Guilherme Boulos
A direita e a falácia do caviar
O nível da direita brasileira já há tempos vinha em franco declínio.
Primeiro abandonaram os argumentos para contentar-se com o ódio. Agora,
acrescentam ao ódio o fuxico da vida alheia. Tornaram-se patrulhadores dos
costumes da esquerda em nome de uma lógica bastante curiosa.
Para eles, se você defende posições de
esquerda, não pode comprar coisas no mercado, está proibido de viajar, frequentar
botecos, restaurantes e deve repartir seu salário com os vizinhos. Se te pegam
falando no telefone, esteja pronto para ouvir, em tom de triunfo: "Aha! É
contra o capitalismo, mas usa celular!".
Nas páginas do Manifesto Comunista, de
1848, Marx já havia debochado do tacanho pensamento elitista sobre a defesa da
socialização: "Para o burguês, a mulher nada mais é do que um instrumento
de produção. Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão explorados em
comum, conclui naturalmente que o destino de propriedade coletiva caberá
igualmente às mulheres". É socialista? Então socialize sua mulher! –diziam
os direitistas do século 19. Quase duzentos anos depois, o nível parece o
mesmo.
Raciocínios como esse são mais velhos
que o capitalismo. Revelam um primitivismo da razão, sem mediações nem
conceitos. Aristóteles, já no século quatro antes de Cristo, dedicou seus
Elencos Sofísticos a denunciar essa lógica manca. Dá exemplos: "Cinco é
dois mais três. Dois é par e três é ímpar. Logo, cinco é par e ímpar". O
argumento sofístico abusa da ambiguidade e da confusão, produzindo falácias
racionais.
É o que faz a direita de hoje. Confunde
intencionalmente duas questões distintas: defender o capitalismo e viver no
capitalismo. Vivemos em uma sociedade capitalista, com tudo o que isso implica.
Viver nela não significa defendê-la, aliás para criticá-la e combatê-la é
preciso estar nela.
O argumento bronco considera tudo isso
uma sutileza metafísica e diz, com a argúcia da Idade da Pedra: "Se é
contra o agronegócio, então não coma!", "denuncia a privatização, mas
usa energia elétrica da AES em casa!", "é socialista, mas tem
computador!", e outras pérolas mais. Enfim, a esquerda de verdade deve se
alimentar por fotossíntese, usar velas e mimeógrafo.
Imaginem as mesmas sandices aplicadas
do outro lado: "Aha! Vi você dando um pedaço de pão para o seu filho, seu
socialista! Não dê o peixe, ensine a pescar!", "Bill Gates é
comunista: tem fortes investimentos na China comandada pelo PC.",
"pegou crédito imobiliário na Caixa? Seu petralha sem-vergonha! Vai pagar
juros para o PT!".
Recentemente, os bisbilhoteiros de
plantão fotografaram o jornalista Leonardo Sakamoto em Nova York. Como pode? É
de esquerda e vai para Nova York! Deixando de lado a questão das intrigantes
motivações dessa Dona Fifi globalizada, que se dedica a perseguir e fotografar
alguém em outro hemisfério, o nível do raciocínio é o mesmo denunciado por
Aristóteles: "Sakamoto é de esquerda. Nova York é uma cidade capitalista.
Logo, Sakamoto não pode pisar em Nova York".
Não sabem talvez que o prefeito de Nova
York, Bill de Blasio, é considerado comunista pela direita de lá por ser
admirador de Cuba e ter apoiado os sandinistas. Mas aí já fica complexo demais
para o Tico e o Teco.
O que essa turma não entende –e
possivelmente nunca entenda– é que defender posições de esquerda não significa
voto de pobreza, viver a pão e água. Quem impõe a vida a pão e água a bilhões
de pessoas ao redor do planeta é o capitalismo e é exatamente por isso que a
esquerda o combate. Não se trata de defender a socialização da miséria, mas sim
das riquezas. Algo, aliás, profundamente atual num mundo onde elas estão
concentradas em 1% da população.
(*) Guilherme Boulos é formado em
filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de
Resistência Urbana.
Escreve às quintas na FS.
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