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CONTRATO
POR LICITAÇÃO
A
terceirização e a responsabilidade dos entes da administração pública
(*) Aldemiro
Rezende Dantas Júnior
A
administração pública, em interpretação que beira o autismo jurídico, preferiu
ler e entender, na decisão da ADC nr. 16, que ali se havia decidido sobre sua
plena irresponsabilidade pelas verbas trabalhistas, pois essa fiscalização a
ser exercida sobre a empresa contratada seria apenas em relação às obrigações
do contrato celebrado entre tal empresa e a administração pública, e não em
relação a cada um dos contratos de trabalho dos empregados da terceirizada.
1. INTRODUÇÃO
O
tema já deveria estar pacificado em todas as suas nuances. No entanto, a
insistência da administração em contratar mal, contratando empresas de fundo de
quintal, financeiramente inidôneas, e a tradicional resistência do
administrador público em pagar pelos serviços cuja prestação recebe, fazem com
que as discussões estejam sempre se renovando.
Quando
o Supremo Tribunal Federal decidiu a ADC nr. 16, chegou-se a acreditar que as
linhas mestras para a interpretação do tema estavam claras e definidas. No
entanto, como sempre ocorre nesses casos, a administração só leu – ou só
entendeu – a parte que lhe interessava. Agora, nova e recentíssima decisão do
Pretório Excelso vem lançar novas luzes sobre o assunto.
Recordemos,
de início, que se denomina terceirização a hipótese na qual uma empresa utiliza
o trabalho prestado pelos empregados de outra. Assim, o trabalhador é empregado
da empresa A (terceirizada), mas presta seus serviços diretamente para a empresa
B (tomadora dos serviços).
Em
regra, é ilícita essa utilização dos serviços do empregado por meio de empresa
interposta, e o vínculo de emprego, na realidade, se forma diretamente entre a
empresa tomadora dos serviços e o empregado. Nesse sentido é o item I, da
súmula 331, do TST, e na verdade se trata de aplicação do princípio da primazia
da realidade sobre a forma: os documentos estão a dizer que a empresa
terceirizada é a empregadora, mas os fatos mostram que o verdadeiro empregador
é a empresa tomadora dos serviços.
No entanto, existem exceções, ou seja, situações nas quais a terceirização é lícita e o vínculo não se forma diretamente com o tomador dos serviços, e a empresa terceirizada, efetivamente, é a empregadora. São essas exceções que nos interessam, neste pequeno texto. Em especial, por óbvio, trataremos das hipóteses nas quais o tomador dos serviços é ente que integra a administração pública.
Sobre essa situação, recentemente o STF
decidiu que é constitucional o artigo 71, §1º, da Lei nr. 8.666/93, que aponta
a isenção de responsabilidade da administração pública, nos casos em que a
empresa contratada não paga as parcelas trabalhistas, fiscais e comerciais. A
partir daí, propositada e equivocadamente, os entes da administração pública passaram
a fazer de conta que têm carta branca para contratar mal e não responder pela
inadimplência das empresas contratadas.
2. O QUE SE DEVE ENTENDER POR
“ENTES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA”
Deve-se entender por entes da administração pública não apenas as pessoas jurídicas de direito público, mas todos aqueles que, para contratar, precisam fazê-lo mediante licitação, nos termos da Lei nr. 8.666/93.
Assim, as regras aqui tratadas e as
conclusões obtidas serão aplicáveis à União, aos Estados e Municípios, ao
Distrito Federal, suas autarquias e fundações públicas, e, ainda, às empresas
públicas e sociedades de economia mista.
Insistindo no assunto, para os fins de
exame da responsabilidade do tomador dos serviços, nas hipóteses de
terceirização, deve-se entender por “administração pública” não apenas as
pessoas jurídicas de direito público, mas também as empresas públicas e
sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de direito privado, mas
contratam mediante licitação, pois a elas se aplicam os princípios da
administração pública.
O TST entende que, no caso das
terceirizações lícitas, ou seja, nos casos em que o vínculo de emprego não se
forma com o tomador dos serviços, pois a empresa terceirizada, efetivamente, é
a empregadora, o responsável principal pelas verbas trabalhistas é a empresa
terceirizada (empregadora), mas o tomador dos serviços responde de modo
subsidiário por tais verbas.
Em sua antiga redação, a Súmula 331, do TST, apontava que o tomador dos serviços responderia subsidiariamente pelas verbas trabalhistas, sem fazer qualquer distinção entre os particulares e os entes da administração pública. Assim, nos casos de terceirização lícita, seria irrelevante investigar se o tomador dos serviços era uma sociedade limitada, ou uma empresa pública, ou o próprio Estado, pois esse tomador, apenas pelo fato de sê-lo, já seria secundariamente responsável pelo pagamento, sendo chamado para efetuá-lo, caso o devedor principal (a empresa terceirizada) não o fizesse.
O governador do Distrito Federal, alegando que esse entendimento do TST correspondia à não aplicação do artigo 71, §1º, da Lei n. 8.666/93, ajuizou ação declaratória de constitucionalidade, perante o STF, para que dissesse que o referido dispositivo era constitucional. Foi a famosa ADC nr. 16.
O Supremo Tribunal Federal, em 2010, ao apreciar o pedido, declarou a constitucionalidade do dispositivo legal questionado. No entanto, o STF também mencionou que a constitucionalidade do dispositivo não significava a pura e simples irresponsabilidade dos entes da administração pública, e sim que estes não responderiam apenas pelo fato de terem sido os tomadores do serviço, mas que responderiam nos casos gerais da responsabilidade civil.
De modo mais claro, disse o Pretório Excelso que, ao contrário dos particulares, os entes da administração pública não poderiam ser responsabilizados apenas por terem contratado empresa terceirizada que não pagou as parcelas trabalhistas devidas aos próprios empregados, sendo necessário que em cada caso concreto fosse demonstrada a culpa desse ente da administração. Comprovada a culpa, haveria a responsabilidade subsidiária pelas verbas trabalhistas.
Essa culpa consistiria na falta de fiscalização, pela administração pública contratante, acerca do correto cumprimento, pela empresa contratada (a terceirizada) de suas obrigações trabalhistas. Seria, portanto, a culpa in vigilando.
Apenas para ilustrar, presenciamos
caso concreto em que a empresa terceirizada passou nove meses sem pagar
salários e quase dois anos sem depositar o FGTS. E a administração pública
contratante, no entanto, todos os meses pagava religiosamente o valor do
contrato, como se nada de anormal estivesse acontecendo. Ora, é evidente que esse
ente da administração pública nunca fiscalizou coisa alguma, e por isso,
deveria responder de modo subsidiário pelas verbas trabalhistas que o
empregador deixou de pagar.
Pois bem, a partir dessa decisão do
STF, o Tribunal Superior
do Trabalho, modificou a Súmula 331, passando a separar as hipóteses em que o
tomador dos serviços é um particular (item IV, da Súmula 331) daquelas em que
esse tomador é ente da administração pública (item V). Assim ficaram redigidos
os mencionados itens:
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte
do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços
quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e
conste também do título executivo judicial.
V - Os
entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem
subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua
conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993,
especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e
legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade
não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela
empresa regularmente contratada.
Como se percebe a partir da simples leitura, a responsabilidade do particular decorre simples e diretamente do fato de ser o tomador dos serviços, sem qualquer avaliação sobre a existência ou inexistência de culpa. No entanto, os entes integrantes da administração pública só respondem se, nessa qualidade de tomadores dos serviços, tiverem agido com culpa, consistindo essa, principalmente, na “fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora”.
A administração pública, no entanto, em interpretação que beira o autismo jurídico, preferiu ler e entender, na decisão da ADC nr. 16, que ali se havia decidido sobre sua plena irresponsabilidade pelas verbas trabalhistas, pois essa fiscalização a ser exercida sobre a empresa contratada seria apenas em relação às obrigações do contrato celebrado entre tal empresa e a administração pública, e não em relação a cada um dos contratos de trabalho dos empregados da terceirizada.
Por causa desse entendimento deturpado, os entes da Administração Pública, vencidos nas três instâncias da esfera trabalhista, continuaram a provocar o STF, alegando que as decisões trabalhistas estavam desrespeitando o efeito vinculante da decisão proferida na ADC nr. 16 (CF, art. 102, §2º).
Por esse motivo, o Pretório Excelso decidiu que o tema era de repercussão geral, a ser apreciado por aquela Corte Maior. Assim, milhares de decisões trabalhistas referentes a casos de terceirização em que o tomador dos serviços era ente da administração pública, tiveram seu andamento suspenso, após a última decisão do TST, para aguardar o pronunciamento (mais um) do STF sobre o assunto.
4. A DECISÃO DO STF NA RECLAMAÇÃO 13.760/SP.
No dia 1.10.2013, foi publicado no
DJE o inteiro teor do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na
Reclamação nr. 13.760, na qual o Estado de São Paulo alegava que o Tribunal
Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas e interior de SP) havia
desrespeitado a decisão proferida na ADC nr. 16, ao condenar o Estado, de modo
subsidiário, ao pagamento das verbas trabalhistas não honradas pela empresa
contratada.
O Relator, Ministro Luiz Fux, em decisão monocrática, negou seguimento à Reclamação, o que levou o Estado reclamante a interpor o Agravo Regimental, apreciado pelo Pleno do STF.
Na referida decisão, e espantando qualquer dúvida que os entes da Administração Pública ainda fingissem ter, o Plenário do STF disse clarae textualmente que “as entidades públicas contratantes devem fiscalizar o cumprimento, por parte das empresas contratadas, das obrigações trabalhistas referentes aos empregados vinculados ao contrato celebrado”.
A decisão do Supremo Tribunal Federal ficou assim ementada:
STF - DJe nº 193/2013 Divulgação: terça-feira, 01 de outubro
ORIGEM: AIRR - 1162000320065150046
- TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO
AG.REG. NA
RECLAMAÇÃO 13.760 SÃO PAULO
RELATOR
:MIN.
LUIZ FUX
AGTE.(S) :ESTADO
DE SÃO PAULO
PROC.(A/S)(ES) :MARCIA
AMINO
AGDO.(A/S) :FRANCISCO
MENDES DAS CHAGAS
ADV.(A/S) :ARI
RIBERTO SIVIERO
AGDO.(A/S) :SOLUÇÃO
SEGURANÇA E VIGILÂNCIA
LTDA.
INTDO.(A/S) :TRIBUNAL
REGIONAL DO TRABALHO
DA 15ª REGIÃO
EMENTA:
AGRAVO REGIMENTAL
NA RECLAMAÇÃO. RESPONSABILIDADE
SUBSIDIÁRIA. ARTIGO
71, § 1º, DA LEI 8.666/93.
CONSTITUCIONALIDADE. ADC Nº 16.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DEVER
DE FISCALIZAÇÃO. RESPONSABILIZAÇÃO DO ENTE PÚBLICO NOS CASOS DE CULPA
“IN ELIGENDO” E
DE CULPA “IN VIGILANDO”. REEXAME
DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO
REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1.
A aplicação do artigo 71, § 1º, da Lei n. 8.666/93,
declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC nº 16,
não exime a entidade da Administração Pública do dever de observar os
princípios constitucionais a ela referentes, entre os quais os da legalidade e
da moralidade administrativa.
2.
As entidades públicas contratantes devem fiscalizar o cumprimento,
por parte das empresas contratadas, das obrigações trabalhistas referentes aos
empregados vinculados ao contrato celebrado. Precedente: Rcl 11985-AgR, Rel.
Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO
DJe-050 DIVULG 14-03-2013 PUBLIC 15-03-2013.
3.
A comprovação de culpa efetiva da Administração Pública
não se revela cognoscível na estreita via da Reclamação Constitucional, que não
se presta ao reexame de matéria fático-probatória. Precedentes: Rcl 3.342/AP,
Rel. Min. Sepúlveda Pertence; Rcl 4.272/RS, Rel. Min. Celso de Mello; Rcl. 4.733/MT, Rel. Min. Cezar
Peluso; Rcl. 3.375-AgR/PI, Rel. Min. Gilmar Mendes.
4. Agravo
regimental a que se nega provimento.
Não parece que ainda possa restar qualquer dúvida! A Administração Pública deve fiscalizar não apenas o cumprimento, pela empresa contratada, das obrigações que esta assumiu em relação à própria Administração Pública, mas também o cumprimento, pela contratada, das obrigações trabalhistas em relação aos respectivos empregados.
E, ainda mais, a culpa da administração pública não é apenas in vigilando, mas também in eligendo, como deixou claro o Pretório Excelso. Assim, o ente público tem não apenas o dever de fiscalizar o cumprimento das obrigações trabalhistas, mas, ainda mais, precisa cuidar para que a escolha da empresa contratada recaia sobre empresa que tenha idoneidade financeira para arcar com o pagamento das parcelas trabalhistas devidas aos próprios empregados.
A contratação de empresas de fundo de
quintal, sem qualquer lastro patrimonial para pagar aos próprios empregados e
que desaparecem sem deixar vestígios, situação que infelizmente é bastante
comum nas terceirizações contratadas pela administração pública, implica em
culpa in eligendo, também capaz de
justificar a responsabilidade subsidiária do ente público.
5. CONCLUSÃO
A
constitucionalidade do artigo 71, §1º, da Lei nr. 8.666/93, declarada pelo Supremo
Tribunal Federal na ADC nr. 16, não pode ser interpretada como
irresponsabilidade ampla e irrestrita dos entes da administração pública,
quando contratam, por licitação, empresa terceirizada.
Muito
pelo contrário, a administração pública, embora não possa ser responsabilizada a priori, apenas por ter figurado como
tomadora dos serviços, poderá sê-lo quando, no caso concreto, restar
demonstrada a sua culpa, quer in eligendo
quer in vigilando.
Assim,
se a empresa terceirizada, já no momento da contratação, não apresenta
capacidade patrimonial para o pagamento das obrigações trabalhistas, fica
caracterizada a culpa in eligendo,
pois o ente contratante deveria ter indicado no edital as exigências que
pudessem afastar essa possibilidade de empresa inidônea participar da concorrência.
Além
disso, ao longo do contrato de terceirização, o ente da Administração Pública
deverá zelar, mês a mês, para fiscalizar se a empresa contratada está
efetivamente cumprindo suas obrigações trabalhistas, em relação aos seus
próprios empregados que tenham prestado seus serviços em favor do ente
contratante.
Se
isso não for feito, estará caracterizada a culpa in vigilando, e da mesma forma o ente da Administração Pública será
responsabilizado de modo subsidiário pelas verbas trabalhistas.
Com
isso, espera-se que os entes da Administração Pública passem a adotar maiores
cautelas, não apenas quanto à escolha da empresa a ser contratada, mas também,
e principalmente, na fiscalização ao longo da vigência do contrato, evitando,
assim, que milhares e milhares de trabalhadores sejam dolosamente privados de
seus haveres trabalhistas.
Na
realidade, e em conclusão, acreditamos que o modo mais eficaz de incutir na
Administração Pública a necessidade de cautela seria a responsabilidade pessoal
do administrador público responsável pela má contratação ou pela falta de
fiscalização. Mas essa já é outra história, a ser abordada, quem sabe, em outro
estudo.
(*) Aldemiro Rezende Dantas Júnior é magistrado do trabalho do TRT - Tribunal Regional do Trabalho 11ª Região, Doutor em Direito pela PUC-SP e Professor da Escola da Magistratura do Amazonas.
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