Tragédias anunciadas: as medidas provisórias de Dilma
(*) Jorge Luiz Souto Maior.
Foto: Souto Maior
É preciso entender o contexto histórico no qual
se inserem as Medidas Provisórias ns. 664 e 665, editadas pelo governo federal
no dia 30 de dezembro de 2014, para conseguir perceber melhor o que elas de
fato representam.
- O contexto histórico
Historicamente, as MPs podem ser vistas por dois
ângulos.
Para um observador menos atento, as MPs podem se
apresentar como um retrocesso à década de 90, quando o governo do PSDB,
adotando, explicitamente, a teoria neoliberal, buscava alavancar um projeto
econômico por meio da supressão de direitos trabalhistas, considerando-os
apenas sob a ótica dos custos, com desprezo ao aspecto humano envolvido e mesmo
ao fato de que tais direitos foram conquistados após muita luta da classe
trabalhadora. Com vistas a atingir seu objetivo, valia-se o governo de Medidas
Provisórias, exatamente para, por intermédio da tática do “fato consumado,
evitar o debate democrático congressual sobre as medidas e dificultar a
resistência dos trabalhadores.
Para um observador mais atento, no entanto, as
recentes MPs adotadas pelo governo Dilma constituem a demonstração explícita de
que, no fundo, a política econômica do governo do PT, mesmo trazendo um
acréscimo de investimento nas ações assistenciais, não foi diferente daquela
que já vinha sendo implementada no período anterior, sendo comprovação clara
disso também o fato de que nenhuma das fórmulas jurídicas de precarização das
condições de trabalho criadas na década de 90, tais como a terceirização e o
banco de horas, sofreu reversão na era petista, não tendo havido, ainda,
qualquer mudança de rumo em temas extremante importantes para a classe
trabalhadora como o da garantia de emprego, ao menos nos termos da Convenção
158 da OIT, que serviria como parâmetro para regulamentar o inciso I, do art.
7º. da CF. Em alguns temas, aliás, o que se verificou foi um avanço da
precarização, como nos casos da terceirização no serviço público, especialmente
no âmbito da administração federal onde foi severamente acrescida, valendo
lembrar que nos últimos anos tem sido grande a luta contra a aprovação do PL
4.330, que foi abertamente apoiado pelo governo federal, PL este que prevê a
ampliação da terceirização, assim como também foi grande a luta contra o
projeto do negociado sobre o legislado (o ACE), também apoiado pelo governo
federal, o qual, aliás, na mesma linha propôs a criação do SUT (Sistema Único
do Trabalho), que inibe a atuação da fiscalização do trabalho e incentiva a
negociação coletiva mesmo “in pejus”, legitimando a intermediação de
mão-de-obra. Não se pode esquecer, ademais, da violenta repressão que o governo
promoveu nas recentes greves dos servidores federais e como agiu
repressivamente também com relação às manifestações, tendo incentivado, a
propósito, a adoção de uma Lei Antiterrorismo (PL 499/13), que reproduz
conceitos da Lei de Segurança Nacional, típicos da época da ditadura,
atentando, pois, contra a lógica democrática, tudo para abafar as
manifestações, as quais opunham à realização da Copa no Brasil ou que serviam
como instrução para reivindicação de direitos sociais e melhorias nas condições
de vida.
Aliado a tudo isso, vê-se, agora, a apresentação
daquela que, segundo o prof. Marcus Orione, especialista na área da Seguridade
Social, representa o “pior de todo o conjunto de medidas já adotados em relação
à previdência social por qualquer governo no chamado Brasil democrático –
considerado, para fins jurídicos, o estado de direito que foi conformado a
partir da constituição de 1988 –, já que, além de tudo, é a que atinge, em
maiores proporções, a população mais pobre. Somente a introdução do fator
previdenciário, pelo governo Fernando Henrique Cardoso (e mantido pelos
governos Lula e Dilma), pode ser considerado tão prejudicial aos trabalhadores
quanto esta reforma produzida como um dos derradeiros atos do fim do primeiro
mandato de Dilma Rousseff e com o qual ela se credencia para iniciar a sua nova
gestão. Isto dá a dimensão histórica do que foi feito por este governo”[1].
- O desrespeito aos trabalhadores
O governo justificou a medida de maior rigidez
para o recebimento dos benefícios com a necessidade de reduzir custos da
Previdência e para evitar fraudes. A justificativa, no entanto, é um
desrespeito à classe trabalhadora, ao menos por dois motivos.
Primeiro, por uma questão principiológica, que é
a mais importante de todas, vez que fixa a diretriz do raciocínio e das
atitudes. Ora, ao dizer que pretende economizar R$18 bilhões mediante a
supressão de benefícios dos trabalhadores o governo adota o principio de que o
interesse econômico (que sequer é o interesse econômico do mercado, ao menos
não diretamente) deve prevalecer sobre o interesse social. Foram vários anos de
aprendizado, desde a implementação das políticas recessivas e de arrocho
salarial da equipe econômica de Roberto Campos, no período iniciado em 1964,
sobre os efeitos deletérios desse pensamento, ainda mais quando acoplado à
satisfação dos interesses de grupos econômicos estrangeiros, gerando
conseqüências graves também do ponto de vista da formação educacional e da
própria qualidade de mão-de-obra, prejudicando a produção de riquezas e o
desenvolvimento do país. O projeto gerou, na década de 80, um grave ciclo inflacionário,
que, novamente, prejudicou a classe trabalhadora. Na década de 90, com a
implementação da política neoliberal, pensada a partir da realidade dos países
do capitalismo central, onde o Estado Social se efetivou concretamente, ao
contrário do que se verificou no Brasil, cujo implemento, que poderia advir com
o projeto de diretrizes e bases de João Goulart, foi impedido pelo golpe, a
solução pensada mais uma vez penalizou a classe trabalhadora.
Ou seja, a classe trabalhadora foi punida nos 21
anos de ditadura civil-militar, sofreu as conseqüências na década de 80, e
pagou a conta a partir da década de 90. E quando se está diante de uma
iniciativa como esta, da imposição de Medidas Provisórias que retiram direitos
dos trabalhadores sob o argumento de que isso é importante para alavancar a
economia, tem-se a prova de que a frase correta não é “os trabalhadores pagaram
a conta na década de 90” e sim, que “estão pagando a conta desde a década de
90”, mantendo-se o princípio do “tudo pelo econômico” e não do “tudo pelo
social”.
Ainda que o governo tente utilizar eufemismos
para qualificar seu ato, dizendo tratar-se apenas de um “ajuste” ou de um “um
aperfeiçoamento das políticas sociais para aumentar sua eficácia”, não é
possível obstar a compreensão do direcionamento principiológico que dita as MPs
e o prejuízo concreto que gera para os trabalhadores, como se demonstrará mais
adiante, sendo oportuno lembrar, para afastar qualquer tipo de retórica, que as
maiores investidas sobre os direitos trabalhistas foram feitas de 2003 em
diante: taxação dos inativos, alta programada e fator previdenciário[2].
Segundo, pelo próprio fundamento econômico
utilizado. Ora, a redução do gasto em R$18 bilhões para uma economia como a do
Brasil cujo PIB[3] é R$ 4,84
trilhões (2013) é mesmo insignificante. Verdade que nem assim houve superávit.
Aliás, o que se anunciou na última sexta-feira foi o maior défict nas contas do
governo desde 1997, coincidentemente de cerca de R$17,2 bilhões, tendo havido
em dezembro de 2014, o pior resultado da história.
Partindo dessa coincidência, fica até parecendo
que o governo, sabendo que o déficit seria este quis se antecipar a anunciar
uma medida de restrição de gastos exatamente no mesmo valor, para acalmar o
mercado e os eventuais críticos.
E o fez, tirando de quem? Dos trabalhadores, é
claro!
Mas, foram os trabalhadores os culpados do
déficit?
O PIB de 2014 ainda não foi anunciado. Sabe-se,
por ora, apenas que a arrecadação de impostos em 2013 atingiu a marca recorde
de R$ 1,7 trilhão (2013), sendo que, de 1º. a 29 de janeiro de 2015, já tinham
sido arrecadados mais de R$ 181 bilhões.
Na contribuição para o déficit o que há de se
indagar é quanto se gastou para a realização da Copa. Segundo o próprio
governo, foram gastos R$ 25,6 bilhões, em obras para o torneio, entre obras de
estádios e infra-estrutura, sendo que deste valor, 83,6% saíram dos cofres
públicos.
Verdade que a maior parte dos gastos foi feita
para o transporte e aeroportos (60,1%), mas a população continua pagando para a
utilização desses serviços, tendo havido, inclusive, no início do ano de 2015,
aumento das tarifas. Já outros R$ 7,09 bilhões foram utilizados para os
estádios, que não possuem qualquer interesse de ordem pública, estando,
ademais, a maior parte deles, à disposição da iniciativa privada, para
exploração econômica, cobrando pelos serviços, sem qualquer controle do Estado.
Claro que o governo poderá dizer que no período
de preparação para a Copa foram gerados, segundo argumenta, R$ 3,6 milhões de
empregos diretos[4], mas quanto do
valor efetivamente gasto ficou para os trabalhadores e quanto restou para
empreiteiras e demais entidades empreendedoras, que foram “convidadas” para a
festa? Dê-se registro, por oportuno, às vultosas quantias oferecidas pelas
empreiteiras para os principais partidos políticos nas eleições de 2014 e
lembre-se, também, que os empregos ofertados na Copa foram em sua quase
totalidade precários, inseridos na lógica da terceirização, com baixos
salários, práticas exacerbadas de horas extras e um número recorde de mortes
(até então)[5].
E por falar em Copa, vale lembrar que a Fifa foi
isenta, sem que houvesse qualquer base constitucional, do pagamento de impostos
em montante que chegou a R$ 1,1 bilhão[6]. Essa entidade
privada, aliás, deixou o país com um lucro líquido de R$ 10 bilhões[7].
Fazendo contas, impossível não lembrar os desvios
na Petrobrás, cujo montante ninguém ainda sabe concretamente quanto foi, mas já
se tem por certo que foram ao menos R$ 2,1 bilhões[8], havendo quem
diga que as perdas podem chegar a R$21 bilhões[9].
Tratando de números, o mais importante para
perceber a essência do modelo de sociedade em que vivemos, é o dado referente
ao percentual do PIB que fica com a classe trabalhadora. No período de 1998 a
2002, houve uma queda relativa e absoluta da massa salarial. “A participação
dos salários no PIB recuou de 45,37% para 35,14%, enquanto a parcela apropriada
pelo capital pulou de 32 para 42%. Só em 2003, a renda dos trabalhadores
despencou 12,5%.”[10]
Nesse aspecto, o governo petista teria a seu
favor o número de que no período de 2004 até 2009 a participação relativa da
massa salarial no PIB (Produto Interno Bruto) cresceu sucessivamente até
atingir 51,40% em 2009[11].
Mas é importante lembrar que esse acréscimo nos
anos 2000, com a exceção do México, se deu também em praticamente todos os
países da América Latina[12], sendo que
no Brasil, considerada uma realidade até 2009, “os números mais altos apresentam-se
durante a virada dos anos 1950-60, com destaque para 1957, em que a fatia
salarial sobre o PIB alcançou 48,27%. Não gratuitamente, um intervalo de tempo
marcado por maior intervenção dos trabalhadores na cena pública, que se esgotou
no golpe de 1964”[13].
Assim, o aumento verificado de 2004 a 2009[14] representa
um reflexo também da extinção quase natural dos efeitos dos 21 anos da política
econômica recessiva do regime militar e do ataque frontal aos direitos
trabalhistas implementado na década de 90/início dos anos 2000, no auge da
política neoliberal em âmbito mundial.
De todo modo, mesmo tendo havido acréscimo
histórico da participação dos salários no PIB no período de 2003 a 2009 e
supondo que o acréscimo tenha continuado de 2010 a 2014, estamos falando de um
percentual, em suposto cenário extremamente “positivo” para os trabalhadores,
que gira em torno, de 50%. Assim, se consideramos o PIB de 2013, R$ 4,84
trilhões, o valor de impostos arrecadados no mesmo ano, R$ 1,7 trilhão e o
percentual de 50% destinado aos trabalhadores, teremos o resultado de um lucro
liquido para o capital na ordem de R$ 720 bilhões – mas é bem mais que isso se
considerarmos que do total da arrecadação de impostos já está a contribuição
previdenciária que também está integrada no cálculo da massa salarial, sendo
que seu valor anual gira em torno de R$ 300 milhões.
Teríamos, assim, um lucro líquido para o capital
na ordem de R$ 1 trilhão, ou seja, 1/5 do PIB, sendo certo, ainda, que o valor
destinado à classe trabalhadora, que se refere restritamente ao salário, não
fica de fato com os trabalhadores, pois são utilizados para o consumo de
produtos, cujo valor já vem acrescido da lógica de mercado que favorece a uma
nova acumulação.
A visualização é muito simples: se uma pessoa
recebe salário de uma montadora e utiliza este salário para a compra de um
carro, sendo que paga por esse produto um valor bem superior ao do custo da
produção, é evidente que a massa salarial retorna ao capital em forma de lucro,
ainda mais se consideramos os incentivos ao endividamento da classe
trabalhadora, junto a instituições financeiras, pagando juros exorbitantes,
para a realização do consumo, sendo que esse valor adquirido por tais
instituições, quando ligadas ao governo, muitas vezes voltam ao capital como
incentivo à produção, com juros subsidiados. Essa conta é complexa, mas no
mínimo é impossível negar que 1/5 da riqueza produzida fica com o capital (mas
é bem mais, certamente).
Claro que muitos empreendedores, vendo esses
números, dirão que não tiveram lucro nenhum ou que, bem ao contrário, tiveram
prejuízo. Mas isso não é culpa do custo do trabalho e sim de um modelo,
estabelecido sobre as bases da livre concorrência, que favorece aos grandes
conglomerados econômicos, inclusive nos negócios extorsivos que estes impõem
aos pequenos e médios empreendedores.
A prova inconteste da desigualdade no âmbito do
próprio capital está, novamente, no advento da Copa, que foi uma espécie de
modelo concentrado das relações capitalistas mundiais. Ora, anunciou-se que a
economia seria alavancada pelo evento em benefício de todos, mas os que
efetivamente lucraram foram a Fifa, suas parceiras, as empreiteiras e alguns
segmentos produtivos e de serviços. Muitos segmentos importantes registraram
fortes perdas com o evento – ou ao menos não tiveram lucro adicional –,
sobretudo em razão da diminuição drástica da produção e mesmo do consumo[15].
Fato é que no nosso caso brasileiro o capital
abocanha ao menos R$ 1 trilhão por ano da riqueza produzida. Pensemos em dois
anos, em cinco anos, em dez anos, que não é tanto tempo assim. Teremos, então,
a bagatela de R$ 10 trilhões. Lembrando que esse valor é destinado na sua maior
parte a apenas algumas poucas empresas e que essas empresas, em geral, exploram
o trabalho em âmbito mundial, atingiremos um pouco da dimensão do seu poder econômico
e entenderemos como é possível haver uma quantidade de dinheiro capaz de
adquirir e derrubar um bairro inteiro de casas para dar lugar a imensas
construções, que também servem à nova reprodução, no âmbito da especulação
imobiliária.
Assim, trabalhamos para o enriquecimento de
alguns poucos conglomerados econômicos, estando em pleno vigor, em âmbito
mundial, a lógica da acumulação da riqueza produzida, como destaca o recente
estudo feito pelo economista francês, Thomas Piketty, que preconiza, como solução,
a taxação das grandes fortunas, o que se trata, obviamente, de uma providência
necessária e urgente.
Mas não se deve acreditar secamente no potencial
corretivo da medida, vez que não altera a lógica de modelo, o qual se reinventa
constantemente, ainda mais quando o poder político continua relacionado ao
grande capital. O mero aumento de impostos, sem estar relacionado direta e
obrigatoriamente ao retorno social, pode, em si, constituir um problema, pois
representa entregar uma parcela ainda maior da riqueza produzida a um Estado
que, no capitalismo, tende a ser corrupto e a gerar investimentos para a
preservação de lógicas espúrias de poder.
Em concreto, o Estado tem favorecido à
preservação desse modelo e ao aprofundamento das desigualdades. Mesmo quando se
aponta para a diminuição da desigualdade o que se leva em consideração é apenas
a relação entre os que ganham mais e os que ganham menos, estando ambos no
âmbito da massa salarial[16]. Ou seja,
não se refere à relação entre trabalho e capital e nesta relação, considerada
do ponto de vista da totalidade, o que se tem verificado é, como dito, um
acréscimo do capital, acompanhando da diminuição do número de pessoas e de
entidades favorecidas[17].
- A irresponsabilidade na administração do
patrimônio da classe trabalhadora
Diante desse contexto econômico chega mesmo a ser
ridículo que o governo veja a necessidade de impor à classe trabalhadora um
enorme sofrimento, para economizar míseros R$ 18 bilhões, que representam cerca
de 0,3% do PIB.
Lembre-se, com bastante destaque, que somente em
2013, esse mesmo Estado deixou de arrecadar R$ 77,8 bilhões, com reduções de
tributos, sob o argumento de estimular a economia[18]. Parte
dessas reduções, R$13,2 bilhões, atingiu diretamente o patrimônio dos
trabalhadores, pois, segundo a Receita Federal, advieram da desoneração da
folha de pagamento. Essas iniciativas, ademais, vêm sendo tomadas há vários anos[19] e
continuaram em 2014[20].
E o que se vê no final de 2014 é esse ataque aos
trabalhadores e uma pressão enorme do setor econômico para que se aprove uma
lei que amplie as possibilidades de terceirização, o que servirá, sem a menor
dúvida, para aumentar a parcela do capital no PIB, sobretudo porque a
terceirização dificulta a mobilização sindical dos trabalhadores e a sua luta
por melhores condições de trabalho.
O que está em vigor é uma espécie de agressão
institucionalizada à classe trabalhadora para favorecimento do grande capital,
pois uma grande parcela desse valor oficial que está sendo direcionado ao
capital pertence juridicamente falando aos trabalhadores.
Os números apresentados partem do pressuposto
fático concreto e não do ideal juridicamente estabelecido. No mundo do ideal
jurídico, todo empregado deve ser registrado e receber seus direitos
integralmente. Na realidade o que se vê, no entanto, é um desrespeito aberto e
reiterado dos direitos trabalhistas e é evidente que o valor correspondente a
esses direitos, que pertencem à classe trabalhadora, é apropriado pelo capital
– e não é pouco.
Para se ter uma pequena ideia, em 2013, apenas no
âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região, que abrange o interior
de São Paulo, foram pagos aos reclamantes R$ 3,2 bilhões[21]. Mas esses
valores não foram “pagos” aos trabalhadores, foram devolvidos, vez que haviam
sido apropriados indevidamente pelo capital. E estamos falando apenas de um
Tribunal e não da integralidade da relação capital-trabalho. A jurisdição da
15ª. Região abrange 21 milhões de pessoas e o valor em questão teve em conta o
universo de 275.273 reclamações trabalhistas, que foram resolvidas no mesmo
ano.
A maior quantidade de situações que envolvem a
supressão de direitos escapa à Justiça do Trabalho. Mesmo assim não é
irrelevante a sua atuação. Segundo dados fornecidos pela Justiça do Trabalho,
em cinco anos, de 2006 a 2011, a Justiça do Trabalho, reconhecendo violações de
direitos, devolveu mais de R$56 bilhões aos reclamantes. “Só em 2011, foram
quase R$15 bilhões – ou 90% de todo o repasse feito pelo governo federal no ano
passado no Programa Bolsa Família, que atende a 13 milhões de famílias em todo
o país”. No primeiro semestre de 2013 esse número subiu para R$ 12,6 bilhões[22].
Em 2011, a Justiça do Trabalho recebeu 2,1
milhões de novos processos. São reclamações de todo tipo, que revelam diversas
formas de violência: não pagamento de horas extras, sem formulação de cartões
de ponto; ausência de registro; ausência de pagamento de verbas rescisórias,
sobretudo em terceirizações etc.
Ou seja, o valor devolvido aos trabalhadores pela
Justiça do Trabalho mesmo não sendo pouco abarca uma parcela ínfima da relação
capital-trabalho, devendo-se considerar, ainda, que muito desse valor devolvido
já é bastante inferior ao efetivamente devido se lembrarmos que boa parte,
cerca de 40%, resulta de conciliações, que têm sido incentivadas por orientação
do CNJ na linha da política do Banco Mundial, nas quais o trabalhador, de forma
geral, renuncia a parcela de seus direitos para receber mais rapidamente.
Fácil supor, portanto, que um valor bastante
considerável, muitas vezes superior aos R$ 18 bilhões que o governo quer cobrar
dos trabalhadores para sanear as suas contas, está sendo transferido
indevidamente da classe trabalhadora para o capital, com conivência do poder
estatal, haja vista a sua política de sucateamento dos serviços de auditoria
fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego[23], favorecendo
a supressão de direitos, como se verifica nas práticas já costumeiras da
pejotizaçao, da terceirização, do trabalho ordinário em horas extras (sem
remuneração correspondente) etc.
Alie-se a tudo isso a completa falta de vontade
do Estado em arrecadar as contribuições previdenciárias que seriam devidas
sobre os valores pagos na Justiça, valendo lembrar que é imperdoável a inércia
do Estado a respeito, vez que está desconsiderando sua obrigação frente a um
patrimônio que não lhe pertence, sendo dele proprietário a classe trabalhadora.
Para se ter uma ideia até onde a coisa vai, em
2011 a Procuradoria Geral da União encaminhou à Corregedoria do Tribunal onde
atuo um Pedido de Providências, no qual reclamava do fato de eu estar intimando
a Procuradoria local do INSS para se manifestar em processos cujos acordos não
ultrapassavam a R$10.000,00, apoiando-se nos termos de uma Portaria, a de n.
176, de 19/02/2010, do Ministério da Fazenda, segundo a qual o INSS não deve
verificar a regularidade dos recolhimentos previdenciários em processos
finalizados com acordos até o valor indicado. Vale esclarecer que pela Portaria
n. 435, de 08/09/11, do Ministério da Fazenda, o patamar da não manifestação
aumentou, passando para as situações em que o valor da contribuição, ela
própria, fosse igual ou inferior a R$10.000,00 e, agora, desde dezembro de
2013, nos termos da Portaria n. 582, do Ministério da Fazenda, esse valor foi
majorado para R$20.000,00
Na prática, sem a fiscalização do INSS, as partes
declaram o valor que querem recolher, quando querem (e normalmente não querem),
o juiz não se importa e o recolhimento não se faz ou se o faz em valor bem
inferior ao que seria devido se o direito fosse adimplido fora do processo, o que
gera prejuízo para a classe trabalhadora não apenas na perspectiva do valor de
seu patrimônio que está sendo aviltado, mas também no incentivo ao desrespeito
aos direitos trabalhistas por parte dos empregadores que a prática representa,
já que pagar espontânea e integralmente os direitos trabalhistas acaba ficando
mais caro do que deixar de pagá-los e esperar a reclamação trabalhista.
Importa lembrar que uma contribuição
previdenciária de R$20.000,00 (tomando como parâmetro de cálculo o percentual
de 38,5%), devidas que são apenas sobre as parcelas salariais, declaradas
enquanto tais, e imaginando a hipótese mais otimista para os trabalhadores de
uma proporção de 50%, representa um pagamento para o reclamante de
R$104.000,00, o que não se dá, para ser bastante conservador na projeção de
números, em mais de 20% das reclamações. Assim, se em um ano a Justiça paga ao
trabalhador R$ 25 bilhões (pensando a partir do número informado referente ao
primeiro semestre de 2013, que, em 2014 pode ser sido ainda maior), o
recolhimento previdenciário total, em perspectiva ainda conservadora de 50% de
natureza salarial, seria de R$ 4,81 bilhões, mas 80% desse valor, ou seja, R$
3,28 bilhões não é fiscalizado e certamente deixa de haver o recolhimento do
INSS na totalidade devida. Dados oficiais apontam que o recolhimento de INSS na
Justiça do Trabalho, em 2012, foi de R$ 2,4 bilhões[24]. Assim,
pode-se vislumbrar uma perda de arrecadação de, no mínimo, R$ 1 bilhão, valor
este que, na verdade, é extraído do patrimônio da classe trabalhadora e isto se
considerarmos, repito, uma base de cálculo de 50% dos valores pagos aos
reclamantes, o que é bastante reduzido, já que, de forma geral, no pagamento
espontâneo, esse percentual é de 70%.
Em cálculo grosseiro e bastante conservador,
portanto, pode-se dizer que os tais 18 bilhões que o governo agora quer tirar
dos trabalhadores, para que paguem uma conta que não fizeram, foram gastos
previamente com:
- isenção
para a Fifa, R$ 1,1 bilhão;
- desvios
na Petrobrás, R$ 2,1 bilhões;
- desoneração
da folha de pagamento, R$13,2 bilhões;
- ausência
de recolhimento nos processos trabalhistas, R$ 1 bilhão
- Total:
R$17,4 bilhões.
Isso sem falar no total das isenções tributárias,
R$ 77,8 bilhões, no incentivo às relações de trabalho precárias, notadamente a
terceirização, utilizada em larga escala no âmbito da administração pública,
que diminuem direitos trabalhistas e consequentemente as contribuições
previdenciárias, e no descaso com a fiscalização do trabalho, favorecendo tanto
ao desrespeito aos direitos trabalhistas como à redução das contribuições
sociais decorrentes, em montantes incalculáveis, mas que, certamente, superam,
em muitas vezes, os R$ 18 bilhões.
O interessante é que além de não realizar a
fiscalização das relações de trabalho, isentar o capital do pagamento de
contribuições sociais e de, efetivamente, deixar de arrecadar valores
declaradamente devidos, o governo ainda agride a classe trabalhadora deixando,
deliberadamente, de pagar seus benefícios previdenciários[25].
Com efeito, somente em 2010 foram distribuídas às
Varas da Justiça Federal, na cidade de São Paulo, 16.924 ações, e 39.396, nos
Juizados Especiais do Estado. Nestes, nos Juizados Especiais, em matéria
previdenciária, foram distribuídas, em 2010, no Estado de São Paulo, 128.644 ações[26].
Em todo país, visualizando os dados de 2011 e
considerando os processos então em curso, o INSS apresentava-se como réu em 5,8
milhões de ações, que tiveram origem, sobretudo, com a regra da alta
programada. Segundo estimativa do Sindicato Nacional dos Aposentados e
Pensionistas da Força Sindical (Sindinap) entre 50% e 70% desses processos
previdenciários são motivados por problemas com os auxílios, entre eles o
auxílio-doença[27].
Esse desprezo do Estado com o respeito às
premissas básicas de um projeto irrisório que seja de distribuição de renda e
de implementação de um Estado Social mínimo faz, inclusive, com que a gente se
sinta um autêntico idiota quando, em decorrência de um dever funcional, mas
contrariando as diretrizes da própria instituição, exige o completo
recolhimento das contribuições sociais e obrigações tributárias.
O que se tem, em concreto, é um histórico de
atuação do Estado em favor da acumulação da riqueza por meio da exploração e do
sofrimento da classe trabalhadora, o que se vê possibilitado pela venda da
ilusão do fornecimento de prestações de assistência social e de uma suposta
efetividade do Estado do bem-estar social, valendo destacar, ainda, que os tais
“R$ 18 bilhões que serão retirados dos trabalhadores correspondem a
70% do gasto com o Bolsa Família em 2014”[28].
Diante desse acúmulo de desrespeito aos direitos
dos trabalhadores fica ainda mais agressivo vir a público propor salvar a
economia por meio da imposição de novo sacrifício aos trabalhadores, mascarando
o ato com a retórica de tratar-se de um ajuste ou de “um aperfeiçoamento das
políticas sociais para aumentar sua eficácia”.
- O prejuízo concreto dos trabalhadores
O prejuízo concreto dos trabalhadores está
demonstrado nos dados acima, que revelam a séria agressão aos direitos
trabalhistas e previdenciários que as Medidas representam.
De um ponto de vista imediato as MPs prejudicam
os trabalhadores porque criam obstáculos ao recebimento de benefícios
previdenciários e o governo bem sabe dos problemas que envolvem sua atitude,
tanto que só editou as Medidas na “calada do ano”, no dia 30 de dezembro de
2014. Como diz Luís Carlos Moro, “é impressionante como se legisla nos
estertores de dezembro de cada ano”[29].
As duas MPs, ns. 664 e 665, fixam uma série de
alterações nas regras para o acesso aos benefícios: seguro-desemprego, abono
salarial, seguro-defeso, pensão por morte, auxílio-doença e auxílio-reclusão.
Conforme resumo muito bem feito por Sandro Sarda
e José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva, as precarizações mais significativas
previstas nas MPs 664/14 e 665/14 são:
“I – exigência de 24 meses de casamento ou de
união estável para recebimento de pensão por morte;
II – redução do valor da pensão por morte de 100%
para 50%, acrescido de 10% por dependente;
III – redução do tempo de duração do benefício de
pensão por morte, de acordo com a expectativa de vida do cônjuge;
IV – carência de 24 meses para pensões por morte;
V – alteração da base de cálculo do
auxílio-doença, observando-se a média das 12 últimas contribuições;
VI – ampliação de 15 para 30 dias do período pago
pela empresa, na hipótese de incapacidade para o trabalho, pois apenas após o
período de trinta dias é que o trabalhador deverá ser encaminhado ao INSS para
realização de perícia;
VII – possibilidade de realização de perícias
médicas por empresas, mediante acordo de cooperação técnica;
VIII – alteração das carências para requerimento
de seguro-desemprego, de 6 meses para 18 meses na 1ª solicitação, de 6 para 12
meses na 2ª, mantendo-se o período de 6 meses apenas a partir da 3ª
solicitação.”
No que se refere ao seguro-desemprego, por
exemplo, o novo requisito vai fazer com quem dos atuais 3,2 milhões de
trabalhadores dispensados sem justa causa que não têm direito ao benefício, vez
que seus contratos não chegam a seis meses, atinja-se ao número trágico de 8
milhões de trabalhadores, o que equivale a 64,4% dos trabalhadores dispensados,
sem justa causa. Ora, se lembrarmos que há uma projeção de crise econômica para
o presente ano, o governo ao promover tal medida, não pensa apenas em
economizar, mas também em não sofrer as conseqüências financeiras do
desemprego, que resta, então, admitido como saída natural para a crise. O que o
governo está dizendo é que os trabalhadores, que já pagaram historicamente com
a supressão de seus direitos e que tiveram a sua força de trabalho utilizada a
serviço da produção de riquezas para o capital, serão, agora, simplesmente,
jogados fora e conduzidos à sua própria sorte, fazendo-o, ainda, mediante forte
inversão de valores e por meio de um rebaixamento moral dos trabalhadores,
argumentando, de forma dissimulada, que a Medida tem o objetivo de eliminar as
fraudes, como se a fraude não tivesse que ser identificada especificamente e
punida. Aliás, seria bem mais certo apontar a arma da moralidade para outros
lados…
Do ponto de vista do projeto político
constitucional, no entanto, o desenvolvimento econômico deve seguir os ditames
da justiça social (art. 170), incluindo a busca do pleno emprego, tendo por
fundamento a preservação da dignidade humana, estando o empregado, portanto,
protegido contra a dispensa arbitrária (art. 7º., I) e a classe trabalhadora
como um todo agraciada com o princípio da melhoria da condição social.
Assim, qualquer argumento econômico que se pudesse
ter (e não se o tem, como visto) não justificaria negar vigência ao projeto
constitucional que exige uma atuação de todas as instituições para obstar o
incremento da lógica fácil da imposição de maiores sacrifícios aos
trabalhadores para a satisfação do interesse econômico de empresas
determinadas. O projeto constitucional lançou um desafio aos administradores e
ao poder econômico: o de demonstrar a viabilidade do modelo econômico a partir
da sua capacidade de produzir justiça social.
Assim, toda vez que se chega à conclusão de que
não é possível preservar direitos sociais o que se tem não é a demonstração do
elevado custo desses direitos e sim a comprovação de que o modelo é inviável e
que o projeto do Estado Social não passa de uma solerte mentira, posta apenas
para criar ilusões e impedir a dinâmica progressista ou mesmo revolucionária
dos conflitos, não abrindo mão, por certo, para tanto, da força do Estado
Policial.
- As MPs e os empregadores
Não há ponto positivo algum nas MPs pelo aspecto
básico de que constituem uma afronta à Constituição Federal, consubstanciando
um atentado ao Estado Democrático de Direito. Sendo assim, ainda que
economicamente tivessem alguma serventia não poderiam ser acolhidas pela ordem
jurídica.
Nem mesmo para os empregadores, pensados na
perspectiva daqueles que se interessam pelo mercado interno, as Medidas têm
algum ponto positivo, pois não interessa ao processo produtivo eliminar a
proteção dos trabalhadores contra as contingências sociais, pela simples razão,
econômica, de que isso gera as inseguranças das quais se origina o adoecimento,
que tanto mal faz ao processo produtivo.
Veja que as MPs oneram as empresas, aumentando de
15 para 30 dias o tempo em que o empregado afastado do trabalho, por doença ou
acidente do trabalho, fica sob responsabilidade econômica do empregador,
dificultando tanto a vida do trabalhador quanto da empresa.
- Os obstáculos jurídicos ao implemento das
MPs
Vários são os óbices jurídicos das MPs, sobretudo
pelo aspecto básico de que ferem os princípios da prevalência do social sobre o
econômico e da progressão dos direitos sociais. E ainda que algum argumento
econômico pudesse ser utilizado para justificar uma excepcionalidade à norma (e
princípios são normas), não se teria base fática concreta para esse argumento,
conforme vastamente demonstrado acima.
Essa não é, de todo modo, uma questão meramente
econômica, pois segundo números extraídos apenas das ações que tramitaram na
Justiça do Trabalho em um único ano, o de 2011, 2,8 mil trabalhadores morreram
em decorrência de acidentes do trabalho, que estão relacionados a uma maior
precariedade nas relações de trabalho.
Cumpre destacar que em infeliz coincidência com o
resultado da Copa do mundo, a precariedade das relações de trabalho conduziu o
Brasil a outro quarto lugar, especificamente no que tange ao número de
acidentes fatais no trabalho[30].
Interessante que os trabalhadores mais suscetíveis
a acidentes são os motoristas, os agentes de segurança, os trabalhadores da
construção civil e os trabalhadores rurais e as reformas jurídicas que estão
sendo defendidas no Congresso Nacional direcionam-se, exatamente, a reforçar a
precariedade nesses setores. Lembre-se que tramita no Congresso Nacional um
projeto de lei para revogar a lei que limitou a jornada de trabalho dos
motoristas.
A terceirização é utilizada em larga escala nos
serviços de segurança, na construção civil e no transporte e “segundo dados do
Dieese, o risco de um empregado terceirizado morrer em decorrência de um
acidente de trabalho é cinco vezes maior do que nos demais segmentos produtivos”[31].
Destaque-se, ainda, que o setor econômico
requereu, recentemente, a suspensão, que já foi autorizada pelo Ministério do
Trabalho, da aplicação da NR12, que regulamenta a forma das atividades
produtivas com máquinas, mas em 2013, “apenas 11 tipos de máquinas e
equipamentos (como serras, prensas, tornos, frezadoras, laminadoras, calandras,
máquina de embalar) provocaram 55.118 infortúnios, o que representa mais
de 10% do total de 546.014 acidentes típicos comunicados pelas empresas no
Brasil”[32].
Fato inquestionável é que os trabalhadores estão
morrendo em decorrência de insegurança, no trabalho, no direito e na economia,
e a postura do governo em vez de ser uma atitude responsável, buscando eliminar
as causas desse mal, proibindo a terceirização, afastando o banco de horas,
eliminando as horas extras, punindo as fraudes trabalhistas, erradicando o
trabalho infantil, promovendo a abolição do trabalho em condições análogas a de
escravo, exigindo a adoção de medidas efetivas de proteção do trabalhador no
meio ambiente de trabalho e garantindo a estabilidade no emprego, o exercício
do direito de greve e a sindicalização, que certamente gerariam o efeito da
redução de mortes, foi a de simplesmente diminuir os custos que da morte do
trabalhador decorrem. Como dito por Luís Carlos Moro, “Morreram trabalhadores
demais nos últimos anos. Entre 2006, quando se gastava cerca de 39 bilhões de
reais por ano com pensões, e 2013, houve um salto para 87 bilhões. Muito
dinheiro para os mortos. Mais urgente que reduzir as mortes, a equipe econômica
entende que é preciso diminuir o valor com as despesas dos mortos.”[33]
- Impactos no Judiciário
É evidente que essas alterações, por ferirem
preceitos jurídicos básicos, causarão impacto no Judiciário, no que se refere
ao número de demandas. Mas esse parece ser um efeito calculado, assumido
enquanto tal, já que o Estado brasileiro (assim como pensa boa parte do
jurisdicionado empresarial nacional) não tem medo dos efeitos das decisões
judiciais, que costumam ser dóceis com aqueles que agridem direitos sociais,
mesmo que de forma reiterada e deliberada. Com efeito, conforme noticia o CNJ[34],
os setores públicos da esfera federal e dos estados foram responsáveis por
39,26% dos processos que chegaram à Justiça de primeiro grau e aos Juizados
Especiais entre janeiro e outubro do ano passado. O Instituto Nacional de
Seguro Social (INSS) ocupa o primeiro lugar no ranking das
organizações públicas e privadas com mais processos no Judiciário Trabalhista,
Federal e dos estados. O órgão respondeu por 4,38% das ações que ingressaram
nesses três ramos da Justiça nos 10 primeiros meses do ano passado, sendo que
no que se refere, especificamente, à Justiça Federal, esse percentual é de 34%
(de ações no primeiro grau) e 79% (nos juizados especiais).
Dia desses recebemos, na Faculdade de Direito da
USP, um professor alemão, Wolfgang Däubler, e quando, após sua palestra, lhe
indaguei como eles resolviam os problemas do precatório, ele não entendeu a
pergunta e tive que ser auxiliado, na formulação da questão, pelas demais
pessoas que estavam presentes ao evento. Quando ele entendeu a pergunta ficou
horrorizado e respondeu com uma indagação exclamativa: “Mas, como assim: o
Estado não cumpre o direito que ele próprio cria?
Na Alemanha isso não
acontece!” Ficamos todos quietos, para não aprofundar a vergonha, vez que se
levássemos a questão adiante teríamos que lhe dizer que por aqui não só o
Estado assim age como os homens do direito acham normal que isso ocorra e mesmo
as estruturas jurídicas, da forma como são aplicadas, servem como uma espécie
de incentivo institucionalizado para que o Estado não cumpra o direito em
detrimento do cidadão, conferindo-lhe “prerrogativas” processuais: juros
reduzidos, prazos em dobro, isenção de custas e o próprio precatório, que, em
verdade, serve de freio à obrigação do pagamento.
De fato, é inconcebível que os administradores da
coisa pública não tenham compromisso com os direitos sociais e transformem o
Estado em um dos maiores, senão o maior, litigante da realidade jurídica
nacional.
Ocorre que nossos governantes pensam mais nas
estratégias partidárias, nos dividendos eleitorais e nos agrados aos
financiadores de campanha, como forma de se manterem no poder, do que,
propriamente, na implementação de algum projeto de país.
As Medidas Provisórias ns. 664 e 665, editadas em
30 de dezembro, são prova contundente da preocupação exclusiva em apresentar
números positivos de superávit, para sustentação política, mesmo que isso
implicasse em ofensas à Constituição e gerasse danos à classe trabalhadora e,
por tabela, ao Judiciário.
Um modo eficiente de alterar essa realidade,
consistente na adoção de uma postura irresponsável, que preconiza a
institucionalização do calote, tomando como vítima os titulares de direitos
sociais e contando com a impunidade e a morosidade judicial, é o Judiciário se
utilizar das figuras jurídicas do dano social e do assédio processual, punindo
de forma exemplar e como mecanismo de desestímulo à prática ilícita, o agressor
contumaz e convicto da ordem jurídica, o que se justifica ainda mais quando o
agente é o próprio Estado.
- Conclusão
É preciso reconhecer que existe um estágio de
violência institucionalizada, representada pelo desrespeito aos direitos
sociais, do qual participa o próprio Estado como agente, tendo como vítima
principalmente o cidadão mais pobre, que, neste sentido, é tratado como um
inimigo, o que é inconcebível, ainda mais dentro da lógica jurídico-política de
um pretenso Estado Social.
Vale reparar que de forma totalmente incoerente
essa preocupação econômica, que justifica as supressões de direitos, não é
vista, com a mesma intensidade, no que se refere às obrigações do recolhimento
das contribuições sociais, o que representa mais uma violência aos titulares de
direitos sociais, pois a efetividade desses direitos, notadamente os
previdenciários, depende do custeio.
Qualquer pedido de sacrifício dos trabalhadores
para salvar o modelo econômico só se justificaria dentro da lógica de um pacto,
apoiado em um plano construído a partir de números reais, com projeções e
fixação de prazos, e do qual participassem todos os segmentos da sociedade,
impondo-se o maior sacrifício daqueles que, nos últimos anos, foram os mais
beneficiados do modelo, quais sejam, os grandes conglomerados econômicos, os
bancos, as empreiteiras, as empresas em geral, os políticos e os agentes de
Estado, e somente depois, se necessário fosse e gerasse efeitos concretos,
chegar aos trabalhadores e mesmo assim de forma escalonada, exigindo-se mais do
que mais ganham. Mas esse é apenas um argumento retórico, vez que na lógica do
projeto já estabelecido no estágio atual da racionalidade o que se exige da
inteligência humana é que impulsione a humanidade para frente e não para trás.
Ora, a redução de custos na ordem de 18 bilhões
não salva a economia nacional e, portanto, trata-se da imposição de um
sacrifício a uma quantidade enorme de pessoas sem qualquer retorno financeiro
concreto para a economia como um todo. Além disso, essa forma de encarar os
direitos dos trabalhadores é típica da teoria neoliberal, que mascara os
problemas que, na essência, são do modelo de produção capitalista. Tentar
resolver os entraves do modelo econômico por meio da imposição de sacrifícios
aos trabalhadores torna os trabalhadores culpados pelos problemas de um sistema
do qual, na verdade, são vítimas, deixando de lado os reais entraves do modelo.
Durante toda a década de 90 travou-se uma luta
muito intensa, do ponto de vista teórico, para superar essa racionalidade
econômica, sobressaindo, inclusive, a noção de que ou bem esse modelo de
sociedade é capaz de assegurar aos trabalhadores condições dignas de
sobrevivência, estabelecendo as possibilidades concretas de se caminhar em
direção da igualdade social, ou deve sucumbir, cedendo a outro modelo de
sociedade.
Diz-se que é preciso alavancar a economia, mas é
totalmente ilógico buscar fazê-lo por meio do sacrifico exatamente daqueles que
são os responsáveis pela produção das riquezas, os trabalhadores. O sucesso
econômico, pensado na viabilidade do modelo, está, portanto, atrelado ao
desenvolvimento social.
Mas talvez no capitalismo uma justiça social seja
mesmo um projeto irrealizável, afinal é o próprio poder econômico que insiste
em explicitar isso, reivindicando insistente e reiteradamente redução salarial,
desemprego, contratos precários de trabalho, eliminação de sua responsabilidade
social e humana perante o trabalhador com a implementação da terceirização e a
exploração sem limites dos trabalhadores, afastando controles de jornada e
eliminando custos da proteção do meio ambiente de trabalho, tudo como forma
necessária de preservar o interesse das empresas, que se dizem pressionadas
pela concorrência internacional.
São Paulo, 02 de fevereiro de 2015.
NOTAS[1]. ORIONE, Marcus. “Dilma e a vaca profanada”. http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/28/dilma-e-a-vaca-profanada/, acesso em 31/01/15.
[2]. O fator previdenciário é de 1999, da época do FHC, portanto. Mas o Presidente Lula vetou o PL que foi aprovado no Congresso prevendo o fim do fator previdenciário, em 15 de junho de 2010, em meio à Copa do mundo da África…
[3]. Produto Interno Bruto, que representa todos os bens e serviços finais produzidos no país, em determinado período.
[4]. http://placar.abril.com.br/materia/governo-divulga-gastos-com-a-copa-do-mundo-25-6-milhoes-de-reais, acesso em 31/01/15.
[5]. Vide dados em SOUTO MAIOR, Jorge Luiz, “A Copa já era”, http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI199963,61044-A+Copa+ja+era, acesso em 02/02/15.
[6]. http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/08/20/ministerio-publico-diz-que-isencao-fiscal-a-fifa-e-inconstitucional.htm, acesso em 31/01/15.
[7]. http://esportes.r7.com/futebol/noticias/fifa-vai-ter-lucro-de-r-10-bilhoes-com-copa-do-mundo-20130327.html, acesso em 31/01/15.
[8]. http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2015/01/crimes-da-lava-jato-ja-desviaram-mais-de-r-2-bi-da-petrobras-diz-mpf.html, acesso em 31/01/15.
[9]. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,perda-da-petrobras-com-desvios-pode-chegar-a-r-21-bi-diz-morgan-stanley-imp-,1594820, acesso em 31/01/15.
[10]. http://www.rebelion.org/hemeroteca/brasil/040521borges.htm
[11]. http://www.brasildamudanca.com.br/empregos-e-salarios/aumenta-o-peso-dos-salarios-em-relacao-ao-pib
[12]. http://jornalggn.com.br/blog/roberto-bitencourt-da-silva/cepal-divulga-numeros-sobre-a-participacao-dos-salarios-no-pib-latino-americano
[13]. http://jornalggn.com.br/blog/roberto-bitencourt-da-silva/cepal-divulga-numeros-sobre-a-participacao-dos-salarios-no-pib-latino-americano
[14]. Não existem dados oficiais do período de 2010 a 2014.
[15]. http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/07/veja-quem-ganhou-e-quem-perdeu-com-copa-na-economia.html, acesso em 1º./02/15.
[16]. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-atinge-menor-nivel-de-desigualdade-social-desde-1960,105210e, acesso em 02/02/15.
[17]. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/01/1400191-patrimonio-dos-85-mais-ricos-do-planeta-e-igual-ao-ao-vivo-acompanhe-o-mercado-financeiro-no-liveblog-do-folhainvesthttpaovivofolhauolcombr201307182668-aovivoshtmlda-metade-da-populacao-mundial.shtml, acesso em 02/01/15.
[18]. http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2014-01/arrecadacao-federal-cresce-4-em-2013, acesso em 1º./02/15.
[19]. http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2012/04/03/governo-anuncia-medidas-economicas-para-tentar-estimular-industria.jhtm, acesso em 30/01/15.
[20]. http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/01/renuncia-com-desoneracao-de-folha-ja-e-de-pelo-menos-r-108-bilhoes.html, acesso em 30/01/15.
[21]. http://www.tst.jus.br/documents/10157/80736/valorespagos2013.pdf
[22]. http://www.tst.jus.br/documents/10157/80736/valorespagos2013.pdf, acesso em 1º./02/15.
[23]. Vide, a propósito: https://www.youtube.com/watch?v=oCKSY_F7FT4; https://www.sinait.org.br/index.php?r=mobile/noticiaView&id=8160; http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5913%3Afiscalizacao-trabalhista-agoniza-no-brasil&catid=61%3Anotas-em-destaque&Itemid=79; http://www.brasildefato.com.br/node/6448
[24]. http://www.tst.jus.br/documents/10157/051c8efe-f3ac-46c4-835e-a7d2af916522, acesso em 02/02/15.
[25]. Para maiores avaliações a respeito vide: http://blogdaboitempo.com.br/2013/08/22/violencia-silenciosa-do-estado-social-e-o-grito-das-manifestacoes-de-junho/, acesso em 02/02/15.
[26]. Fonte: http://www.trf3.jus.br/trf3r/index.php?id=1107.
[27]. http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1109360&tit=INSS-e-reu-em-58-milhoes-de-acoes
[28]. SARDA, Sandro & SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. “Apontamentos sobre a redução de direitos previdenciários (MP 664/14) e ao seguro-desemprego (MP 665/14) – ou: nunca uma vaca tossiu tão alto e de forma tão inconstitucional.” In: http://portal.mpt.gov.br/wps/wcm/connect/17babb00470b3c469159f79aa79cc51d/Apontamentos_mp_664_mp_665_VERSAO_FINAL.pdf?MOD=AJPERES&CACHEID=17babb00470b3c469159f79aa79cc51d
[29]. MORO, Luís Carlos. “Novas MPs trazem ‘tempos de vacas magras’.” (http://www.conjur.com.br/2015-jan-02/luis-moro-novas-mps-trazem-tempo-vacas-magras)
[30]. http://www.conjur.com.br/2014-jul-04/brasil-quarto-pais-numero-acidentes-fatais-trabalho
[31]. http://www.conjur.com.br/2014-jul-04/brasil-quarto-pais-numero-acidentes-fatais-trabalho
[32]. Cf. Alessandro da Silva e Vitor Araújo Filgueiras, in: http://reporterbrasil.org.br/2014/07/mais-de-55-mil-trabalhadores-sofreram-acidentes-com-maquinas-em-2013/
[33]. MORO, Luís Carlos. “Novas MPs trazem ‘tempos de vacas magras’.” (http://www.conjur.com.br/2015-jan-02/luis-moro-novas-mps-trazem-tempo-vacas-magras)
[34]. http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21877:orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica
(*) Jorge Luiz Souto Maior é Juiz
do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e
O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e de
um dos artigos da coletânea Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações
que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo
mensalmente às segundas.
Link: http://blogdaboitempo.com.br/2015/02/02/tragedias-anunciadas-as-medidas-provisorias-de-dilma/
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