crise européia, dos conflitos imperialistas, da Primeira e Segunda Guerra Mundial, da colonização, descolonização e ocidentalização do Terceiro Mundo, da indústria cultural, da modernização avassaladora em todas as instâncias da vida social (o que só ocorreria após a Segunda Guerra Mundial). Enfim, é um período de intensa “destruição criativa”, último período histórico de ascensão do capital, uma ascensão de destruição de modos de vida tradicionais vinculados à dominação de classes aristocráticas e agrárias, que só ocorreriam de vez após as duas guerras mundiais que atingiram o Continente Europeu (é tal transição do tradicional para o moderno que iria dar aquela sensação de ambigüidade típica do modernismo – euforia e rebeldia, tão típica dos movimentos culturais modernistas, do surrealismo ao rock and roll dos The Beatles).
A crise da segunda modernidade do capital ocorre em meados da década de 1960, década de transição, que anunciaria, no centro do sistema do capital, a passagem para a terceira modernidade, modernidade tardia ou modernidade sem modernismo. Ela irá se compor na medida em que se dissolvem as coordenadas históricas compositivas do modernismo.
Nos primórdios do século XXI vivemos sob a terceira modernidade que inaugura a temporalidade histórica da crise estrutural do capital com implicações qualitativamente novas na dinâmica da luta de classes, na medida em que se altera o processo social de subjetivação de classe.
A mundialização do capital e a vigência do regime de acumulação predominantemente financeirizado; as políticas neoliberais, a acumulação flexível e o espírito do toyotismo; e a instauração da sociedade em rede a partir da revolução informacional no bojo do capitalismo manipulatório, colocam novas determinações concretas no processo de formação (e luta) da classe social do proletariado.
Por um lado, amplia-se a condição de proletariedade que, com a nova precariedade salarial, incorpora as camadas sociais ditas de “classe média”. A nova precariedade salarial que inaugura a “nova questão social” (Robert Castel), explicita a precarização estrutural do trabalho como um traço compositivo ineliminável da npva dinâmica do capitalismo global. Por outro lado, a precarização do homem-que-trabalha, traço indelével da nova precariedade salarial, com a dessubjetivação de classe, “captura” da subjetividade e redução do trabalho vivo a força de trabalho, colocam obstáculos efetivos à formação da consciência de classe e, portanto, à formação do sujeito histórico do proletariado como classe social.
Deste modo, o nosso conceito de barbárie social diz respeito a condição social crítica qualitativamente nova que surge na terceira modernidade do capital e que coloca obstáculos efetivos à formação do sujeito histórico de classe. Na verdade, ocorre um processo de deformação da classe pari pasu à crise de formação contraditória do valor no bojo da crise estrutural do capital (formação contraditória no sentido de que a crise de formação do valor se põe no bojo da disseminação da forma-valor pela vida social).
Com a nova precariedade salarial, que contém no seu bojo o estado de barbárie social, inaugura-se, deste modo, a era de crise social como crise de civilização, caracterizada, no plano sociometabolico, pela crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de auto-referencia pessoal. A terceira modernidade, com o sociometabolismo da barbárie, que reduz tempo de vida a tempo de trabalho, coloca em questão, de modo qualitativamente novo, o devir humano dos homens.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Crise estrutural do capital e precarização do homem-que-trabalha

Por Giovanni Alves.
A verdadeira crise do nosso tempo histórico não é a crise das economias capitalistas, mas sim a crise do homem como sujeito histórico de classe, isto é, ser humano-genérico capaz de dar respostas radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões.  É importante salientar que crise não significa morte do sujeito histórico de classe, muito menos sua supressão irremediável, mas tão–somente a explicitação plena da ameaça insuportável à perspectiva de futuro, risco de desefetivação plena do ser genérico do homem e, ao mesmo tempo, oportunidade histórica para a formação da consciência de classe e, portanto, para a emergência da classe social de homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho e estão imersos na condição de proletariedade.
A crise é o momento em que se explicita, em sua dramaticidade histórica (e diriamos hoje, midiática), a “alienação” como um poder “insuportável”, isto é, um poder contra o qual homens e mulheres enquanto individualidades pessoais e sob determinadas condições, se insurgem ou se indignam na medida em que se torna perceptível, mesmo no plano da consciência contingente de classe, a sua condição de proletariedade.
Na Ideologia Alemã, de 1847, Karl Marx e Friedrich Engels, conseguiram apreender, com genialidade visionária, o que torna-se hoje cada vez mais perceptível no capitalismo global do século XXI:  a constituição de uma massa da humanidade como massa totalmente “destituída de propriedade” e que se encontra, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riquezas e de cultura existente de fato. 
Para Marx e Engels, a explicitação plena da condição de proletariedade – e que está na raiz dos movimentos de jovens precários no mundo do capitalismo mais desenvolvido – pressupõem um alto grau de seu desenvolvimento das forças produtivas, que segundo eles, “con­tém simultaneamente uma verdadeira existência hu­mana empírica, dada num plano histórico-mundial e não na vida puramente local dos homens”.  E salientam: “Apenas com este desenvolvimento universal das forças produtivas dá-se um intercâmbio universal dos homens, em virtude do qual, de um lado, o fenômeno da massa ‘destituída de propriedade’ se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das revoluções dos outros; e, finalmente, coloca indivíduos empiricamente univer­sais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais”.
Deste modo, é sob as condições históricas da crise do sujeito de classe que se coloca a oportunidade radical de sua afirmação objetiva e subjetiva, seja enquanto massa “destituida de propriedade”, seja enquanto indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais” (não é desprezivel o papel da Internet com seus blogs alternativos e redes sociais – como facebook e twitter – na construção das individualidades histórico-mundiais).
Por outro lado, é importante salientar também que a crise estrutural do capital não significa incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista. Crise estrutural do capital não significa estagnação e colapso da economia capitalista mundial. Apesar da sua crise estrutural, o capital como sistema de acumulação de valor e modo estranhado de metabolismo social, tem-se expandido nos últimos trinta anos, apresentando, por exemplo, na passagem para o século XXI, índices exuberantes de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nas fronteiras da modernização do capital (como Índia, China e Sudeste Asiático).
Apesar da crise financeira e crise das dívidas soberanas nos EUA e União Européia, em 2008 e 2011, é provável que, a curto ou médio prazo, as economias norte-americanas e europeias possam retomar, a duras custas, o crescimento do PIB. Entretanto, percebe-se cada vez mais que o crescimento do PIB não se traduz em bem-estar social. Pelo contrário, nas últimas décadas aumentou nos países ricos a precariedade do trabalho, a contenção dos gastos públicos, corte de direitos sociais e a corrosão do Estado-Providência. Portanto, torna-se visível, cada vez mais, a incapacidade estrutural do capital como modo de controle estranhado do metabolismo social e sistema produtor de mercadorias, em realizar suas promessas civilizatórias de desenvolvimento e bem-estar social, inclusive no núcleo orgânico mais desenvolvido do capitalismo histórico.
Portanto, o sentido radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito à incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas pela nova materialidade sócio-técnica em virtude da degradação das condições materiais de reprodução humana, inclusive no pólo desenvolvido do capitalismo global. Este é mais um elemento compositivo do esgotamento histórico de um modo de controle do metabolismo social baseado na propriedade privada dos meios de produção social e divisão hierárquica do trabalho.
Na verdade, a crise estrutural do capital possui as características de uma “síndrome” social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. Como salientou Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere, “a crise consiste no fato que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno verificam-se os mais variados fenômenos mórbidos” (é o que iremos tratar nos próximos artigos como sendo a barbárie social).
 A “condição crítica” da síndrome do capital é a convergência histórica de um conjunto de crescentes contradições sociometabólicas do sistema mundial do capital, principalmente a partir de meados da década de 1970. A principal delas diz respeito à contradição capital-trabalho, na medida em que é através do trabalho que o sociometabolismo do capital vincula os seres humanos à natureza: a aguda elevação da produtividade do trabalho em virtude do processo cumulativo do progresso técnico, tende a explodir a materialidade do valor-trabalho, uma “implosão” contínua e permanente no espaço-tempo comprimido do novo tempo histórico do capitalismo global. É por isso que o consumo de trabalho vivo de uma parte da força de trabalho torna-se irrelevante para o sistema do capital. (José Nun, um dos teóricos da CEPAL, irá chama-las de “massa marginal” e Robert Kurz, de “sujeitos monetários sem dinheiro”). Eis a raiz da ampliação persistente da precariedade social do trabalho no plano histórico-mundial.
Em 1863, nos Grundrisse, Karl Marx conseguiu apreender o traço radical do nosso tempo histórico, ao observar que, sob o capitalismo,  “o tempo é tudo, o homem já não é nada; é, quando muito, a carcaça do tempo”. Na verdade, são as “massas marginais”, os “sujeitos monetários sem dinheiro” ou ainda os homem-carcaças – a massa da humanidade “destituída de propriedade” – que estão se insurgindo nos riots dos bairros pobres de Londres ou nos movimentos sociais do precariato indignado que ocupa as praças de Lisboa e Madri.
Enfim, a crescente redundância do trabalho vivo e da força de trabalho é a “ponta do iceberg” de um sistema de metabolismo social baseado na precariedade social do trabalho e que expõe cada vez mais seus limites estruturais, demonstrando ser incapaz de conter o processo civilizatório humano-genérico.
Deste modo, podemos caracterizar a crise estrutural do capital como sendo, por um lado, no plano da objetividade social, pela (1) crise de formação (produção/realização) de valor, onde a crise capitalista aparece, cada vez mais, como sendo crise de abundância exacerbada de riqueza abstrata. Entretanto, temos salientado que o caráter radical da crise estrutural do capital, diz respeito a (2) crise de (de)formação do sujeito histórico de classe instaurado pelo estado de barbárie social. A crise de (de)formação do sujeito de classe é uma determinação tendencial do processo de precarização estrutural do trabalho que, nesse caso, aparece como precarização do homem-que-trabalha.
A precarização do trabalho não se resume àquilo que pensa a sociologia do trabalho, isto é, a mera precarização social do trabalho ou precarização dos direitos sociais e direitos do trabalho de homens e mulheres proletários. A precarização do trabalho implica também a precarização-do-homem-que-trabalha como ser humano-genérico (o que explica a pandemia de depressão e transtornos psicológicos do homem-que-vive-do-trabalho).
Sob o capitalismo global, a manipulação (ou “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital) assume proporções inéditas, inclusive na corrosão político-organizativa dos intelectuais orgânicos da classe do proletariado.  Com a disseminação intensa e ampliada de formas derivadas de valor na sociedade burguesa hipertardia, agudiza-se o fetichismo da mercadoria e as múltiplas formas de fetichismo social, que tendem a impregnar as relações humano-sociais, colocando obstáculos efetivos à formação da consciência de classe necessária e, portanto, à formação da classe social do proletariado.
O processo de dessocialização do proletariado, com impactos na consciência de classe e o poder da ideologia no bojo do capitalismo manipulatório com a intensificação do fetichismo da mercadoria devido a vigência do mercado na estruturação social, compôs um cenário qualitativamente novo de riscos de desefetivação do homem como ser capaz de dar respostas radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões. Deste modo, a barbárie se instaura como metabolismo social, isto é, constitui-se a barbárie social, uma nova dimensão da barbárie histórica dentro do capitalismo. 
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

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