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Barbárie social e devir humano dos homens
O que
consideramos “barbárie social” é uma dimensão da barbárie histórica que
se constitui como metabolismo social nas condições do capitalismo global
em sua etapa de hipertrofia financeira. Ela é um elemento compositivo
da era histórica de declínio estrutural do capital caracterizado pela
constituição do capitalismo global. É a terceira modernidade do capital
em sua etapa senil capaz de colocar, no plano global, impasses
civilizatórios inéditos na história humana.
A nova era
de barbárie social se caracteriza, por um lado, pela crise de
valorização e a financeirização da riqueza capitalista, que provocaram
alterações estruturais na dinâmica da acumulação de valor, com impactos
diruptivos no padrão de concorrência intracapitalista e no processo de
desenvolvimento e organização das políticas públicas e estruturação do
mercado de trabalho, com a crise do emprego e a disseminação da nova
precariedade salarial no núcleo orgânico mais desenvolvido do sistema
mundial do capital.
Por isso, a
ideologia do neoliberalismo se impõe como ideologia orgânica da ordem
política do capital. Mesmo partidos de “esquerda” assumem hoje nos
países capitalistas mais desenvolvidos plataformas políticas
neoliberais. A lógica férrea da ordem burguesa senil constrange cada vez
mais os partidos políticos que optaram por permanecer no interior do
jogo democrático representativo de cariz liberal.
Por exemplo,
torna-se cada vez mais perceptível a crise estrutural da
social-democracia e partidos socialistas europeus cada vez mais
incapazes de conciliar crescimento econômico e desenvolvimento social,
ou ainda, conciliar Estado de bem-estar social e Estado político do
capital a serviço dos interesses do capital financeiro (o que explica o
crescimento da concentração de riqueza e desigualdade social nos países
capitalistas europeus, berço histórico da social-democracia européia).
Por outro
lado, a nova era de barbárie social se caracteriza pela reestruturação
produtiva do capital sob o espírito do toyotismo. Exacerba-se o
contraste entre racionalização intraempresa capitalista sob a lógica do
trabalho flexível e irracionalidade social com a disseminação do
desemprego de longa duração e a precarização estrutural do trabalho. Na
medida em que o capitalismo global é a etapa superior do capitalismo
manipulatório, acirra-se o processo de dessocialização do proletariado
desterritorializado pela nova precariedade salarial com impactos
importantes na consciência necessária de classe. Nesse caso, o poder da
ideologia e a intensificação do fetichismo da mercadoria devido a
vigência do mercado na estruturação social, compôs um cenário
qualitivamente novo de desefetivação do ser genérico do homem.
Estas são as
novas condições sócio-históricas no interior das quais se desenvolvem
as contradições do modo de produção social de mercadorias no plano
global e, portanto, as novas condições da luta de classes no século XXI.
É com a terceira modernidade do capital que a barbárie se instaura como
metabolismo social, isto é, constitui-se como “barbárie social”, a nova
dimensão da barbárie histórica dentro do capitalismo. Ela altera os
referentes histórico-epistemológicos da luta de classes, colocando novas
tarefas políticas para a luta anticapitalista e para o pensamento
radical comprometido com a critica do capital (o que veremos mais
adiante).
Mas, como podemos caracterizar efetivamente o conceito de “barbárie social”?
Em primeiro
lugar, trata-se de um conceito sociológico que diz respeito a uma forma
histórica de metabolismo social – um modo social de troca orgânica entre
o homem e a natureza – que se constitui na etapa histórica da crise
estrutural do capital.
Metabolismo
social significa a ineliminável troca orgânica entre homem e natureza
onde a natureza implica tanto a (1) “natura naturans”, como diria
Spinoza, isto é, o mundo do ecossistema natural ou meio-ambiente que
abriga a espécie humana, quanto (2) a “natura naturata”, ou seja, o
mundo social dos homens, as relações sociais dos homens com outros
homens e também as relações sociais dos homens consigo mesmo, ou seja, o
homem em sua auto-referencia pessoal. Deste modo, o modo de produção
capitalista não é apenas um modo de produção de mercadorias, mas também
modo de reprodução social ou modo de controle do metabolismo social ou
troca orgânica historicamente determinado.
Na fase
histórica da crise estrutural do capital desenvolve-se com intensidade e
amplitude, o sociometabolismo da barbárie que possui como traço
histórico-ontológico, a degradação estrutural da troca orgânica entre
homem e natureza no sentido amplo de “natura naturans” e “natura
naturata”. Por isso, temos por um lado, a crise ecológica; e por outro
lado, a crise do humano. A dinâmica histórica posta pelo novo
metabolismo social do trabalho com a nova precariedade salarial instaura
o que podemos considerar como sendo a crise do humano como crise do
trabalho vivo. Ela se compõe do complexo de crises que decorrem do
processo de precarização-do-homem-que-trabalha: crise da vida pessoal;
crise de sociabilidade; crise de auto-referência humano-pessoal.
A vigência
plena do capitalismo manipulatório sob a dominância do capital
financeiro, com a precarização estrutural do trabalho, caracterizada
pela presença do desemprego de massa e a nova precariedade salarial
compõem o cenário de barbárie como metabolismo social, isto é, processo
cotidiano de desefetivação do ser genérico do homem. Deste modo,
dessocialização e manipulação reflexiva dilaceram o devir humano dos
homens, obliterando tendencialmente sua capacidade de “negação da
negação” – eis o sentido da barbárie social.
O estado de
barbárie social é a nova condição histórica no interior da qual os
homens e mulheres fazem a história. É uma etapa de crise social
irremediável contínua e persistente que afeta a ordem burguesa global.
Contra o estado de barbárie social, as multidões se insurgem. Mas
trata-se ainda de multidões com insurgências contingentes que expressam,
com seu movimento de rebeldia, a presença efetiva e ampliada da
condição de proletariedade. Não se trata da classe do proletariado,
apesar da multidão estar imersa na condição de proletariedade.
A presença
da desefetivação humano-genérica que caracteriza o sociometabolismo da
barbárie não implica anulação da capacidade de resposta e a
dessocialização e manipulação reflexiva que caracteriza o sistema do
capitalismo manipulatório não conduz irremediavelmente à inércia
coletiva. O estado de barbárie social não significa o colapso da
história, mas sim, pelo contrário, a necessidade radical de fazer
história. Entretanto, os obstáculos objetivos para a “negação da
negação” na perspectiva da consciência de classe se colocam tendo em
vista o estado de barbárie social.
A etapa
histórica de crise do capitalismo global que assistimos hoje põe com
intensa candência a contradição radical entre a necessidade do controle
social – isto é, o socialismo – e os obstáculos efetivos à
democratização radical das sociedades humanas postos pelo estado de
barbárie social. O controle social e a democratização radical das
sociedades humanas implica a formação efetiva da classe social do
proletariado como sujeito histórico-coletivo constituído por
individualidades pessoais humano-genéricas capazes de “negação da
negação” da ordem sociometabólica do capital.
Com a nova
etapa de crise do capitalismo global surge nos países capitalistas mais
desenvolvidos – como EUA e Europa – os movimentos sociais das multidões
imersas na condição de proletariedade que expressam em si e para si,
carecimentos radicais de democratização efetiva da vida social num
cenário de barbárie histórica de alta intensidade. Na verdade, as
multidões de “indignados”, compostos em sua maioria por jovens e adultos
precários, desempregados, sem perspectiva de futuro no interior da
ordem burguesa. Trata-se de multidões de proletários histórico-mundiais,
como diria Marx e Engels (inclusive proletários de “classe média”,
órfãos do Estado de bem-estar social). Entretanto, os “indignados” não
são capazes de expressar em si e para si, a “negação da negação” no
sentido de ser o sujeito histórico-político de classe capaz de operar o
salto qualitivamente novo no plano sócio-político e inclusive
sociometabólico. Os “indignados”, como o espectro de Hamlet, clamam nas
praças que há algo de podre no reino do capitalismo desenvolvido (o dito
“Primeiro Mundo”). Ou como o menino da fábula de Hans Christian
Andersen, exclama que o rei está nu. É a resposta humana possível – hoje
– à ordem da barbárie social.
Desde as
suas origens como modo de produção social, a barbárie histórica tem
caracterizado o capitalismo. Massacres, genocídios e múltiplas formas de
degradação humana caracterizam a civilização do capital em seu
desenvolvimento histórico como traço indelével da história das
sociedades de classes, caracterizada pela divisão entre explorados e
explorados, oprimidos e opressores. A barbárie histórica dentro da
civilização do capital é um traço ineliminável do desenvolvimento
contraditório do capitalismo histórico. Entretanto, o que salientamos é
que, em sua etapa de crise estrutural, o capital explicita outra
dimensão particular-concreta de barbárie histórica: o que denominamos de
“barbárie social”, a barbárie como metabolismo social, que emerge, com
vigor, na época da decadência histórica do capitalismo mundial e que se
caracteriza pela desefetivação do ser genérico do homem.
Como Karl
Marx e Friedrich Engels, concebemos a barbárie como dizendo respeito,
por um lado, a uma temporalidade histórica da evolução cultural da
espécie humana (a barbárie é uma etapa do desenvolvimento histórico que
antecede a civilização); e por outro lado, como uma dimensão intrínseca
do modo de produção capitalista, sendo ela, deste modo, um traço
compositivo essencial do capitalismo industrial como modo de produção de
mercadorias (é o que Marx observou como sendo a “barbárie dentro da
civilização”). Portanto, buscamos salientar a percepção da barbárie como
traço histórico compositivo da civilização do capital. Ao invés de
serem antípodas, para Marx, a barbárie é determinação reflexiva da forma
histórica de civilização do capital.
Deste modo,
podemos distinguir a “barbárie exterior a civilização” e a “barbárie
interior a civilização” ou “barbárie histórica” propriamente dita. Um
detalhe: a “barbárie social” que temos salientado acima seria uma
dimensão compositiva da barbárie histórica na etapa da crise estrutural
do capital e vigência do capitalismo manipulatório.
1.
A“barbárie exterior a civilização” é identificada como etapa do
desenvolvimento histórico da espécie humana (por exemplo, a barbárie dos
povos primitivos). Deste modo, Marx concebeu a barbárie como estágio de
desenvolvimento histórico quando, por exemplo, nas suas notas
etnológicas (“Ethnological Notebooks”), assumiu o conceito de barbárie como estágio do desenvolvimento com base no trabalho de Lewis Henry Morgan (na sua “Ancient Society”, Morgan identificou a Barbárie Inferior com a manufatura da cerâmica; a Barbárie Média com a domesticação de animais no hemisfério oriental, a irrigação e a utilização do tijolo de adobe e da pedra na arquitetura do hemisfério ocidental, e Barbárie Superior com a manufatura do ferro e a invenção do alfabeto fonético).
Em “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Friedrich
Engels assumiu grande parte do esquema antropológico de Morgan,
incluindo o seu tratamento da barbárie como um estágio entre a Selvajaria e a Civilização.
2.
A“barbárie interior a civilização do capital” ou barbárie histórica pode
ser identificada com os modos de brutalidades que vigoram nas
sociedades de classes (guerras, massacres, degradação humana e
destruiçãoem massa). Ocapitalismo histórico como a sociedade de classes
mais desenvolvida, reiterou, em escala planetária, brutalidades
terríveis a serviço da expansão do capital. Por exemplo, nas etapas do
colonialismo e imperialismo, os atos de brutalidades são inomináveis,
expondo com vigor a concepção de Marx da “barbárie interior a
civilização do capital”. Deste modo, a barbárie que ressurge no interior
da civilização burguesa aparece como “barbárie histórica”.
É
interessante observar que ao criticar o colonialismo, Marx trata não os
povos colonizados como bárbaros, mas o contrário – os burgueses como
aqueles que levam a barbárie interior da civilização do capital, para a
periferia capitalista. A burguesia exporta barbárie na medida em que
“…podem modelar o mundo conforme a sua própria imagem sem qualquer
interferência”. Diz Marx, em 1853, no artigo “Os futuros resultados do
domínio britânico na Índia”: “A profunda hipocrisia e a barbárie
inerente da civilização burguesa jazem desvelados diante dos nossos
olhos, quando os desviamos do seu lar, onde ela assume formas
respeitáveis, para as colônias, onde ela está nua”.
Para Marx, o
colonialismo inglês na Índia expunha, derrubando a máscara de
hipocrisia burguesa, a barbárie inerente a civilização do capital. Seria
na periferia capitalista que a burguesia metropolitana liberal e
democrática, exporia sua face bárbara, criando aquilo que Mike Davis
iria denominar de “holocaustos vitorianos”, tendo em vista a
expropriação imperialista do excedente da sociedade indiana, provocando
ondas massivas de fome e a imposição de salários miseráveis aos
trabalhadores indianos. Por exemplo, no livro “Holocaustos coloniais”,
Davis observa que as rações que os britânicos proporcionavam a
trabalhadores ocupados em trabalhos árduos em Madras, na Índia, em 1877,
tinham um valor calórico inferior àquele que os nazistas vieram a
proporcionar aos prisioneiros forçados a trabalho árduo no campo de
concentração de Buchenwald em 1944.
Portanto, o
colonialismo inglês na Índia devastou a indústria daquele país,
difundindo a miséria e a degradação, enquanto transformava a Índia num
simples produtor de matérias-primas agrícolas para a Grã-Bretanha. De
fato, o imperialismo britânico serviu como força de destruição,
demolindo as forças produtivas da Índia e provocando subdesenvolvimento
mesmo quando introduzia as forças da indústria moderna dentro da
sociedade indiana.
Ao discorrer
sobre “A gênese do capitalista industrial (no livro I de “O Capital”),
Marx citou a obra “Colonisation and Christianity”, de William
Howitt, que escrevera: “As barbaridades e as atrocidades desesperadas da
assim chamada raça cristã, em toda a parte do mundo, e sobre todos os
povos que foram capazes de subjugar, não têm paralelo em outros de
qualquer outra raça, mesmo feroz, mesmo analfabeta, e mesmo despida de
compaixão e de vergonha, em qualquer era da Terra”.
Entretanto, a
“barbárie histórica dentro da civilização do capital” se expressa
também por meio da exploração e espoliação vinculada diretamente ao modo
de produção de mercadorias nos primórdios da Revolução Industrial. Por
exemplo, nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” (de 1844), Marx,
referindo-se à degradação do trabalho vivo que sobreveio com a ascensão
do capitalismo nos primórdios da Revolução Industrial, observou: “As formas (e instrumentos ) mais brutais de trabalho humano reaparecem [sob o capitalismo]; por exemplo, o moinho de castigo (tread-mill) utilizado
pelos escravos romanos tornou-se o modo de produção e o modo de
existência de muitos trabalhadores ingleses”. Mais tarde, em 1847, num
discurso sobre “Salários”, Marx referiu-se metaforicamente à utilização
do moinho de castigo na moderna produção capitalista (e nos sistemas
prisionais) como uma doença. Diz ele: “O moinho de castigos re-emergiu
outra vez dentro da civilização. A barbárie reaparece, mas criada no
regaço da própria civilização e pertencendo-lhe, portanto barbárie
leprosa, uma barbárie que é a lepra da civilização”. No “Manuscrito
econômico de 1861-3”, Marx citou uma passagem do economista russo
Heinrich Friedrich von Storch que denunciava a degradação das condições
de trabalho e o enfraquecimento da saúde dos trabalhadores assalariados
como um reflexo do retorno à barbárie que freqüentemente acompanhou o
crescimento da civilização burguesa.
Na medida em
que a civilização burguesa possui a barbárie inerente a si, ela – a
barbárie – tende sempre a reaparecer no interior do desenvolvimento
critico do capitalismo histórico. Nossa hipótese é que a crise
estrutural do capital alterou o espaço-tempo da barbárie histórica. Ela
não se restringe tão-somente aos movimentos territoriais do
neocolonialismo e imperialismo que acompanham a nova ordem global do
capital sob a hegemonia político-militar dos Estados Unidos da América;
nem ao “momentum” de interregno da acumulação de capital e crises de
superprodução que caracterizaram o capitalismo histórico; nem apenas a
exploração e espoliação vinculada diretamente ao trabalho estranhado e a
produção de mercadorias. Os territórios da barbárie histórica – a
barbárie inerente a civilização burguesa – extrapolam os registros
sócio-territoriais originais.
Na verdade, a
barbárie histórica permeia hoje, com a crise do capitalismo global, a
totalidade do metabolismo social do sistema produtor de mercadorias. Com
a crise estrutural do capital, o sociometabolismo da barbárie assume
uma dimensão global, instalando-se no próprio núcleo territorial
orgânico do sistema mundial do capital e centro dinâmico de acumulação
de valor.
Com a
precarização estrutural do trabalho, que se torna traço ineliminável e
recorrente da dinâmica social capitalista, a barbárie histórica em sua
dimensão de barbárie social, aparece como crise da vida pessoal das
individualidades de classe cada vez mais imersas na condição de
proletariedade. É a crise pessoal que, nos marcos da nova precariedade
salarial, decorre da insegurança social para adultos e corrosão da
futuridade e frustração irremediável para jovens licenciados.
Com a
precarização do homem-que-trabalha, a barbárie social aparece como
barbárie interior, corroendo, como “lepra”, a percepção lúcida e o
entendimento racional de homens e mulheres sobre os outros (crise de
sociabilidade) e sobre si mesmo (crise de auto-referencia pessoal). Na
verdade, explicita-se com vigor o estranhamento caracterizado por Georg
Lukács como sendo a contradição insana entre o desenvolvimento das
forças produtivas e, portanto, o desenvolvimento da capacidade humana, e
o desenvolvimento da personalidade humana. Na época da barbárie social,
o desenvolvimento da capacidade humana que se manifesta no
desenvolvimento espetacular das forças produtivas do trabalho social,
tende a potencializar tão-somente capacidades singulares,
desfigurarando, aviltando, etc, a personalidade do homem.
***
Giovanni Alves é
doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e
professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com
bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do
Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e
artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
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Terceira modernidade do capital, crise de civilização e barbárie social
O sentido
radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito a incapacidade da
forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de
desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas pela nova
materialidade sócio-técnica em virtude da degradação das condições
materiais de reprodução humana, inclusive no pólo desenvolvido do
capitalismo global. Este é um traço indelével do esgotamento histórico
de um modo planetário de controle do metabolismo social baseado na
propriedade privada dos meios de produção social e divisão hierárquica
do trabalho.
O que
consideramos como crise estrutural do capital possui as caracteristicas
de uma “sindrome” social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado
por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social
crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global.
É o que temos denominado de sociometabolismo da da barbárie ou barbárie
social.
Na verdade,
vivemos uma nova era civilizatória que inaugura a terceira modernidade
do capital. Sob as condições da barbárie social, o capitalismo histórico
altera qualitativamente a dinâmica da luta de classes, que se
contrasta, por exemplo, com a dinâmica histórica inscrita na segunda
modernidade do capital, caracterizada pela lógica cultural do
modernismo.
O capital
adquire sua dimensão real tão-somente a partir da segunda modernidade,
ou seja, a instauração do modo de produção capitalista propriamente
dito. Constitui-se a grandeindústria com o sistema de máquinas que põe a
subsunção real do trabalho ao capital. Esta importante inflexão
histórica propiciou um salto qualitativamente novo na dinâmica
civilizatória do capital. É possível dizer que, com a segunda
modernidade do capital, que tem inicio com a Primeira Revolução
Industrial, a partir do século XIX, e que prossegue até a última metade
do século XX, o capital se consolida como sistema planetário, ou seja,
sistema de controle do metabolismo social global. É nesse período
histórico que se constitui o mercado mundial e todas as determinações
sociais descritas num impressionante vigor literário por Karl Marx e
Friedrich Engels n´O Manifesto Comunista, de 1848.
A segunda
modernidade do capital é a modernidade-máquina, temporalidade histórica
em que se constituiu um estilo de pensamento, de política e de
sensibilidade estética que poderíamos caracterizar como modernista. Foi
nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo ocidental, no bojo do qual
se desenvolveu o processo de modernização que constituiu-se a classe social (burguesia e proletariado) e o Estado nacional em torno da qual se consolida o território propriamente dito da Nação e da Cidade. São tais determinações essenciais que irão compor a identidade social de homens e mulheres da segunda modernidade. Enfim, a segunda modernidade é a modernidade propriamente dita.
Por
modernidade entendemos um conjunto de experiências de vida: experiência
do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e
perigos da vida, que é hoje em dia compartilhado por homens e mulheres
em toda parte do mundo. Assim, desde o século XVI, constitui-se no
Ocidente a modernidade do capital, que assume diversas formas
histórico-temporais, por conta do desenvolvimento do modo de produção
capitalista.
Diremos com
Marshall Berman, no seu livro clássico “Tudo que é sólido se desmancha
no Ar”, que “ser moderno é encontrarmo-nos em um meio-ambiente que nos
promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós
mesmos e do mundo – e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que
temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos. Ambientes e experiências
modernos atravessam todas as fronteiras de geografia e de etnias, de
classe e nacionalidade, de religião e ideologia; neste sentido, pode-se
dizer que a modernidade une todo o gênero humano. Mas é uma unidade
paradoxal, uma unidade de desunidade: envolve-nos a todos num redemoinho
perpétuo de desintegração e renovação, de luta e contradição, de
ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que,
como disse Marx, ´tudo o que é sólido se desmancha no ar´”. Esta
percepção de Marshal Berman é a percepção aguda da modernidade clássica,
a segunda modernidade do capital, a modernidade da grande indústria e
do modernismo, que irá expor a forma essencial deste processo de
modernização do capital.
Por
“modernismo”, que se vincula a esta segunda modernidade, entendemos como
sendo, de acordo com Perry Anderson (no livro “As origens da
pós-modernidade”), “a espantosa variedade de visões e idéias que visam a
fazer de homens e mulheres os sujeitos, ao mesmo tempo que os objetos,
da modernização, a dar-lhe o poder de mudar o mundo que os está mudando,
a abrir-lhes caminho em meio ao turbilhão e apropriar-se dele”. Deste
modo, o modernismo como lógica cultural da segunda modernidade do
capital, são visões e valores carentes de utopia social. Enfim, são
visões culturais e políticas que emergem no período de ascensão
histórica do capital. O modernismo é o espírito político-cultural da
segunda modernidade do capital.
Deste modo,
podemos distinguir a primeira modernidade do capital, que transcorreria
do século XVI à última metade do século XVIII e seria caracterizada pela
ascensão histórica do capitalismo comercial e capitalismo
manufatureiro. Neste período de constituição do capitalismo moderno, as
sociedades européias ainda estavam imersas em relações sociais
tradicionais, marcadas pela dominação de classe aristocráticas e
agrárias, ainda não subsumidas à lógica do capital industrial, mas
apenas à lógica do capital mercantil.
A segunda
modernidade do capital seria a modernidade da Primeira e Segunda
Revolução Industrial, do surgimento da grande indústria, do modo de
produção capitalista propriamente dito, da subsunção real do trabalho ao
capital, da transição dolorosa e luminosa para a última modernidade do
capital, a terceira modernidade.
A terceira
modernidade do capital seria a modernidade tardia, a modernidade sem
modernismo, ou a modernidade pós-modernista. É a modernidade do espírito
do toyotismo que explicita um nova implicação sociometabólica da
produção social: a maquinofatura em contraste com a manufatura ea
grandeindústria. A terceira modernidade é a modernidade do capitalismo
manipulatório e da crise estrutural do capital. É a modernidade da
predominância do capital financeiro sobre as demais frações do capital. A
terceira modernidade seria a modernidade do precário mundo do trabalho e
da barbárie social. Enfim, com a terceira modernidade nos inserimos
noutra temporalidade histórica do capital, com impactos decisivos na
objetividade e subjetividade da classe dos trabalhadores assalariados e
do trabalho vivo. Com a terceira modernidade altera-se a dinâmica
histórica da luta de classes na medida em que está posta a precarização
do homem-que-trabalha como um traço indelével da nova precariedade
salarial.
Apesar de
estarmos inseridos na temporalidade histórica da terceira modernidade do
capital, somos constrangidos ainda, no plano da memória histórica e da
imagem social, pela segunda modernidade do capital, a modernidade do
modernismo, a modernidade da forma cultural prenhe de projetos de
utopias concretas (como diria Ernst Bloch).
Enquanto a
primeira modernidade do capital era prenhe de utopias abstratas, como a
de Thomas Morus (“A Utopia”) ou de Tomazo di Campanella (“Cidade do
Sol”); ou mesmo de Charles Fourier e Robert Owen; a segunda modernidade
do capital nasce com o proletariado industrial e os projetos sociais do
comunismo político em meados do século XIX no bojo da crise de 1848,
aprimeira grande crise do capitalismo ocidental. Seu marco histórico
maduro são as revoluções sociais de 1848, evento crucial que inspirou o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. As revoluções sociais de 1848 abrem um novo período histórico da luta de classes.
O processo
social da segunda modernidade do capital é caracterizado pelo espírito
do modernismo, isto é, o conjunto de doutrinas e práticas estéticas e
políticas amplamente heteróclitas, assincrônicas e intrinsecamente
contraditórias, como a própria modernização do capital no período de sua
ascensão histórica. Neste período, temos a ascensão e crise do Estado
social, com seus partidos e sindicatos de classe e com os projetos de
utopias sociais caracterizados pelo comunismo histórico e pela
social-democracia clássica. Constituiu-se o mundo do trabalho organizado
cuja dinâmica da luta de classes propiciou uma precariedade salarial
caracterizada pelo emprego estável dos trabalhadores assalariados
organizados. É o período histórico das conquistas sociais do trabalhismo
organizado, da legislação do trabalho e do Welfare State. Nele
vigoram como estilo cultural e político da subjetivação de classe,
tanto o reformismo social-democrata, quanto o comunismo político como
forças estruturantes da defensividade do trabalho.
Na
temporalidade histórica da segunda modernidade do capital ocorre o
surgimento e desenvolvimento dos Estados nacionais, com destaque para a
constituição hegemônica dos Estados Unidos como nação moderna, de crise
européia, dos conflitos imperialistas, da Primeira e Segunda Guerra
Mundial, da colonização, descolonização e ocidentalização do Terceiro
Mundo, da indústria cultural, da modernização avassaladora em todas as
instâncias da vida social (o que só ocorreria após a Segunda Guerra
Mundial). Enfim, é um período de intensa “destruição criativa”, último
período histórico de ascensão do capital, uma ascensão de destruição de
modos de vida tradicionais vinculados à dominação de classes
aristocráticas e agrárias, que só ocorreriam de vez após as duas guerras
mundiais que atingiram o Continente Europeu (é tal transição do
tradicional para o moderno que iria dar aquela sensação de ambigüidade
típica do modernismo – euforia e rebeldia, tão típica dos movimentos
culturais modernistas, do surrealismo ao rock and roll dos The Beatles).
A crise da
segunda modernidade do capital ocorre em meados da década de 1960,
década de transição, que anunciaria, no centro do sistema do capital, a
passagem para a terceira modernidade, modernidade tardia ou modernidade
sem modernismo. Ela irá se compor na medida em que se dissolvem as
coordenadas históricas compositivas do modernismo.
Nos
primórdios do século XXI vivemos sob a terceira modernidade que inaugura
a temporalidade histórica da crise estrutural do capital com
implicações qualitativamente novas na dinâmica da luta de classes, na
medida em que se altera o processo social de subjetivação de classe.
A
mundialização do capital e a vigência do regime de acumulação
predominantemente financeirizado; as políticas neoliberais, a acumulação
flexível e o espírito do toyotismo; e a instauração da sociedade em
rede a partir da revolução informacional no bojo do capitalismo
manipulatório, colocam novas determinações concretas no processo de
formação (e luta) da classe social do proletariado.
Por um lado,
amplia-se a condição de proletariedade que, com a nova precariedade
salarial, incorpora as camadas sociais ditas de “classe média”. A nova
precariedade salarial que inaugura a “nova questão social” (Robert
Castel), explicita a precarização estrutural do trabalho como um traço
compositivo ineliminável da npva dinâmica do capitalismo global. Por
outro lado, a precarização do homem-que-trabalha, traço indelével da
nova precariedade salarial, com a dessubjetivação de classe, “captura”
da subjetividade e redução do trabalho vivo a força de trabalho, colocam
obstáculos efetivos à formação da consciência de classe e, portanto, à
formação do sujeito histórico do proletariado como classe social.
Deste modo, o
nosso conceito de barbárie social diz respeito a condição social
crítica qualitativamente nova que surge na terceira modernidade do
capital e que coloca obstáculos efetivos à formação do sujeito histórico
de classe. Na verdade, ocorre um processo de deformação da classe pari pasu
à crise de formação contraditória do valor no bojo da crise estrutural
do capital (formação contraditória no sentido de que a crise de formação
do valor se põe no bojo da disseminação da forma-valor pela vida
social).
Com a nova
precariedade salarial, que contém no seu bojo o estado de barbárie
social, inaugura-se, deste modo, a era de crise social como crise de
civilização, caracterizada, no plano sociometabolico, pela crise da vida
pessoal, crise de sociabilidade e crise de auto-referencia pessoal. A
terceira modernidade, com o sociometabolismo da barbárie, que reduz
tempo de vida a tempo de trabalho, coloca em questão, de modo
qualitativamente novo, o devir humano dos homens.
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Giovanni Alves é
doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e
professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com
bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do
Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e
artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Crise estrutural do capital e precarização do homem-que-trabalha
A verdadeira
crise do nosso tempo histórico não é a crise das economias
capitalistas, mas sim a crise do homem como sujeito histórico de classe,
isto é, ser humano-genérico capaz de dar respostas radicais à crise
estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões. É
importante salientar que crise não significa morte do sujeito histórico
de classe, muito menos sua supressão irremediável, mas tão–somente a
explicitação plena da ameaça insuportável à perspectiva de futuro, risco
de desefetivação plena do ser genérico do homem e, ao mesmo tempo,
oportunidade histórica para a formação da consciência de classe e,
portanto, para a emergência da classe social de homens e mulheres que
vivem da venda de sua força de trabalho e estão imersos na condição de
proletariedade.
A crise é o
momento em que se explicita, em sua dramaticidade histórica (e diriamos
hoje, midiática), a “alienação” como um poder “insuportável”, isto é, um
poder contra o qual homens e mulheres enquanto individualidades
pessoais e sob determinadas condições, se insurgem ou se indignam na
medida em que se torna perceptível, mesmo no plano da consciência
contingente de classe, a sua condição de proletariedade.
Na Ideologia Alemã,
de 1847, Karl Marx e Friedrich Engels, conseguiram apreender, com
genialidade visionária, o que torna-se hoje cada vez mais perceptível no
capitalismo global do século XXI: a constituição de uma massa da
humanidade como massa totalmente “destituída de propriedade” e que se
encontra, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riquezas e de
cultura existente de fato.
Para Marx e
Engels, a explicitação plena da condição de proletariedade – e que está
na raiz dos movimentos de jovens precários no mundo do capitalismo mais
desenvolvido – pressupõem um alto grau de seu desenvolvimento das forças
produtivas, que segundo eles, “contém simultaneamente uma verdadeira
existência humana empírica, dada num plano histórico-mundial e não na
vida puramente local dos homens”. E salientam: “Apenas com este
desenvolvimento universal das forças produtivas dá-se um intercâmbio
universal dos homens, em virtude do qual, de um lado, o fenômeno da
massa ‘destituída de propriedade’ se produz simultaneamente em todos os
povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa
das revoluções dos outros; e, finalmente, coloca indivíduos
empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos
locais”.
Deste modo, é
sob as condições históricas da crise do sujeito de classe que se coloca
a oportunidade radical de sua afirmação objetiva e subjetiva, seja
enquanto massa “destituida de propriedade”, seja enquanto indivíduos
empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos
locais” (não é desprezivel o papel da Internet com seus blogs
alternativos e redes sociais – como facebook e twitter – na construção
das individualidades histórico-mundiais).
Por outro lado, é importante salientar também que a crise estrutural do capital não significa incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista. Crise estrutural do capital não
significa estagnação e colapso da economia capitalista mundial. Apesar
da sua crise estrutural, o capital como sistema de acumulação de valor e
modo estranhado de metabolismo social, tem-se expandido nos últimos
trinta anos, apresentando, por exemplo, na passagem para o século XXI,
índices exuberantes de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nas fronteiras da modernização do capital (como Índia, China e Sudeste Asiático).
Apesar da
crise financeira e crise das dívidas soberanas nos EUA e União Européia,
em 2008 e 2011, é provável que, a curto ou médio prazo, as economias
norte-americanas e europeias possam retomar, a duras custas, o
crescimento do PIB. Entretanto, percebe-se cada vez mais que o
crescimento do PIB não se traduz em bem-estar social. Pelo contrário,
nas últimas décadas aumentou nos países ricos a precariedade do
trabalho, a contenção dos gastos públicos, corte de direitos sociais e a
corrosão do Estado-Providência. Portanto, torna-se visível, cada vez
mais, a incapacidade estrutural do capital como modo de controle
estranhado do metabolismo social e sistema produtor de mercadorias, em
realizar suas promessas civilizatórias de desenvolvimento e bem-estar
social, inclusive no núcleo orgânico mais desenvolvido do capitalismo
histórico.
Portanto, o
sentido radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito à
incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as
possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas
pela nova materialidade sócio-técnica em virtude da degradação das
condições materiais de reprodução humana, inclusive no pólo desenvolvido
do capitalismo global. Este é mais um elemento compositivo do
esgotamento histórico de um modo de controle do metabolismo social
baseado na propriedade privada dos meios de produção social e divisão
hierárquica do trabalho.
Na verdade, a
crise estrutural do capital possui as características de uma “síndrome”
social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado por um conjunto de
sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”,
suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. Como
salientou Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere, “a crise
consiste no fato que o velho morre e o novo não pode nascer: neste
interregno verificam-se os mais variados fenômenos mórbidos” (é o que
iremos tratar nos próximos artigos como sendo a barbárie social).
A “condição
crítica” da síndrome do capital é a convergência histórica de um
conjunto de crescentes contradições sociometabólicas do sistema mundial
do capital, principalmente a partir de meados da década de 1970. A
principal delas diz respeito à contradição capital-trabalho, na medida
em que é através do trabalho que o sociometabolismo do capital vincula
os seres humanos à natureza: a aguda elevação da produtividade do
trabalho em virtude do processo cumulativo do progresso técnico, tende a
explodir a materialidade do valor-trabalho, uma “implosão” contínua e
permanente no espaço-tempo comprimido do novo tempo histórico do
capitalismo global. É por isso que o consumo de trabalho vivo de uma
parte da força de trabalho torna-se irrelevante para o sistema do
capital. (José Nun, um dos teóricos da CEPAL, irá chama-las de “massa
marginal” e Robert Kurz, de “sujeitos monetários sem dinheiro”). Eis a
raiz da ampliação persistente da precariedade social do trabalho no
plano histórico-mundial.
Em 1863, nos Grundrisse,
Karl Marx conseguiu apreender o traço radical do nosso tempo histórico,
ao observar que, sob o capitalismo, “o tempo é tudo, o homem já não é
nada; é, quando muito, a carcaça do tempo”. Na verdade, são as “massas
marginais”, os “sujeitos monetários sem dinheiro” ou ainda os
homem-carcaças – a massa da humanidade “destituída de propriedade” – que
estão se insurgindo nos riots dos bairros pobres de Londres ou nos movimentos sociais do precariato indignado que ocupa as praças de Lisboa e Madri.
Enfim, a
crescente redundância do trabalho vivo e da força de trabalho é a “ponta
do iceberg” de um sistema de metabolismo social baseado na precariedade
social do trabalho e que expõe cada vez mais seus limites estruturais,
demonstrando ser incapaz de conter o processo civilizatório
humano-genérico.
Deste modo,
podemos caracterizar a crise estrutural do capital como sendo, por um
lado, no plano da objetividade social, pela (1) crise de formação
(produção/realização) de valor, onde a crise capitalista aparece, cada
vez mais, como sendo crise de abundância exacerbada de riqueza abstrata.
Entretanto, temos salientado que o caráter radical da crise estrutural
do capital, diz respeito a (2) crise de (de)formação do sujeito
histórico de classe instaurado pelo estado de barbárie social. A crise
de (de)formação do sujeito de classe é uma determinação tendencial do processo de precarização estrutural do trabalho que, nesse caso, aparece como precarização do homem-que-trabalha.
A
precarização do trabalho não se resume àquilo que pensa a sociologia do
trabalho, isto é, a mera precarização social do trabalho ou precarização
dos direitos sociais e direitos do trabalho de homens e mulheres
proletários. A precarização do trabalho implica também a
precarização-do-homem-que-trabalha como ser humano-genérico (o que
explica a pandemia de depressão e transtornos psicológicos do
homem-que-vive-do-trabalho).
Sob o
capitalismo global, a manipulação (ou “captura” da subjetividade do
trabalho pelo capital) assume proporções inéditas, inclusive na corrosão
político-organizativa dos intelectuais orgânicos da classe do
proletariado. Com a disseminação intensa e ampliada de formas derivadas
de valor na sociedade burguesa hipertardia, agudiza-se o fetichismo da
mercadoria e as múltiplas formas de fetichismo social, que tendem a
impregnar as relações humano-sociais, colocando obstáculos efetivos à
formação da consciência de classe necessária e, portanto, à formação da
classe social do proletariado.
O processo
de dessocialização do proletariado, com impactos na consciência de
classe e o poder da ideologia no bojo do capitalismo manipulatório com a
intensificação do fetichismo da mercadoria devido a vigência do mercado
na estruturação social, compôs um cenário qualitativamente novo de
riscos de desefetivação do homem como ser capaz de dar respostas
radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas
múltiplas dimensões. Deste modo, a barbárie se instaura como metabolismo
social, isto é, constitui-se a barbárie social, uma nova dimensão da
barbárie histórica dentro do capitalismo.
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Giovanni Alves
é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e
professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com
bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do
Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e
artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.