Noticia
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Leonardo Sakamoto
Do caso da fazenda Vale do Rio Cristalino, no Sul
do Pará, que pertencia à Volkswagen, entre as décadas de 70 e 80, até a
responsabilização da OAS por conta do resgate de trabalhadores em obras de
ampliação do aeroporto internacional de São Paulo no passado, respeitáveis
corporações foram envolvidas em denúncias relacionadas a esse crime.
Contudo, alguns dos paladinos da Justiça que agora erguem a voz
contra a “escravidão'' de médicos cubanos nunca abriram a boca para dar um pio
sequer de solidariedade nesses casos supracitados.
E sabe por quê? Por que não dão e nunca deram a mínima se um
trabalhador escravizado vive ou morre, nos campos ou nas cidades. Querem apenas
ganhar sua guerra ideológica e política particular usando as ferramentas que
têm em mãos, dobrando a lei para se necessário.
Mais de 45 mil pessoas foram libertadas desde 1995 pelo governo
e um número maior do que isso permaneceu nessas condições. Muitos dos que
“descobriram'' a escravidão contemporânea agora irão “esquecer'' logo que o
argumento não lhes for mais útil.
Ou seja, se for para atacar Cuba e, com isso, constranger o
governo brasileiro vale a pena batizar qualquer coisa de trabalho escravo.
Criam-se os maiores malabarismos a fim de explicar que aquilo pode se enquadrar
nessa forma de exploração. Mas alguém duvida que, quando todo esse furdúnculo
desaparecer, se tentarmos ampliar o conceito para beneficiar o trabalhador
brasileiro com a mesma facilidade com que agora fazem, iremos ouvir que não é
bem assim que as coisas funcionam?
Por exemplo, quando o ministro Joaquim Barbosa usou a teoria do
domínio do fato na condenação dos envolvidos no escândalo do mensalão, houve
quem avaliasse que ela poderia ser usada na responsabilização de donos de
empresas que se beneficiaram de trabalho análogo ao de escravo. Afinal de
contas, não importa se eles sabiam ou não. Eles deveriam saber. Mas aí veio a
turma do deixa disso, informando que a ideia só valeria para a ação penal 470
mesmo. Afinal de contas, garantia da qualidade de vida dos trabalhadores do
país é assunto secundário na República.
O ponto é que, nessa discussão, o foco não é Cuba. E sim
partidos no governo, os partidos na oposição e seus mensageiros brigando para
ver quem vence a Guerra Fria ou qual a melhor ditadura para se ganhar dinheiro,
se a cubana ou a chinesa. Se eles se matassem de tanto gritar uns com os
outros, menos mal. Tô nem aí. Contudo, é uma pena que, no caminho, criem
problemas para uma política de Estado, que perpassou governos, criada por
Fernando Henrique, aprimorada com Lula, mantida por Dilma. Porque ampliar
loucamente o conceito significa jogar os esforços do combate à escravidão no
lixo. Se tudo é escravo, nada tende a ser.
Ou, façamos um combinado: bora ampliar o conceito e considerar
os médicos cubanos como escravos!
Mas quero um compromisso de que assim que o último for
“libertado'', passaremos a resgatar pelo menos uns 16 milhões de trabalhadores
brasileiros em fazendas, indústrias, comércio e serviços, incluindo empresas de
comunicação, que estariam no escopo de uma alargamento do conceito do que seja
escravidão contemporânea. Ou seja, o problema sairia da casa de dezenas de
milhares para 8% do país – em estimativas conservadores de juízes e
procuradores ouvidos por este blog.
Também quero o compromisso de aprovar leis que estão bloqueadas
no Congresso – e ajudariam a combater esse crime – pelos mesmos parlamentares
que, agora, se fantasiam de Joaquim Nabuco. Como a proposta de emenda constitucional
57A/1999, que prevê o confisco de propriedades em que esse crime for
encontrado. Ou a lei que cassa o CNPJ de quem usar escravos no país. E
aproveitem e coloquem mais recursos nas rubricas de fiscalização e prevenção,
porque elas desidratam quando chegam na análise de parlamentares.
E, por fim, alguns políticos poderiam parar de receber doações
eleitorais de quem utiliza mão de obra análoga à de escravo. Quando defendi meu
doutorado sobre o tema, em 2007, a situação já era uma esbórnia, imagina agora.
Um rosário de entidades sociais têm atuado nos últimos anos para
não ceder às pressões da bancada ruralista no Congresso Nacional a fim de
limitar absurdamente o que significa escravidão. Mas o oposto também tem sido
feito, ou seja, evita-se que tudo seja chamado de trabalho escravo.
Tive a oportunidade de ajudar a criar uma das maiores ações
coletivas do setor privado no Brasil, reunindo mais de 400 empresas, 30% do
PIB, para evitar que essa terrível violação dos direitos humanos contamine a
nossa economia e crie problemas para as nossas exportações. Nos últimos nove
anos, centenas de empresas foram treinadas para serem capazes de entender
o risco do trabalho escravo em suas cadeias de valor e adotarem medidas para
mitigá-lo. Ou seja, o empresariado brasileiro já está percebendo e
gerenciando esses riscos, evitando a perda de dinheiro.
Mesmo assim, quem afirma que não há evidência, até agora, de que
o programa de médicos escraviza à luz de toda legislação brasileira, é chamado
de “comunista'', de apoiador do governo ou do regime cubano. Uma besteira sem
tamanho.
Comentaristas comuns de internet dizerem isso, vá lá. Grande
parte vocifera sem saber o que diz, repetindo mantras. É café com leite. Mas
“especialistas'' tentarem dobrar a letra da lei para fazer caber é o ó do
borogodó.
Quando o Mais Médicos apareceu, afirmei que uma coisa é a
política pública em si, de levar médicos estrangeiros ao interior do Brasil em
áreas carentes, que – a meu ver – está correta. Outra, que é muito ruim, foi a
ideia equivocada de não pagar a totalidade do salário diretamente ao trabalhador,
em um contexto em que muitos se veriam como vítimas de injustiça ao conviver
com outros. A Justiça deve receber uma série de ações nesse sentido por
parte dos envolvidos e terá que analisa-los sob a luz do tipo de contrato
firmado.
Pois ao contrário de outros estrangeiros e brasileiros no
programa, o governo federal contratou os serviços do governo cubano que, por
sua vez, enviou servidores públicos para a tarefa, como em uma missão
humanitária.
Particularmente, acho essa diferenciação na remuneração final o
ó e creio que temos que lutar para que isso mude urgentemente, a despeito dos
arranjos institucionais entre Brasil e Cuba. Mas a meu ver, até agora, não é
trabalho escravo.
Dado que cada procurador do trabalho tem independência
funcional, não acho difícil alguém entrar com uma ação por trabalho escravo
contra a União – afinal, cada um conta com sua matriz de interpretação da
realidade e possui diferentes experiências sobre o tema. Mas acho duro
imaginar uma condenação final pelo tema. O que faço aqui é uma análise à luz de
quem acompanha o combate ao trabalho escravo. E já criticou, mais de uma vez,
atores públicos que tentaram alargar o conceito para além do que está no artigo
149 do Código Penal a fim de punir empresários fiscalizados.
Enfim, alguém gritou fogo no teatro lotado. E muita coisa que
não é trabalho escravo vai começar a ser vista como tal. Quem deveria estar com
os cabelos em pé são donos de fazendas de gado, siderúrgicas, construtoras,
grandes magazines de roupas, usinas de cana…
De repente é até bom isso acontecer. Alguns amigos jornalistas,
cuja condição de trabalho também desobedece “artigos da Constituição'', para
usar uma expressão de um nobre jurista que alertou para a escravidão cubana,
poderiam ser resgatados em suas redações pelo Ministério do Trabalho e Emprego
usando um conceito ampliado.
Pessoal, aproveitem! É a sua chance de serem livres!
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