Jornal do Terra
Greves são essenciais para democracia, diz juiz do trabalho
POR SÉRGIO RODAS OLIVEIRA
O Brasil
está vivendo uma onda de greves. Após paralisações da Polícia Federal no país
inteiro, das Polícias Militares de Bahia e Pernambuco, dos professores de Rio
de Janeiro e São Paulo, dentre outras, a capital paulista assistiu à suspensão
de circulação de ônibus de várias linhas nesta semana.
Organizada
por motoristas e cobradores dissidentes do sindicato que representa a categoria
(Sindmotoristas-SP), que rejeitaram a proposta de aumento salarial de 10%, a
greve fechou diversos terminais de ônibus e gerou o maior trânsito do ano em
São Paulo.
Na opinião
do juiz e professor de direito do trabalho da Faculdade de Direito da USP Jorge
Luiz Souto Maior, a greve dos ônibus é legal e uma importante ferramenta de
evolução da sociedade.
“Quando
nós pensamos o trabalhador motorista, nós estamos também falando da sociedade.
(…) Na sociedade em que vivemos, ou você é trabalhador, ou você emprega. Então,
o direito de greve de uma classe trabalhadora pertence, em certa medida, a toda
a sociedade. (…) E a greve, no sentido mais amplo, a relação capital e
trabalho, é essencial para o desenvolvimento da democracia em um modelo de
sociedade capitalista”, analisa Souto Maior.
Em
entrevista ao Terra Magazine, Souto
Maior explicou a prevalência das regras constitucionais relativas a greves
sobre a legislação específica, criticou empresas que demitem funcionários
grevistas e discorreu sobre o papel das paralisações na queda da ditadura
militar.
São legais as greves que estão
ocorrendo pelo Brasil, como as dos motoristas e cobradores de ônibus em São
Paulo e as dos policiais militares da Bahia e de Pernambuco?
Jorge Luiz Souto Maior: Quanto você pensa em “legal”, se você analisar
a forma jurídica específica da Lei nº 7.783/89 [que regulamenta as greves],
você pode ter questionamentos quanto à legalidade na questão dos motoristas,
porque foi uma greve deflagrada espontaneamente pela categoria, sem o
acompanhamento do sindicato – na verdade, até contrária ao sindicato. Isso, do
ponto de vista da lei, é ilegal. Por outro lado, existe uma ilusão da lei de
regrar as greves. De fato, greve é um ato político. Enquanto tal, ela está
inserida num contexto jurídico mais amplo, que é o direito de você lutar por
melhores condições de vida. Do direito de você se indignar, buscar melhores
condições para a sua existência. E você não pode regrar isso. Toda vez que o
direito tentou regrar isso, estourou. Porque sempre há essa questão de a greve
extrapolar os limites legais. Não diria que a greve que extrapole os limites
legais esteja fora do direito. No começo da formação do modelo de produção
industrial, a lei dizia que qualquer greve era ilegal. Mas elas aconteciam
mesmo assim, e proporcionaram vários avanços, não só dos direitos dos
trabalhadores, como dos direitos democráticos em geral, e avanço até no sentido
de a própria lei reconhecer que a greve era legal – mas há sempre uma forma
para extrapolar [os limites legais impostos para o exercício das greves]. E há
vários exemplos históricos disso: a greve dos petroleiros, as greves do ABC nos
anos 70, que foram greves que extrapolaram o limite legal, que era muito
restrito. “Não pode fazer greve”, e ponto. Ou [a lei] dizia que qualquer greve
que tivesse era um risco à segurança nacional. Por conta disso, até o
presidente do sindicato dos metalúrgicos da época, que era o Lula, foi preso.
Mesmo assim, a greve continuava. E foram esses greves, inclusive, que motivaram
e favoreceram o país a sair da ditadura militar. Então, do ponto de vista
histórico, ainda bem que essas greves extrapolaram o limite legal.
Eu não
considero que fossem greves que estivessem fora do âmbito do direito – a greve
como direito fundamental. E a Constituição brasileira, e aí tem essa questão
também do ponto de vista jurídico formal, porque a constituição dá um conceito
à greve muito mais amplo do que a Lei nº 7.783/89. Para a Constituição, a greve
é um direito dos trabalhadores, não dos sindicatos, competindo aos
trabalhadores escolherem como farão a greve, quais interesses por ela
defenderão. Esse é um conceito de direito fundamental amplo, e dá aos
trabalhadores a oportunidade de definirem como vão utilizar esse mecanismo de
luta. E o pressuposto infraconstitucional da lei é muito aquém do que diz a
Constituição Federal. É claro, aí você pode dizer, “não existem outros direitos
que se contrapõem aos dos trabalhadores”? Aí você tem que verificar o caso
concreto, as questões de abuso, de confrontos de ordem jurídica, mas, a mim,
não me parece que essas greves estejam fora do exercício legítimo do direito.
Há uma regra específica para
greves de serviços considerados essenciais, como os serviços públicos, que
obriga os trabalhadores a garantir a prestação de tais serviços ao povo mesmo
durante as paralisações. Nos casos citados, os grevistas não descumpriram essa
regra?
Isso está
previsto na lei. Na Constituição, você não tem essa restrição. Tudo depende da
dinâmica da greve. Instaurada a greve, o que se estabelece é um momento de
confronto político, e a via da negociação vai ser importante para determinar esses
limites e o menor prejuízo político para pessoas que estejam fora do conflito
especial de capital e trabalho. O que não me parece correto é a gente deixar
que essa dinâmica não exista enquanto diálogo de capital e trabalho, e haja uma
interferência do Judiciário, estabelecendo regras que, às vezes, não são
cumpridas por serem impossíveis de ser cumpridas dentro de um contexto
político. É como, por exemplo, uma decisão que houve em São Paulo determinando
que os metroviários mantivessem 100% da capacidade de trabalho em funcionamento
nos horários de pico, sendo que 100% nunca ocorre – pessoas faltam, saem de
férias, isso é uma coisa ilusória até.
É claro
que uma greve de trabalhadores que se faça de forma a desconsiderar todos os
outros interesses das pessoas terá uma tendência a não ter um apoio da
população em geral. A dinâmica dela será feita de uma certa forma que ela
também incorpore isso na sua lógica. A depender também do tamanho da
insatisfação. Se imaginar que pessoas que estão em greve porque estão em
condições análogas às de escravos se preocupem com os outros, sendo que esses
outros nunca se preocuparam com elas, é uma coisa um tanto quanto complexa. Já
participei de situações em que trabalhadores estavam em greve porque estavam
sem receber salários por três meses. Então, você vai dizer para eles “voltem ao
trabalho”? Não tem por que trabalhar. Então, a população não tem que se voltar
contra eles, e sim contra o empregador que não lhes pagava os salários.
Quanto
mais a gente visualizar o conflito e enxergar a sua dinâmica, mais a gente pode
evoluir, ao invés de ficar criando regras que são padrões que não se adaptam à
realidade concreta. Acho que essas greves que estão acontecendo aí demonstram
que as soluções que são impostas não estão satisfazendo as situações, e, não as
satisfazendo, o conflito persiste.
Depois de
junho, vimos que as pessoas têm consciência política e social, de que elas
podem, e devem, lutar pelos seus direitos, e não devem se acomodar. E, na minha
percepção, a população geral não está revoltada com a greve dos rodoviários. As
pessoas que andam de ônibus – e eu sou uma delas – estão se virando por outros
meios, e compreendendo, porque a causa que eles estão defendendo é importante
para eles. E o fato de eles estarem lutando por isso nos permite ter a
perspectiva de que também podemos lutar pelos nossos direitos. O que acaba
sendo bom para todo mundo.
Como o senhor vê as greves de
policiais militares, como as que ocorreram na Bahia e em Pernambuco? Durante as
paralisações, o número de crimes como roubos e homicídios aumentou
consideravelmente.
O que me
espanta nessa situação é perceber que a sociedade está tão em caos, um caos
instaurado, que só a segurança pública nas ruas é que contém as pessoas. Para
mim, é um dado de análise relevante. É assustador.
Agora, eu
acho que o caos não ocorreu por culpa dos policiais. Na verdade, ele já está
instaurado. A ausência dos policiais nas ruas e eles fazerem greve não é o que
gerou esses problemas. Essa é questão que a gente tem que discutir. A gente tem
que discutir a sociedade, e não colocar a culpa nos policiais, no sentido de
que eles estariam obrigados a continuar trabalhando com quaisquer condições que
sejam. Eles são trabalhadores, portanto, também têm o direito de lutar por
melhores condições de trabalho e de vida. Negar isso aos policiais é negar sua
condição humana.
Evidentemente
que aí eles têm que tomar um cuidado para não fazer greve armados, essas
questões específicas da categoria.
O sindicato patronal das empresas
de ônibus de São Paulo (SPUrbanuss) ameaçou demitir os motoristas e cobradores
responsáveis pela greve. Se efetuadas, essas demissões seriam legais?
Me parece
que não. Porque a demissão coletiva de trabalhadores é algo que só pode
ocorrer, de acordo com os parâmetros jurisprudenciais atuais, mediante
negociação com os trabalhadores. E aí, se for pensar dessa forma, não pode
fazer. Se for pensar em demissão por justa causa, teria que inserir a atividade
deles dentro de um parâmetro legal que justificasse a justa causa. Mas o ato
deles não me parece que se insira em nenhum dos dispositivos do art. 482 da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como ato que quebra a confiança na
relação de emprego. Até porque, o que eles estão querendo são melhores condições
de trabalho, para trabalhar melhor e prestar um melhor serviço. Eles não estão
contrariando a lógica do contrato de trabalho.
E você tem
os exemplos de pessoas que trabalham 20, 25 anos, e de repente resolvem se
indignar por uma questão salarial, e são enquadrados em [demissão por] justa
causa, porque feriram a confiança do empregador, a boa fé. Eu acho que é um
grande desvio, é uma forma de punir uma pessoa que lutou por um direito. Penso
que a gente não pode transmitir essa mensagem à sociedade, de que as pessoas,
quando lutarem por direitos, podem ser dispensadas por justa causa. Que é o que
fez, por exemplo, a ditadura militar, quando inseriu no art. 482 da CLT um
inciso dizendo que qualquer pessoa que tivesse atuação política ou ideológica
poderia ser dispensada por justa causa.
O que é mais importante:
assegurar o direito de greve ou a prestação dos serviços essenciais à
sociedade?
A gente
não pode contrapor o trabalhador à sociedade, porque o trabalhador faz parte da
sociedade. Então, quando nós pensamos o trabalhador motorista, nós estamos
também falando da sociedade. Até porque, naquilo que estamos contrapondo como
sociedade, nós temos também jornalistas, operários, outros trabalhadores. Na
sociedade em que vivemos, ou você é trabalhador, ou você emprega. Então, o
direito de greve de uma classe trabalhadora pertence, em certa medida, a toda a
sociedade. Pensando dessa forma, quando estamos analisando uma greve de uma
determinada categoria de trabalhadores, estamos falando de todos os trabalhadores,
que não podem estar naquela greve, mas que poderão e estarão em outro momento.
E a greve, no sentido mais amplo, a relação capital e trabalho, é essencial
para o desenvolvimento da democracia em um modelo de sociedade
capitalista.
Os
interesses individuais – o “sujeito vai chegar atrasado” etc. – ficam
superados, eles têm que ser ponderados. Aí estamos falando de um sacrifício,
pois aí estamos discutindo um preceito fundamental, importante pra democracia.
Nossa sociedade democrática, com direitos sociais, previdência social, direitos
dos trabalhadores, se construiu historicamente a partir de greves, desde
Manchester [Inglaterra], no séc. XVIII, passando pelas greves na Califórnia
[EUA] etc. Para alguém olhar pra isso e dizer “ai, meu Deus, vou chegar tarde
em casa hoje”, ah, meu filho, você vai chegar em casa tarde porque a sociedade
está evoluindo, e seu interesse é muito pequeno diante do contexto histórico da
humanidade.
De acordo com a Lei nº
7.783/89, as greves têm que ser organizadas pelos sindicatos que representam a
categoria. Estritamente pelo texto da lei, a greve dos motoristas e cobradores
de ônibus em São Paulo teria legitimidade, uma vez que está sendo realizada por
um grupo de dissidentes, e não é apoiada pelo sindicato da categoria
(Sindmotoristas-SP)?
Do meu
ponto de vista, teria [legitimidade], porque a greve é um direito dos
trabalhadores, previsto na Constituição.
E, de acordo com o principio da
hierarquia das normas, no confronto com a Lei nº 7.783/89, prevalece a
Constituição.
Sim. E, do
ponto de vista histórico, por que que a lei fez isso? Porque a Constituição
Federal de 1988 foi construída com a classe trabalhadora como classe política
de maior relevância da sociedade desde o fim da década de 70, com os movimentos
dos trabalhadores. E, graças aos movimentos dos trabalhadores, nós deixamos o
período da ditadura militar, e havia, de certo modo, até uma gratidão aos
trabalhadores por uma reoxigenação da sociedade naquele instante. Só que,
passada a euforia democrática e tudo mais, a queda do muro de Berlim, a lógica
neoliberal instalada, tem uma sistemática que desdiz a Constituição. Como
várias emendas constitucionais na sequencia, na década de 90, [no sentido] de
desdizer a CF ou estabelecer um alinhamento ideológico contrário ao da
Constituição, da lógica capital-trabalho. É por isso que essa lei contraria a
Constituição, ela tem uma valoração distinta. Então, não é só uma questão de
que a lei diz de forma mais específica e a Constituição diz de forma geral,
como alguém vai interpretar. Não. São momentos políticos diferentes. Mas é um
esforço inglório, porque, na hierarquia, o que prevalece é a Constituição,
embora só agora o Judiciário tem dado mais atenção a isso, em geral, tem
aplicado a lei passando por cima da Constituição Federal.
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