1) Introdução; 2) O DIFÍCIL CONTEXTO POLÍTICO DO DEBATE DA TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL; 3) ELEMENTOS
CRÍTICOS DO PROJETO DE LEI 4.330; 3.1) Traços fundamentais do modelo vigente; Elementos estruturantes do
projeto brasileiro; 3.3) Problemas e riscos institucionais para o Direito do
Trabalho; 3.4) O difícil equilíbrio constitucional. 4) Notas finais.
Resumo
Este trabalho apresenta o panorama do debate da regulação da
terceirização no Brasil. A partir da proposta de regulação legislativa e do
contexto que ela é debatida, são discutidos alguns impasses na construção de um
desenho normativo, com destaque para alguns pontos críticos das soluções
preconizadas pelo Projeto de Lei n. 4.330/2004. A questão da harmonização da
proposta legislativa com o espírito da Constituição de 1988 é tematizada e
relacionada aos desafios mais amplos de uma proposta de reconstrução teórica do
Direito do Trabalho para enfrentar a regulação da terceirização.
Palavras-chave
Terceirização,
Reforma Trabalhista, Direito do Trabalho, Direitos fundamentais, Isonomia.
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1. INTRODUÇÃO
A terceirização é um tema difícil do ponto de vista metodológico. Não se
trata de um tipo contratual ou uma categoria jurídica, mas um difuso processo
organizativo de natureza eminentemente econômico-financeira que pode
corresponder a uma diversificada modelação jurídico-negocial. Como abordá-lo?
Como conceituá-lo? Dentro desse fenômeno da descentralização produtiva, que
tanto desafia o Direito do Trabalho, podemos sempre introduzir na análise
elementos econômicos, sociológicos, como podemos também considerar elementos
qualitativos e quantitativos e, ainda, considerar as práticas distintas em
alguns setores econômicos as singularidades do setor público. Todas são perspectivas
e fatores relevantes, que não podem ser desprezíveis ao olhar do jurista do
trabalho para compreender o modelo de proteção e de regulação da relação de trabalho
subcontratada e, claro, seus efeitos sobre a titularidade de direitos sociais.
Neste texto pretendo abordar especificamente os pontos críticos das
propostas legislativas de regulação da terceirização no Brasil. De modo mais
específico, minha abordagem tem como eixo central a perspectiva concreta de
aprovação no Brasil, depois de 15 anos de várias iniciativas legislativas, de um
Projeto de Lei iniciado no ano 2004, o Projeto de Lei n. 4.330, de 26.10.2004,
para identificar, a partir dele alguns problemas, desafios e tendências atuais,
dentro do que chamarei aqui de pontos críticos.[2]
É uma leitura crítica sobre os riscos à função protetora e
homogenizadora do Direito do Trabalho, ante a ameaça produzida pela função
degradadora da terceirização no Brasil. A análise
pressupõe a possibilidade de um ponto de vista jurídico e de construção de
direitos, no horizonte dos desafios de uma pauta de igualdade democrática.[3]
2. O DIFÍCIL CONTEXTO POLÍTICO DO DEBATE DA
TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL
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em havido nos anos recentes intenso
debate sobre o modelo de regulamentação a ser adotado em lei e do espaço da
terceirização no Brasil, assim como um estendido debate sobre ajustes no seu
quadro interpretativo pela Justiça Especializada do Trabalho. No entanto, o
elemento de contextualização do tema da regulação se apresenta como primeiro
ponto crítico, ou seja, a regulação como problema em si.
A prática de terceirização foi a partir da década de 90 o eixo central
da precarização do trabalho no Brasil. É o que revelam inúmeros estudos e
pesquisas consistentes sobre o mercado de trabalho brasileiro.[4] Foi
defendida como saída para o contexto macroeconômico de baixo crescimento do
país para superar a suposta rigidez da legislação trabalhista brasileira.
Nos anos recentes, mesmo com a retomada do crescimento econômico, a redução
do desemprego e da informalidade (entre 2003 e 2010 foram criados mais de 13
milhões de empregos formais), além de um conjunto amplo de políticas públicas
favoráveis ao mercado de trabalho, contraditoriamente a prática da terceirização se mantém e, ainda, apresenta tendência
de ampla generalização. Dados de instituições confiáveis estimam em 10.865,297 de trabalhadores em regime de trabalho terceirizado.
Esse número representaria 31% dos 33,9 milhões de trabalhadores com contrato
formal.[5] A tendência de generalização da
prática se dá em vários setores privados econômicos (comércio, indústria e
serviços) e no setor público e, o que é preocupante, tende a se instalar em
atividades principais do processo produtivo.
Nesse ambiente de intensificação da terceirização e de tensões no quadro
interpretativo, em meio a uma conjuntura econômica favorável, é que se acentua
o debate em torno da necessidade e urgência de um marco regulatório para reduzir as incertezas da frágil regulação
jurídica.
Diante da escassa normatização e do frágil
quadro interpretativo da jurisprudência
permitiu-se avançar no Congresso do Projeto de Lei (PL) 4.330, com previsão de ser submetido à
votação na Câmara dos Deputados. Se aprovada nesse colegiado, poderá ir direto
para apreciação do Senado (Casa revisora), salvo se houver recurso pedindo a
votação do projeto no plenário da Câmara dos Deputados.[6]
O Projeto de Lei 4.330 é rejeitado pela
totalidade dos atores sindicais, em razão basicamente de seu caráter de
liberdade ampla para a subcontratação, uma completa desregulamentação, já que a
tornaria lícita para todo o processo produtivo, ou seja, permite o uso em
atividades principais e acessórias, sem grandes restrições.
Para os atores sindicais, uma normatização para conter e minimizar a precariedade
da relação triangular de trabalho que afeta os trabalhadores terceirizados é
fundamental para definir o que pode ser objeto de terceirização, identificar
claramente quem são as empresas que podem subcontratar e definir as suas
responsabilidades. Os representantes dos
trabalhadores defendem: (a) imposição
de limites para a terceirização (contra a terceirização da atividade-fim); (b)
responsabilidade solidária; (c) igualdade
de direitos entre terceirizados e contratados pela empresa; (d) penalização da
fraude e dos infratores.
Por outro lado, da perspectiva de setores empresariais, liderados pela
Confederação Nacional da Indústria (CNI) e outras cinco entidades patronais, há
uma irrestrita defesa do projeto de lei, tendo como argumento-chave representar
o pressuposto para a definição de normas claras na contratação de trabalho
terceirizado, com impactos na melhora da competitividade e no ambiente de
negócios. Assim, a CNI assume como essencial e prioritária a aprovação do PL 4.330.[7] O governo brasileiro
tem assumido um papel de mediador pouco ativo do processo negocial construído
no parlamento.
Devemos agregar alguma nota sobre a crise política instaurada no Brasil,
que eclodiu a partir das manifestações de junho de 2013. A inserção dos
trabalhadores nas reivindicações aparece em uma primeira manifestação do dia 11
de julho, em ato conjunto, convocado por sete centrais sindicais (CUT, CTB,
Força, UGT, CSP/Conlutas, CGTB, CSB e NCST), que inseriram como uma de
suas bandeiras o fim do Projeto de Lei 4.330, que, nas palavras do presidente
da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas: “esse projeto de lei
nefasto que acaba com as relações de trabalho no Brasil e é, na verdade, uma
reforma trabalhista escondida atrás de uma proposta de regulamentação da terceirização”.
Apesar de que essas bandeiras não tenham mobilizado os trabalhadores em grande
número nas ruas, o ambiente político teve o efeito de provocar uma maior tensão
política em torno do modelo de regulação da subcontratação.
Em linhas gerais, esse
é o complexo contexto do debate público brasileiro, que desafia a regulamentação para a
construção de um quadro normativo atualizado, para enfrentar uma realidade e
uma prática estendida ainda muito associada ao trabalho precário.
Em razão das percepções
distintas sobre a terceirização entre os diversos atores sociais, não é
possível pensar na construção de uma plataforma democrática básica mínima.
Nesse ponto é pertinente indagar sobre a salvaguarda do princípio democrático,
como elemento central do Estado Constitucional. Se estivermos de acordo com uma
visão realista do Direito do Trabalho, que ele tem função protetora e estabilizadora
das relações de trabalho, temos que admitir que, no caso brasileiro, em que não
há consenso sobre o direito pelos atingidos (no caso rejeitado pelos
trabalhadores), o projeto já nasce com a marca desestabilizadora. Em suma, o projeto de regulação brasileiro
tem como primeiro ponto crítico, sem
dúvida, o próprio procedimento de regulação como problema de política do direito do trabalho de base democrática.
3. ELEMENTOS
CRÍTICOS DO PROJETO DE LEI 4.330
3.1) Traços fundamentais do modelo vigente
Há que se considerar,
primeiro, como traço fundamental do sistema brasileiro, a ausência um desenho
normativo sobre o regime de terceirização.
Dessa escassa
normatização há, basicamente, a regulação das empresas de trabalho temporário,
que sobreveio em 1974 (Lei 6.019/74) e, depois, em
1983, a autorização para a subcontratação de serviços de vigilância bancária (Lei
7.102/83). Em 1994, alteração na CLT, passou a permitir a intermediação de
mão-de-obra por meio de cooperativas de trabalho.
Esse quadro de escassa regulamentação
permitiu um grande protagonismo jurisprudencial. Em 1986, o Tribunal Superior
do Trabalho (TST) editou a Súmula n. 256 para restringir a terceirização às
possibilidades já previstas em lei até aquele momento. Depois
de num primeiro momento vedar a prática, a partir de 1993, a jurisprudência do
TST passou a permiti-la também em atividades de limpeza e conservação e outras
ligadas ao conceito de “atividade-meio” da empresa, na moldura da Súmula nº
331, de 17.12.1993.
Os pontos fundamentais da proposta de reforma brasileira visam em
essência: a) alterar o quadro jurisprudencial, para ampliar o objeto da
terceirização; b) definir em lei o âmbito da responsabilidade das empresas
envolvidas.
A proposta, na redação do substitutivo apresentado
pelo Deputado Artur Oliveira Maia, permite amplamente a terceirização, através da figura da contratada que
define como: “I – contratada: a empresa
prestadora de serviços especializada, que presta serviços terceirizados
determinados e específicos, relacionados a quaisquer atividades do tomador de
serviços” (art.
2º).
Nos termos
propostos, o que pode ser objeto de terceirização?
Responde o projeto
amplamente a todas as atividades do tomador, ou seja, todo o processo produtivo, sem
exceção.
O projeto não veda a subcontratação sucessiva e, assim, permite
sucessivas terceirizações.
Para o setor público, o projeto veda apenas a contratação de prestação
de serviços para a execução de atividades exclusivas de Estado em toda a
Administração Pública.
A solução
preconizada do terceiro equivalente à “empresa especializada”, que aparece pela
primeira vez em um substitutivo
do Deputado Arthur Oliveria Maia, a
rigor tem inspiração interna no artigo 25, § 1º da Lei n. 8.987/95, que
disciplina a atuação das empresas concessionárias e permissionárias de serviço
público em geral.[8]
Portanto, há uma opção do projeto em utilizar-se do critério da
especialização, em substituição ao modelo jurisprudencial vigente, que há vinte
anos acolhe o critério que diferencia atividades-meio e atividades-fim,
restringindo a terceirização nesta última.
A proposta
brasileira fixa como limitador para a adoção do regime de subcontratação que
ela se dê via “empresa especializada” a prestar serviços.
Está afastada a
possibilidade de terceirização por meio de empresas não especializadas, que não
tenham objeto único. Ou seja, não podem atuar prestadoras de serviços genéricas.
Outra limitação, que é decorrente da definição da empresa especializada como
terceiro, é que está excluída a hipótese de contratação de trabalhadores
autônomos, sob a figura de “empresa sem empregado” ou unipessoais.
A especialização da contratada será comprovada
mediante documentos constantes do contrato de prestação de serviços
terceirizados que atestem que a prestação anterior de serviços semelhantes ou
por documentos que comprovem a existência de empregados qualificados no seu
quadro de pessoal, que atendam os requisitos fixados no contrato.
3.3) Problemas e riscos
institucionais para o Direito do Trabalho
Há uma série de questões,
problemas e riscos encartados na proposta da subcontratação ampla por empresa
especializada em serviços determinados.
A intenção
declarada pelos defensores dessa proposta é eliminar imprecisões quanto a
definições sobre atividades-fim e atividades-meio, critérios construídos pela
jurisprudência para reconhecimento da licitude da subcontratação e fixar
limites ao regime de subcontratação.
É fácil concluir
que a liberdade da subcontratação é estipulada exclusivamente do ponto de vista
da empresa, já que não a define a partir dos serviços realizados pelo empregado
subordinado.
A) Ausência de um conceito da
subcontratação
O Projeto de Lei 4.330 apenas define a terceirização como um contrato
entre duas empresas, regido pelo Código Civil. Não apresenta qualquer definição precisa sobre o
conceito de subcontratação, intermediação ou locação de mão-de-obra. Ao definir
o âmbito
da subcontratação sequer faz, como se fazia desejável, a distinção com a
locação de mão-de-obra. Como tal, a proposta brasileira pode referir-se de modo
amplo à subcontratação, ressalvado apenas locação de mão-de-obra por meio de
empresa de trabalho temporário, que tem regulamentação específica.
Esse primeiro problema conceitual pode ser objeto de grande confusão,
pois sequer a doutrina e a jurisprudência nacional têm tido um rigor nessa
distinção. Seria fundamental alguma definição ao menos para indicar que na terceirização
é a empresa contratada quem assume os riscos, os recursos humanos e exerce a
potestade de mando; contrariamente ao modelo da locação de mão-de-obra.
A proposta, ao conter um regime menos rígido se comparado à lei de
trabalho temporário, ante um conceito preciso, tende naturalmente promover o
uso preferencial da subcontratação em substituição ao trabalho temporário.
B) Fragilização do conceito
de empregador e risco de fraude
Do ponto de visto
jurídico, a meu ver, essa proposta, ao admitir a terceirização de atividades
essenciais, nucleares do empregador, sem limites a terceirização sucessiva, que
terá naturalmente o efeito explosivo de ampliação da prática, cria riscos
maiores às dificuldades de identificação da figura do empregador e, por outro
lado, vulnera a própria noção clássica de empregador, que por definição é aquele
que “contrata diretamente”, que, no caso brasileiro, tem previsão específica no
art. 2º da CLT.
A definição da terceirização por meio de empresa especializada não
permitirá qualquer valoração sobre o tema dos sujeitos da relação de emprego,
sobretudo sobre a figura complexa do empregador. Pela proposta há apenas a preocupação de definir, em termos
mercantis, a empresa prestadora de serviços especializados, seu funcionamento e
o conteúdo do serviço contratado. É preciso assinalar que a doutrina brasileira
pouco se desenvolveu na questão da identificação do empregador na relação
complexa de subcontratação.
São preocupantes as possibilidades ampliadas de fraude e de simulação. O
PL 4.330/2004 tende a promover a fraude, o trabalho encoberto, disfarçado, com
vulneração à legislação nacional, pois dificultará ainda mais a revelação da
dependência e da subordinação jurídica na terceirização de atividades internas
ou atividades-fim, cuja relação impõe maiores dificuldades de revelar o verdadeiro empregador ou o poder de direção compartilhado ou superposto
entre duas empresas. Não há uma estratégia de enfrentamento do emprego
encoberto ou disfarçado, ao menos na linha da Recomendação n. 198, da OIT.
Se há a
possibilidade concreta de subcontratação em todas as atividades principais e em
todo o processo produtivo, ficaria difícil imaginar que não haverá direção do
trabalho pela tomadora de serviços.
Embora por definição na terceirização a direção dos trabalhadores se dê
pela contratada, a noção de empregador ficara esvaziada, além, é claro, de uma
quase autorização legal para a fraude em relações de trabalho encobertas.
Apesar de haver um princípio da proteção que pode ser extraído de
diversos dispositivos da CLT (arts. 2º, 10, 448 e 455), ao adotar o modelo de
terceirização propugnado, coloca-se em risco o modelo institucional brasileiro.
A meu ver, o Brasil perde a oportunidade de avançar na redefinição da
figura do empregador, timidamente tratado na doutrina brasileira, que é um
enfrentamento difícil, mas necessário, frente à estendida prática da
terceirização.
Em síntese, haverá
nesse ponto uma ampla desjuridicização do modelo normativo, que se torna
simbólico ante a amplitude de possibilidades de terceirização.
C) A responsabilidade
subsidiária como princípio
Quanto ao tema da determinação dos sujeitos
responsáveis pelo cumprimento dos direitos e obrigações do contrato
de trabalho, o Projeto de Lei
brasileiro preconiza a responsabilidade subsidiária como princípio.
Essa previsão
aparece em dois pontos. Primeiro, para definir responsabilidade subsidiária em
tema de saúde e segurança no trabalho, enquanto a serviço da contratada e em
suas dependências. Segundo, a responsabilidade subsidiária em caso de
inadimplemento das obrigações trabalhistas e com a previdência social.
No que tange a responsabilidade da administração pública, propõe o PL
4.330 o princípio da responsabilidade subsidiária, com a obrigação de que a
contratante fiscalize o cumprimento das obrigações pela prestadora; caso a
contratante não faça essa fiscalização, a responsabilidade deve tornar-se solidária.
O debate da responsabilidade da Administração Pública tem outro elemento
que é a definição do âmbito da responsabilidade do Estado. É basicamente esse o
conflito interpretativo instaurado entre o Tribunal
Superior do Trabalho (TST) e o Supremo Tribunal do Federal (STF). De um lado a
Súmula 331 do TST que, desde 2000, conferia responsabilidade subsidiária pelas
obrigações trabalhistas não pagas, independentemente de comprovação de culpa e,
de outro, a regra do art. 71, § 1º da Lei das Licitações (Lei n. 8.666/93). O
acolhimento da tese do Estado na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC)
n. 16 do STF, em decisão do Supremo de 24 de novembro de 2010, declarou
constitucional o dispositivo isenta a Administração Pública de responsabilidade nos casos de inadimplência dos encargos trabalhistas
das empresas terceirizadas. A Construção da Súmula 331, do ano de 1993,
considerava lícita a terceirização, mas era omissa quanto à responsabilidade da
Administração Pública. Assim, em 11.09.2000, a Súmula 331 foi alterada,
passando a incluir a responsabilidade subsidiária dos órgãos da administração
direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das
sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual
e constem também do título executivo judicial.
Na proposta do PL 4.330, a responsabilidade solidária como exceção, se
adotará, caso não haja fiscalização pela empresa tomadora. Somente em duas
hipóteses, o projeto cria a possibilidade residual de adoção da responsabilidade
solidária. A primeira, nos casos em que a empresa contratante não exerça a
fiscalização pela contratante. A segunda, quando ocorrer fraude.
O modelo jurisprudencial de responsabilidade, que já é da subsidiariedade
para o setor privado, tende ser isento no setor público.
De certa forma, esvazia-se o conteúdo do art. 2º, § 2º da CLT que, ao
tratar do grupo econômico, adota como princípio a responsabilidade solidária.
Para a locação de mão de obra por meio do trabalho temporário, o tomador responde
solidariamente (art. 16 da Lei 6.019/74).
Assim, diferentemente de outros modelos jurídicos latino-americanos que
adotam o princípio da solidariedade, com as exceções próprias, o Brasil caminha
para a adoção da subsidiariedade como princípio de responsabilidade.
D) Restringida igualdade de
tratamento
Não há no PL 4.330 garantias
de igualdade de tratamento, a não ser uma precisão de igual serviço de
transporte, alimentação e de atendimento médico ou ambulatorial existentes nas
dependências da contratante ou local por ela designado.
O PL 4.330 não traz, portanto, nenhuma referência em igualdade de
salário, saúde e segurança do trabalho entre terceirizados e funcionários
contratados diretos das empresas.
Dados do DIESSE apontam que os trabalhadores terceirizados
recebiam, em dezembro de 2010, 27,1% remuneração menor do que os trabalhadores
contratados diretamente. A mesma pesquisa aponta que a jornada de
trabalho dos terceirizados é de três horas superiores semanalmente. Assim,
os temas salário e jornada, que revelam a grande diferenciação entre trabalho
terceirizado comparado com os empregados próprio, pode se configurar num
esquema institucional que, ao invés de combater a desigualdade, passaria a
normatizá-la.
Uma primeira observação inevitável é
que o contrato de trabalho dos terceirizados, sem garantias iguais de direitos,
fortalece a dualidade de condições de trabalho, já verificada pela maneira
intensa da relação de desigualdades produzida na prática abusiva da
terceirização brasileira.
No âmbito da jurisprudência do Tribunal
Superior do Trabalho (TST) já se admite a isonomia em caso de terceirização
irregular e quando demonstrada a igualdade de funções entre trabalhadores
terceirizados e empregados diretos. Esse é o conteúdo da Orientação Jurisprudencial
(OJ) 383, pela Subseção I Especializada em Dissídios Individuais da OJ, de 26
de abril de 2010. O teor da OJ 383 é o seguinte:
OJ-SDI1-383 TERCEIRIZAÇÃO. EMPREGADOS
DA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS E DA TOMADORA. ISONOMIA. ART. 12, “A”, DA LEI
N.º 6.019, DE 03.01.1974 (DEJT divulgado em 19, 20 e 22.04.2010). A contratação
irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de
emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo
princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas
trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador
dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do
art. 12, “a”, da Lei n.º 6.019, de 03.01.1974.
O tratamento isonômico defendido pela jurisprudência do TST visa afastar
os efeitos perversos e discriminatórios tentados pela terceirização ilícita.
Trata-se de mecanismo hábil a propiciar que o ilícito trabalhista não perpetre
maiores benefícios a seu praticante, encontrando amparo nos artigos 5º, caput, e 7º, XXXII, da Constituição, que
proíbe distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os
profissionais respectivos.
O TST, nesse sentido, vem se manifestando pela igualdade de direitos, em
caso de terceirização irregular da Caixa Econômica Federal, observado o
exercício das mesmas funções, ao entender ser possível reconhecer aos
empregados terceirizados os mesmos direitos dos trabalhadores contratados pela
tomadora dos serviços. O fundamento
da isonomia adotado pelo TST é extraído do art. 12, alínea a, da Lei nº
6.019/74, que efetivamente assegura igualdade de salários e, também faz
referência ao princípio da isonomia visa, também, a evitar tratamento salarial
diferenciado àqueles trabalhadores que exerçam trabalho igual para um mesmo
empregador (art. 7º, XXXII, da Constituição).
Portanto, vê-se que o TST vem sufragando a tese de serem extensivas ao
trabalhador irregularmente terceirizado as mesmas vantagens reconhecidas aos
empregados diretos, valendo-se para tanto da aplicação analógica do artigo 12
da Lei 6.019/74.[9]
3.4) O difícil equilíbrio
constitucional
Há uma inexorável relação entre democracia e direitos fundamentais que
põe limitações ao legislador ao limitar direitos sociais fundamentais e põe em
relevo o difícil e tênue equilíbrio constitucional da proposta de reforma
brasileira.
A opção ampla pelo
uso da terceirização, sem grandes limites, com restringida responsabilidade do
tomador de mão-de-obra, tende a produzir uma maior mercantilização do trabalho,
uma espécie de discreto retorno ao modelo de arrendamento de serviços.[10]
No caso brasileiro,
é difícil a harmonização com o espírito da Constituição brasileira de 1988. Há
na Constituição um rol de direitos dos trabalhadores (art. 7º). Temos uma
Constituição, cuja ordem econômica, é voltada para a transformação das
estruturas sociais. Precisamente, os artigos 170 e 192 da Constituição, fixam
limites aos instrumentalismos jurídicos, pois os princípios fundamentais da
ordem econômica brasileira são fundados na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tendo por objetivo “assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social” (artigo 170).
A ampliação da subcontratação, nessa
perspectiva, tende a promover uma desconstitucionalização ou desjuridicização
na proteção social do trabalho humano, contribuindo para a ampliação naquilo
que ela já é bastante simbólica.
Outra questão
constitucional fundamental é o conteúdo do princípio da tutela jurídica da
igualdade substancial ou material. A igualdade, tomando como referência a noção
de Liugi Ferrajoli, consiste em um
direito fundamental e formal que é o sistema de referência a todos os demais direitos,
um direito de todos os homens a igual consideração e respeito. Há juízo de
igualdade que se pode extrair da Constituição, como direito fundamental, a qual
assegura que para o mesmo trabalho ou profissão não pode haver tratamento
jurídico distinto na lei. Aqui deveria operar-se a restrição ao conteúdo
essencial desses direitos. Os direitos de igualdade, entendido no sentido
material e substancial, como direito de não sofrer discriminação normativa e de
gozar de igual regime jurídico, corresponde ao princípio de que nenhuma
desigualdade pode ser justificada. A partir dele podem
ser deduzidos todos os outros direitos humanos.
Em suma, em meio aos
desafios de construção de um marco legal para a terceirização, que é tema de
grande desafio do Direito do Trabalho, há que se responder também aos
pressupostos da qualidade da democracia constitucional.
4. NOTAS FINAIS
A proposta de reforma brasileira segue sem apresentar soluções
normativas para as patologias de terceirização, já que rigorosamente não está orientada
a instituir limites ou freios à degradação das condições de trabalho. Nesse
sentido, há o risco concreto de um forte retrocesso em relação ao quadro
jurisprudencial que impõe alguns limites à terceirização. Não se visualizam,
neste momento, alternativas para se reverter a direção do projeto e conduzi-lo
a enfrentar o problema do enquadramento da terceirização na direção de uma
estabilização das relações de trabalho.
O Projeto de Lei 4.330 em marcha ganha força, apesar de seus graves
equívocos, pela combinação da fragilidade de contra poder das forças sociais
com a ambição neoliberal de maior
flexibilidade, que se mantém, e tenta aproveitar-se desses momentos de crise
política e institucional do país.
Esse panorama contextual da reforma brasileira põe reflexões importantes
à plataforma ideológica do Direito do Trabalho, ou a sua motivação política de
base de ordenação do trabalho assalariado, que em última análise lhe dá
legitimação política.
A primeira reflexão. A equação do Direito do Trabalho que tinha como
objeto a troca de salário por trabalho, como conflito estrutural juridificado
pelo contrato de trabalho e pelas relações coletivas de trabalho, parece que
fará com que a explicação do Direito do Trabalho como disciplina, cada vez
menos se dê por meio da explicação do contrato de trabalho. De fato, a
terceirização, ao quebrar a estrutura do contrato de trabalho, abala a representação
do Direito do Trabalho.
A segunda reflexão. A prática generalizada da terceirização, com os
riscos de uma intensificação maior, no caso brasileiro, naturalmente fragiliza
e ofusca o trabalho associado a direitos, o sistema de direitos sociais e a
democracia. Assim, torna-se mais palatável e mais suave falar-se em trabalho
sem direitos e sem garantias, de tal forma que isso tem facilitado no ambiente
brasileiro colocar o valor da flexibilidade e da precariedade no centro da
construção da legislação do trabalho.[11]
[1] O presente texto que serviu de base da exposição oral apresentada por ocasião do Encontro de professores das Faculdades
de Direito da Universidade Federal do Paraná (Brasil) e da Universidade da
República (Uruguai), no dia 09.08.2013, sob o tema “Derecho del Trabajo y
Tercerización: teoría y práctica en Brasil y Uruguay”, no painel “La
Tercerización y la transformación del sujeto empleador en el derecho del
trabajo”.
[2] A primeira iniciativa
importante de projeto legislativo se deu em 1998 (Projeto de Lei n. 4.302, de
1998), durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Depois disso,
diversas iniciativas de regulação tiveram algum trâmite, sem, contudo, chegar a
votação no parlamento.
[3] Referimo-nos a “terceirização” em um sentido
amplo para designar a descentralização produtiva e a subcontratação, ou como
tem classificado a doutrina a) intermediação de mão-de-obra; b) subcontratação;
c) locação de mão-de-obra.
[4] O Departamento Intersindical de Estatística e
Estudo e Socioeconômico (DIEESE), entre 1999 e 2009, apontou um aumento de 61%
na contratação de serviços terceirizados, mais do que o emprego direto, cujo
aumento na formalização foi de 48%. De acordo com as pesquisas do DIEESE, no
último ano pesquisado, o rendimento médio era de R$ 799,00, o que equivale a 55% do rendimento médio mensal do salário protegido. A empresa
Petrobras S.A, por exemplo, tem hoje 295.260 trabalhadores terceirizados contra
76.919 empregados contratados de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
[5] Fontes: Rais, 2010. Elaboração DIEESE/CUT Nacional, 2011; e Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios, 2011, IBGE.
[6] Por ato do Deputado Marco
Maia, Presidente da Câmara dos Deputados, atendendo apelo das Centrais
Sindicais, foi criada em 31.05.2011 a Comissão Especial destinada a promover
estudos e proposições voltadas à regulamentação do trabalho terceirizado no
Brasil. Em 01.07.2011 o Deputado Sandro
Mabel foi eleito presidente da comissão e designou como relator o Deputado Roberto Santiago. A comissão realizou
quatro audiências públicas com representantes da sociedade e realizou diversas
reuniões para discutir a regulamentação. Foram inventariados pela comissão 28
projetos em trâmite na Câmara. O Relatório da Comissão optou por usar o Projeto
de Lei 4.330/2004 como referência e incorporou o substitutivo do Deputado Roberto Santiago e foi aprovado na comissão
por 14 votos a 2. A matéria foi aprovada nas comissões de Desenvolvimento
Econômico, e de Trabalho. O texto segue para exame da Comissão de Constituição
e Justiça, onde foi designado como relator o deputado Arthur Oliveira Maia
(PMDB-BA).
[7] Estão em linha com a CNI, as Confederações da Agricultura (CNA), do Comércio (CNC),
de Saúde (CNS), do Transporte (CNT) e do Sistema Financeiro (Consif).
[8] Lei n. 8.987/95: Art. 25. Incumbe à
concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos
os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que
a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa
responsabilidade. § 1º Sem prejuízo da responsabilidade a que se refere
este artigo, a concessionária poderá contratar com terceiros o desenvolvimento
de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço concedido, bem
como a implementação de projetos associados.
[9] Processo: E-ED-RR-655028/2000.1, Relatora Ministra Rosa
Maria Weber Candiota da Rosa, DJ-25/05/2007.
[10] Antonio. Martín Valverde, “El discreto retorno del arrendamiento de
servicios”, en AA.VV., Cues-tiones actuales de Derecho del Trabajo, Madrid,
Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1990, p. 225.
[11] Zygmunt Bauman, nos últimos anos tem nos ajudado a pensar
sobre as mudanças nos modos de vida nas sociedades do pós-guerra, especialmente
aquelas verificadas nas décadas finais do século XX e no início do XXI. A
sociedade que moldava seus membros como produtores foi substituída por essa que
os molda como consumidores. E "o consumidor em uma sociedade de consumo é
uma criatura acentuadamente diferente dos consumidores de quaisquer outras
sociedades até aqui". (BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.88).
(*) Sidnei Machado é Professor de Direito do Trabalho da UFPR (Curitiba, Brasil)
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