sexta-feira, 4 de outubro de 2013

TERCEIRIZAÇÃO: A Administração tem o dever de fiscalizar, pena de responder subsidiariamente pelas verbas trabalhistas



                                                                 Noticia


CONTRATO POR LICITAÇÃO

A terceirização e a responsabilidade dos entes da administração pública



(*) Aldemiro Rezende Dantas Júnior

 

A administração pública, em interpretação que beira o autismo jurídico, preferiu ler e entender, na decisão da ADC nr. 16, que ali se havia decidido sobre sua plena irresponsabilidade pelas verbas trabalhistas, pois essa fiscalização a ser exercida sobre a empresa contratada seria apenas em relação às obrigações do contrato celebrado entre tal empresa e a administração pública, e não em relação a cada um dos contratos de trabalho dos empregados da terceirizada.

 

1. INTRODUÇÃO

         O tema já deveria estar pacificado em todas as suas nuances. No entanto, a insistência da administração em contratar mal, contratando empresas de fundo de quintal, financeiramente inidôneas, e a tradicional resistência do administrador público em pagar pelos serviços cuja prestação recebe, fazem com que as discussões estejam sempre se renovando.

         Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu a ADC nr. 16, chegou-se a acreditar que as linhas mestras para a interpretação do tema estavam claras e definidas. No entanto, como sempre ocorre nesses casos, a administração só leu – ou só entendeu – a parte que lhe interessava. Agora, nova e recentíssima decisão do Pretório Excelso vem lançar novas luzes sobre o assunto.

         Recordemos, de início, que se denomina terceirização a hipótese na qual uma empresa utiliza o trabalho prestado pelos empregados de outra. Assim, o trabalhador é empregado da empresa A (terceirizada), mas presta seus serviços diretamente para a empresa B (tomadora dos serviços).

         Em regra, é ilícita essa utilização dos serviços do empregado por meio de empresa interposta, e o vínculo de emprego, na realidade, se forma diretamente entre a empresa tomadora dos serviços e o empregado. Nesse sentido é o item I, da súmula 331, do TST, e na verdade se trata de aplicação do princípio da primazia da realidade sobre a forma: os documentos estão a dizer que a empresa terceirizada é a empregadora, mas os fatos mostram que o verdadeiro empregador é a empresa tomadora dos serviços.
 
       No entanto, existem exceções, ou seja, situações nas quais a terceirização é lícita e o vínculo não se forma diretamente com o tomador dos serviços, e a empresa terceirizada, efetivamente, é a empregadora. São essas exceções que nos interessam, neste pequeno texto. Em especial, por óbvio, trataremos das hipóteses nas quais o tomador dos serviços é ente que integra a administração pública.

        Sobre essa situação, recentemente o STF decidiu que é constitucional o artigo 71, §1º, da Lei nr. 8.666/93, que aponta a isenção de responsabilidade da administração pública, nos casos em que a empresa contratada não paga as parcelas trabalhistas, fiscais e comerciais. A partir daí, propositada e equivocadamente, os entes da administração pública passaram a fazer de conta que têm carta branca para contratar mal e não responder pela inadimplência das empresas contratadas.

2. O QUE SE DEVE ENTENDER POR “ENTES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA”

         Deve-se entender por entes da administração pública não apenas as pessoas jurídicas de direito público, mas todos aqueles que, para contratar, precisam fazê-lo mediante licitação, nos termos da Lei nr. 8.666/93.

          Assim, as regras aqui tratadas e as conclusões obtidas serão aplicáveis à União, aos Estados e Municípios, ao Distrito Federal, suas autarquias e fundações públicas, e, ainda, às empresas públicas e sociedades de economia mista.

         Insistindo no assunto, para os fins de exame da responsabilidade do tomador dos serviços, nas hipóteses de terceirização, deve-se entender por “administração pública” não apenas as pessoas jurídicas de direito público, mas também as empresas públicas e sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de direito privado, mas contratam mediante licitação, pois a elas se aplicam os princípios da administração pública.

         O TST entende que, no caso das terceirizações lícitas, ou seja, nos casos em que o vínculo de emprego não se forma com o tomador dos serviços, pois a empresa terceirizada, efetivamente, é a empregadora, o responsável principal pelas verbas trabalhistas é a empresa terceirizada (empregadora), mas o tomador dos serviços responde de modo subsidiário por tais verbas.

         Em sua antiga redação, a Súmula 331, do TST, apontava que o tomador dos serviços responderia subsidiariamente pelas verbas trabalhistas, sem fazer qualquer distinção entre os particulares e os entes da administração pública. Assim, nos casos de terceirização lícita, seria irrelevante investigar se o tomador dos serviços era uma sociedade limitada, ou uma empresa pública, ou o próprio Estado, pois esse tomador, apenas pelo fato de sê-lo, já seria secundariamente responsável pelo pagamento, sendo chamado para efetuá-lo, caso o devedor principal (a empresa terceirizada) não o fizesse.

         O governador do Distrito Federal, alegando que esse entendimento do TST correspondia à não aplicação do artigo 71, §1º, da Lei n. 8.666/93, ajuizou ação declaratória de constitucionalidade, perante o STF, para que dissesse que o referido dispositivo era constitucional. Foi a famosa ADC nr. 16.

          O Supremo Tribunal Federal, em 2010, ao apreciar o pedido, declarou a constitucionalidade do dispositivo legal questionado. No entanto, o STF também mencionou que a constitucionalidade do dispositivo não significava a pura e simples irresponsabilidade dos entes da administração pública, e sim que estes não responderiam apenas pelo fato de terem sido os tomadores do serviço, mas que responderiam nos casos gerais da responsabilidade civil.

          De modo mais claro, disse o Pretório Excelso que, ao contrário dos particulares, os entes da administração pública não poderiam ser responsabilizados apenas por terem contratado empresa terceirizada que não pagou as parcelas trabalhistas devidas aos próprios empregados, sendo necessário que em cada caso concreto fosse demonstrada a culpa desse ente da administração. Comprovada a culpa, haveria a responsabilidade subsidiária pelas verbas trabalhistas.

           Essa culpa consistiria na falta de fiscalização, pela administração pública contratante, acerca do correto cumprimento, pela empresa contratada (a terceirizada) de suas obrigações trabalhistas. Seria, portanto, a culpa in vigilando.

           Apenas para ilustrar, presenciamos caso concreto em que a empresa terceirizada passou nove meses sem pagar salários e quase dois anos sem depositar o FGTS. E a administração pública contratante, no entanto, todos os meses pagava religiosamente o valor do contrato, como se nada de anormal estivesse acontecendo. Ora, é evidente que esse ente da administração pública nunca fiscalizou coisa alguma, e por isso, deveria responder de modo subsidiário pelas verbas trabalhistas que o empregador deixou de pagar.

          Pois bem, a partir dessa decisão do STF, o Tribunal Superior do Trabalho, modificou a Súmula 331, passando a separar as hipóteses em que o tomador dos serviços é um particular (item IV, da Súmula 331) daquelas em que esse tomador é ente da administração pública (item V). Assim ficaram redigidos os mencionados itens:

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

         Como se percebe a partir da simples leitura, a responsabilidade do particular decorre simples e diretamente do fato de ser o tomador dos serviços, sem qualquer avaliação sobre a existência ou inexistência de culpa. No entanto, os entes integrantes da administração pública só respondem se, nessa qualidade de tomadores dos serviços, tiverem agido com culpa, consistindo essa, principalmente, na “fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora”.

         A administração pública, no entanto, em interpretação que beira o autismo jurídico, preferiu ler e entender, na decisão da ADC nr. 16, que ali se havia decidido sobre sua plena irresponsabilidade pelas verbas trabalhistas, pois essa fiscalização a ser exercida sobre a empresa contratada seria apenas em relação às obrigações do contrato celebrado entre tal empresa e a administração pública, e não em relação a cada um dos contratos de trabalho dos empregados da terceirizada.

         Por causa desse entendimento deturpado, os entes da Administração Pública, vencidos nas três instâncias da esfera trabalhista, continuaram a provocar o STF, alegando que as decisões trabalhistas estavam desrespeitando o efeito vinculante da decisão proferida na ADC nr. 16 (CF, art. 102, §2º).

         Por esse motivo, o Pretório Excelso decidiu que o tema era de repercussão geral, a ser apreciado por aquela Corte Maior. Assim, milhares de decisões trabalhistas referentes a casos de terceirização em que o tomador dos serviços era ente da administração pública, tiveram seu andamento suspenso, após a última decisão do TST, para aguardar o pronunciamento (mais um) do STF sobre o assunto.

4. A DECISÃO DO STF NA RECLAMAÇÃO 13.760/SP.

          No dia 1.10.2013, foi publicado no DJE o inteiro teor do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação nr. 13.760, na qual o Estado de São Paulo alegava que o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas e interior de SP) havia desrespeitado a decisão proferida na ADC nr. 16, ao condenar o Estado, de modo subsidiário, ao pagamento das verbas trabalhistas não honradas pela empresa contratada.

           O Relator, Ministro Luiz Fux, em decisão monocrática, negou seguimento à Reclamação, o que levou o Estado reclamante a interpor o Agravo Regimental, apreciado pelo Pleno do STF.

           Na referida decisão, e espantando qualquer dúvida que os entes da Administração Pública ainda fingissem ter, o Plenário do STF disse clarae textualmente que “as entidades públicas contratantes devem fiscalizar o cumprimento, por parte das empresas contratadas, das obrigações trabalhistas referentes aos empregados vinculados ao contrato celebrado”.

         A decisão do Supremo Tribunal Federal ficou assim ementada:

          STF - DJe nº 193/2013 Divulgação: terça-feira, 01 de outubro

ORIGEM: AIRR - 1162000320065150046 - TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

AG.REG. NA RECLAMAÇÃO 13.760 SÃO PAULO

RELATOR :MIN. LUIZ FUX

AGTE.(S) :ESTADO DE SÃO PAULO

PROC.(A/S)(ES) :MARCIA AMINO

AGDO.(A/S) :FRANCISCO MENDES DAS CHAGAS

ADV.(A/S) :ARI RIBERTO SIVIERO

AGDO.(A/S) :SOLUÇÃO SEGURANÇA E VIGILÂNCIA LTDA.

INTDO.(A/S) :TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. ARTIGO 71, § 1º, DA LEI 8.666/93. CONSTITUCIONALIDADE. ADC 16. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DEVER DE FISCALIZAÇÃO. RESPONSABILIZAÇÃO DO ENTE PÚBLICO NOS CASOS DE CULPA IN ELIGENDOE DE CULPA IN VIGILANDO”. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. A aplicação do artigo 71, § 1º, da Lei n. 8.666/93, declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC nº 16, não exime a entidade da Administração Pública do dever de observar os princípios constitucionais a ela referentes, entre os quais os da legalidade e da moralidade administrativa.

2. As entidades públicas contratantes devem fiscalizar o cumprimento, por parte das empresas contratadas, das obrigações trabalhistas referentes aos empregados vinculados ao contrato celebrado. Precedente: Rcl 11985-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-050 DIVULG 14-03-2013 PUBLIC 15-03-2013.

3. A comprovação de culpa efetiva da Administração Pública não se revela cognoscível na estreita via da Reclamação Constitucional, que não se presta ao reexame de matéria fático-probatória. Precedentes: Rcl 3.342/AP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; Rcl 4.272/RS, Rel. Min. Celso de Mello; Rcl. 4.733/MT, Rel. Min. Cezar Peluso; Rcl. 3.375-AgR/PI, Rel. Min. Gilmar Mendes.

4. Agravo regimental a que se nega provimento.

         Não parece que ainda possa restar qualquer dúvida! A Administração Pública deve fiscalizar não apenas o cumprimento, pela empresa contratada, das obrigações que esta assumiu em relação à própria Administração Pública, mas também o cumprimento, pela contratada, das obrigações trabalhistas em relação aos respectivos empregados.

          E, ainda mais, a culpa da administração pública não é apenas in vigilando, mas também in eligendo, como deixou claro o Pretório Excelso. Assim, o ente público tem não apenas o dever de fiscalizar o cumprimento das obrigações trabalhistas, mas, ainda mais, precisa cuidar para que a escolha da empresa contratada recaia sobre empresa que tenha idoneidade financeira para arcar com o pagamento das parcelas trabalhistas devidas aos próprios empregados.

         A contratação de empresas de fundo de quintal, sem qualquer lastro patrimonial para pagar aos próprios empregados e que desaparecem sem deixar vestígios, situação que infelizmente é bastante comum nas terceirizações contratadas pela administração pública, implica em culpa in eligendo, também capaz de justificar a responsabilidade subsidiária do ente público.

5. CONCLUSÃO

         A constitucionalidade do artigo 71, §1º, da Lei nr. 8.666/93, declarada pelo Supremo Tribunal Federal na ADC nr. 16, não pode ser interpretada como irresponsabilidade ampla e irrestrita dos entes da administração pública, quando contratam, por licitação, empresa terceirizada.

         Muito pelo contrário, a administração pública, embora não possa ser responsabilizada a priori, apenas por ter figurado como tomadora dos serviços, poderá sê-lo quando, no caso concreto, restar demonstrada a sua culpa, quer in eligendo quer in vigilando.

         Assim, se a empresa terceirizada, já no momento da contratação, não apresenta capacidade patrimonial para o pagamento das obrigações trabalhistas, fica caracterizada a culpa in eligendo, pois o ente contratante deveria ter indicado no edital as exigências que pudessem afastar essa possibilidade de empresa inidônea participar da concorrência.

         Além disso, ao longo do contrato de terceirização, o ente da Administração Pública deverá zelar, mês a mês, para fiscalizar se a empresa contratada está efetivamente cumprindo suas obrigações trabalhistas, em relação aos seus próprios empregados que tenham prestado seus serviços em favor do ente contratante.

         Se isso não for feito, estará caracterizada a culpa in vigilando, e da mesma forma o ente da Administração Pública será responsabilizado de modo subsidiário pelas verbas trabalhistas.

         Com isso, espera-se que os entes da Administração Pública passem a adotar maiores cautelas, não apenas quanto à escolha da empresa a ser contratada, mas também, e principalmente, na fiscalização ao longo da vigência do contrato, evitando, assim, que milhares e milhares de trabalhadores sejam dolosamente privados de seus haveres trabalhistas.

         Na realidade, e em conclusão, acreditamos que o modo mais eficaz de incutir na Administração Pública a necessidade de cautela seria a responsabilidade pessoal do administrador público responsável pela má contratação ou pela falta de fiscalização. Mas essa já é outra história, a ser abordada, quem sabe, em outro estudo.

(*) Aldemiro Rezende Dantas Júnior é magistrado do trabalho do TRT - Tribunal Regional do Trabalho 11ª Região, Doutor em Direito pela PUC-SP e Professor da Escola da Magistratura do Amazonas.

 


 

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