Foto: Guilherme Feliciano
Desconstrução do Direito Social
Por
Frederico Vasconcelos
Sob
o título “O STF e o Estado Social“, o artigo a seguir é de
autoria de Guilherme Guimarães Feliciano, juiz titular da 1a. Vara do
Trabalho de Taubaté (SP). *
O Poder Judiciário, tal qual os demais poderes da República, é uma
das manifestações políticas do Estado brasileiro. Ao decidir litígios
individuais e coletivos, não lhe basta buscar a pacificação social. Não é seu
mister simplesmente “decidir”, com a presteza possível, e assim superar o
conflito (até mesmo porque, em sede de litigiosidade social, os conflitos não
desaparecerão com a sua mera solução formal). Supõe-se que decida, sempre,
escorado pelos princípios constitucionais que a Carta em vigor erigiu como
fundamentos e objetivos fundamentais da República. Não há, pois, legitimidade
constitucional para um Judiciário radicalmente “liberal”, que garanta
liberdades e direitos individuais a qualquer preço e, de outro turno, ignore os
traços de social democracia que o próprio constituinte originário positivou.
Nessa linha de convicção, chama a atenção uma “tendência” de
desconstrução do Direito social que o Supremo Tribunal Federal vem revelando
nos últimos anos, não raro desautorizando jurisprudência anterior consolidada
do Tribunal Superior do Trabalho (que, por ser uma corte superior, já é per se
conservadora, se comparada às instâncias inferiores). Se não, apenas para fins
ilustrativos (porque há inúmeros outros casos), vejamos.
Em 2008, no RE n. 565.714/SP, o STF entendeu que, embora
inconstitucional o cálculo do adicional de insalubridade sobre o salário
mínimo, não era possível ao Judiciário modificar essa base de cálculo, de modo
que, até haver alteração da CLT, as empresas deveriam seguir pagando o
adicional com o cálculo eivado de inconstitucionalidade (objetando a oportuna
analogia que o TST começava a praticar, calculando o adicional sobre o salário
contratual, à maneira do adicional de periculosidade).
Em 2010, na ADC n. 16, o STF decidiu que, no âmbito da
Administração pública, a responsabilidade do Estado pelos direitos trabalhistas
sonegados de terceirizados só teria lugar se se demonstrasse a “culpa” do
administrador, ao escolher ou ao fiscalizar a empresa de prestação de serviços
(afastando, na hipótese, a salutar previsão do artigo 37, §6º, da Constituição,
que dispensa a prova da culpa, e relegando o trabalhador terceirizado, para
esse efeito, a uma condição de “subcidadão”).
Ano passado, no ARE n. 70912, o STF entendeu que o prazo para
reclamar valores não depositados no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço havia
de ser de cinco anos, e não de trinta anos, como previa a Lei n. 8036/1990
(embora o próprio artigo 7º da Constituição preveja, no caput, a prevalência das
normas legais mais benéficas).
Este ano, por fim, ao ensejo do RE n. 590415, o STF entendeu que,
nos planos de dispensa incentivada, são válidas as cláusulas que dão quitação
ampla e irrestrita de todas as parcelas decorrentes do contrato de trabalho, desde
que essa possibilidade tenha sido previamente avençada em negociação coletiva
(prevalecendo, pois, o negociado sobre o legislado, a despeito da natural
irrenunciabilidade dos direitos sociais em geral). Fazer prevalecer, como
regra, o negociado sobre o legislado é o que afinal se discutia no final do
segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, sob os auspícios do
então Ministro do Trabalho e Emprego, Francisco Dornelles; no auge da política
neoliberal brasileira, era isto que se propunha, basicamente, para a nova
redação do artigo 618 da CLT. Nada obstante, o Congresso Nacional barrou a
pretensão, por entendê-la precarizadora e desconforme com os princípios que
regem o Direito do Trabalho. Baldada resistência: ao que parece, a cúpula do Judiciário
chancelará a primazia do negociado, no plano coletivo, por outras vias.
Realcemos, porém, o que se decidiu recentemente, em meados de
abril, na ADI n. 1923, por sete votos a dois (contrariando o voto do relator
originário, o ex-ministro Ayres Britto). Admitiu-se, à altura, que a execução
de serviços sociais considerados essenciais para o Estado, como saúde, ensino,
pesquisa, cultura e preservação ambiental, possam ser realizados por meio de
convênios com as chamadas “OS” (organizações sociais). Na prática, o STF
convalidou a subcontratação de “atividades-fim” no próprio âmago do Estado,
liberalizando o que até mesmo o Parlamento temeu fazer, na medida em que o PL
n. 4330/2004 — que agora tramita no Senado como PLC n. 30/2015 — viu-se
inicialmente restringido por uma emenda supressiva de plenário que, acolhida,
tornava inadmissível a terceirização de atividades-fim na Administração direta.
Ora, o Parlamento nacional — cuja composição atual é possivelmente
a mais conservadoras dos últimos anos — agiu como agiu, àquela altura, por uma
razão óbvia e autoevidente: sem lançar mão de concursos públicos e de
contratação direta, é praticamente impossível ao Estado garantir impessoalidade
nas contratações e impedir a mercancia de mão-de-obra sob o seu nariz, seja ela
“especializada” ou não. O Judiciário, porém, assim não entendeu. Autorizou que
as unidades federativas sigam terceirizando serviços ligados à saúde, à
educação, à cultura, ao desporto e à ciência e tecnologia, nos termos da Lei n.
9.637/1998 (que integrava o “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”,
de 1995, capitaneado pelo Governo FHC), lançamento mão de “organizações
sociais” devidamente credenciadas, mesmo à margem de licitações públicas —
desde que, ressaltou o relator, nos processos de seleção e contratação haja
observância aos princípios da publicidade e da impessoalidade, entre outros. Só
não se respondeu à óbvia questão nuclear: como garantir publicidade e
impessoalidade com credenciamentos discricionários dos entes federativos e sem
licitações regulares? Difícil vislumbrar saídas que não sejam meramente
retóricas…
Max Weber identificava na burocracia do Estado moderno o mais alto
grau de racionalidade no trato da coisa pública. Essa burocracia, na acepção
positiva do termo, caracterizar-se-ia pela manutenção de um aparato
técnico-administrativo permanente, formado por profissionais especializados e
selecionados segundo critérios racionais para lidar com as diversas missões
institucionais do poder público. Aparentemente, porém, o Brasil arrisca-se a
seguir outros caminhos. Escolas públicas sem professores, institutos de
pesquisa sem pesquisadores, hospitais públicos sem médicos próprios… eis a
deformação que se anuncia. Pode haver um Estado sem servidores públicos?
De tão liberais que temos sido, nossa “modernidade” ameaça
regredir para os albores do século XVIII.
(*) O autor é professor associado II da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz titular da 1ª Vara do
Trabalho de Taubaté. Livre-Docente em Direito do Trabalho pela Faculdade de
Direito da USP. Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa. Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da
USP.
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