“Juízos antecipados, delações e vazamentos
seletivos criam Estado de Exceção e pendem para o fascismo”
Tarso Genro critica midiatização do processo penal: “O Estado-espetáculo
vem funcionando com todas as caldeiras em temperatura máxima”. (Foto: Guilherme
Santos/Sul21)
Marco Weissheimer
“Uma das características do fascismo é a criação do seu próprio sistema
de direito, através da ação, através do movimento, não importando o que dizem
as leis, o que regem as normas, o que garante a Constituição política. Quando
procuradores federais emitem juízos antecipados sobre pessoas que estão sendo
investigadas, ficam alheios a vazamentos de provas e defendem a manutenção de
prisões preventivas para forçar delações premiadas, indicam um novo modo de
funcionamento do Estado de Direito que pende para o fascismo”. As declarações
são do ex-ministro da Justiça e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso
Genro, ao comentar o andamento das investigações da Operação Lava Jato e alguns
procedimentos que vem sendo adotados por seus promotores no campo jurídico.
Em entrevista ao Sul21, Tarso Genro sustenta que o que está
ocorrendo envolve um processo mais complexo de ataque à política em geral, de
criminalização dos partidos, especialmente daqueles que estiveram ou estão na
base do Governo, mas que começa a atingir a própria oposição. Neste “novo modo
de funcionamento do Estado de Direito”, afirma, a “ação faz o direito”, de
forma alheia à Constituição. E acrescenta: “A situação se torna mais grave,
quando se vê que a ampla maioria da mídia tradicional, que é de propriedade de
poucas famílias muito ricas, dá um apoio praticamente incondicional a esta
“exceção” não declarada, que tem, hoje, no seu centro, a destruição da figura
do Presidente Lula”.
Sul21: Nas últimas semanas, o senhor tem se manifestado em artigos e nas
redes sociais contra algumas práticas que vem marcando o andamento das
investigações da Operação Lava Jato e o contexto que as cercam. Quais são suas
preocupações centrais sobre o que vem acontecendo?
Tarso Genro: Várias informações que transitam pela grande imprensa, todas elas
laudatórias, dão conta de que Procuradores Federais se movimentam para
“refundar” o Estado, emitem juízos antecipados sobre pessoas e grupos de
pessoas que estão sendo inquiridos ou processados, ficam alheios a vazamentos
de provas e diligências que inculpam, sem o contraditório, pessoas que são
submetidas à execração pública, defendem a manutenção de prisões preventivas
para forçar delações premiadas nitidamente dirigidas, informam previamente a alguns
meios de comunicação a respeito dos próximos atos sob sua jurisdição,
integrando-os na processualística penal e, desta forma, privatizam e midiatizam
o processo penal, consequentemente, a Justiça Penal como um todo. O
Estado-espetáculo vem funcionando com todas as caldeiras em temperatura máxima.
Sul21: Na sua opinião, essas movimentações e práticas são circunstanciais
ou apontam para algo mais de fundo?
Tarso Genro: Se as vítimas deste processo complexo fossem apenas os criminosos,
poderia se dizer que se trata de uma deformação momentânea, recuperável. Tudo
indica, porém, que se trata de um processo mais complexo de ataque à política
em geral, de criminalização dos partidos, especialmente daqueles que estiveram
ou estão na base do Governo, o que indica um novo modo de funcionamento do
Estado de Direito. Nele a própria “ação faz o direito”, de forma alheia à
Constituição. O bem e a decência passam a ser monopólios de uma parte alta
burocracia do Ministério Público e de alguns Juízes e a esfera da política
passa ser o reinado da indecência. A parte da oposição, que vinha se
refestelando com estas ilegalidades, também começa ser atingida pelos mesmos
métodos, ainda que hoje de maneira residual.
“Uma das características do fascismo é a criação do seu próprio sistema
de direito, através da ação, através do movimento, não importando o que dizem
as leis, o que regem as normas, o que garante a Constituição política”. (Foto:
Guilherme Santos/Sul21)
O Estadão, publicou uma matéria no dia 13 de fevereiro, assinada pelos
jornalistas Fausto Macedo e Ricardo Brandt, com o procurador regional da
República Carlos Fernando Santos Lima, onde este explicita que as operações
devem continuar de maneira indefinida, porque ele não tem dúvidas de que a
força tarefa atingiu “grande esquema de compra de apoio político partidário
através do loteamento de cargos públicos”, originado de “altas esferas do
Governo Federal”. Trata-se, portanto, não da busca de indivíduos ou grupos que,
exercendo funções públicas, cometerem ilegalidades e exerceram as suas funções
de maneira delituosa, com a devida personalização de inquéritos ou processos,
mas de uma inculpação prévia e abstrata, de altas esferas de Governo, que
preencheram cargos para ter “apoio político”. A investigação, portanto, é do
processo político e o seu objeto é provar a responsabilidade das altas esferas
do Governo Federal. Uma das características do fascismo é a criação do seu
próprio sistema de direito, através da ação, através do movimento, não
importando o que dizem as leis, o que regem as normas, o que garante a
Constituição política. Foi isso que Mussolini disse no final da sua Marcha
sobre Roma: “A ação enterrou a filosofia”.
Sul21: Então, na sua opinião, corremos o risco de estar desenvolvendo algo
parecido com isso no Brasil de hoje?
Tarso Genro: Venho fazendo uma série de considerações, sem generalizar de que esta
seja a posição majoritária entre os Juízes e Procuradores, apontando uma
movimentação política, tanto na Magistratura como nas Procuradorias, que traz
sinais evidentes de uma “exceção” não declarada, em curso no nosso país. Essa
situação preparatória de uma cultura fascista se configura quando, para
realizar um ato jurisdicional, alguém que é competente para realizá-lo assume
uma posição de tal forma fora da ordem constitucional, que a sua fundamentação
torna-se predominantemente política, e não é fundamentada predominantemente na
lei, portanto, vem de fora do sistema normativo que se origina da Constituição.
O “político” e o “jurídico”, é claro, estão sempre integrados na ordem
constitucional, mas quando o fundamento político imediato anula o sistema de
garantias, que está presente na Constituição, temos um exemplo flagrante do
início da exceção. Carl Schmitt, o grande teórico da exceção e simpatizante
explícito do nazismo, que é forma de fascismo elevada ao cubo, defendia isso de
maneira bem clara. No seu ensaio “O Führer protege o Direito”, escreveu: “O
Führer protege o direito do pior abuso, quando ele no instante do perigo cria o
direito sem mediações, por força da sua liderança e enquanto juiz Supremo”.
Ora, o Estado, no capitalismo, tanto pode ser uma Estado Democrático, como pode
um Estado Ditatorial. A criação do direito, na democracia, se dá precisamente
por aquelas mediações, de que nos fala Schmitt, que estão na Constituição e que
o Fürher ignora. Criar direito, sem elas, é exceção, ainda que não declarada.
Sul21: Poderia citar alguns exemplos de práticas que apontariam para a
criação de um estado de exceção no Direito e na ordem jurídica do país?
Tarso Genro: Quando algum integrante do Poder Judiciário, por exemplo, estimula,
tolera, ou permite vazamento ilegal de informações em inquéritos, que
prejudicam o direito de defesa de qualquer investigado, de qualquer partido, de
qualquer instância de Governo, ou quando qualquer integrante daquele Poder, faz
interpretações de normas de garantia, baseadas na posição política, condição de
classe ou “raça” dos indivíduos, que estão sofrendo uma ação penal, sejam eles
trabalhadores ou empresário, negros ou judeus, esta autoridade está entrando no
terreno da exceção. Está criando discriminações que a lei não faz, seja
relativamente ao direito de defesa, seja em relação à necessidade de manter
prisões preventivas para obter delações que são premiadas. Assim, esta autoridade
cria direito, portanto, sem mediações, como dizia Schmitt, e o faz diretamente
pela opinião de quem decide, não pelo processo legislativo. Logo após a
ascensão de Hitler isso foi comum, na Alemanha, mesmo sem modificação das leis
democráticas da República de Weimar, que foram depois sendo revogadas. Na
Itália, ocorreu a mesma coisa. Não contra os judeus, preferencialmente, mas ali
contra todos os democratas que se opunham ao fascismo de Mussolini. Depois, em
ambos os países, a exceção tornou-se regra. E a exceção foi tornada declarada e
permanente.
“A OAB tem primado pela ausência de opinião em quaisquer assuntos que
lhe ponham contra este senso comum, organizado pela própria mídia”.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)
No mesmo ensaio que mencionei, Schmitt diz, falando do colapso da
República de Weimar e do direito histórico de Hitler fundar uma nova ordem –
“refundar a República” – criticando quem busca a conciliação na democracia:
“Mas o Führer leva as advertências da história alemã a sério. Isso lhe dá o
direito e a força para fundar um novo Estado e uma nova ordem.” Quando
determinados integrantes do Poder Judiciário estabelecem uma relação
privilegiada com setores da mídia que, como sabe, é altamente partidarizada aqui
no Brasil, liquidando com vidas e reputações sem qualquer chancela de decisões
transitadas em julgado, a luta meritória contra corrupção no Estado – que, de
resto, é de interesse de todas as pessoas honestas de todas as facções
políticas – torna-se puro elemento da luta política, da luta de facções. Esta
luta, inclusive vai permear, em maior ou menor grau, o Próprio Poder
Judiciário. Não é de graça, portanto, que Schmitt vai além e registra, dando
coerência a sua visão fascista: “O verdadeiro líder (Führer) sempre é também
juiz”. De onde as autoridades do Poder Judiciário tiram a sua força para torcer
o bastão, em direção à exceção? Da mídia monocórdia que se soma à indiferença
de instituições clássicas, como a OAB, que tem primado pela ausência de opinião
em quaisquer assuntos que lhe ponham contra este senso comum, organizado pela
própria mídia.
Sul21: Quais as possíveis consequências desse tipo de relação entre as
esferas do Direito e da Política para a democracia brasileira?
Tarso Genro: Veja a gravidade da cultura política que está se formando. O
Procurador Federal do Paraná informa, não da continuidade das ações e
operações, em busca de pessoas que cometeram crimes, ocupando cargos nas
Estatais e nos Fundos de Pensão, mas informa que é o processo político que
passa a ser investigado. Isso vem na esteira da refundação da República pelo
Ministério Público, sem as mediações de um processo Constituinte ou de uma
reforma constitucional profunda. Repito: a investigação prometida não é de
indivíduos ou grupos delituosos. O preenchimento de cargos, nas democracias –
mais, ou menos restritas, mais, ou menos maduras – é feito pelos partidos
vencedores nas eleições, seja na Colômbia, na Argentina, na França, nos Estados
Unidos e o seu objetivo é, precisamente, refletindo o processo eleitoral,
manter e ampliar o apoio político dos vencedores, para aplicar o Programa de
Governo vencedor nas eleições, seja nas instâncias parlamentares, seja na base
institucional e social que dá suporte ao Governo.
Se o Estado tem cargos de mais, ou de menos, na estrutura estatal, se as
pessoas não são aptas para ocupar os cargos, se as pessoas que foram nomeadas
são incompetentes ou cometem ilegalidades, os que as nomearam respondem,
politicamente pelos excessos que cometerem, nas eleições; e os nomeados, que
cometerem crimes, respondem como indivíduos ou como quadrilhas, nas ações
penais correspondentes. Só nos regimes de partido único, as pessoas são
nomeadas sem interesse em apoio político, porque -nestes regimes- os nomeados
pelo Partido, que se confunde com o Estado e com o Governo, são seus apoiadores
obrigatórios, sem direito de dissentir dos seus rumos. É uma mera meritocracia
da fidelidade, estabelecida pelo poder ditatorial. Esta visão, de investigação
em abstrato da política, manifestada pelo Procurador, é profundamente
equivocada e é uma visão que tende para o fascismo.
Sul21: Há quem ache um exagero citar o fascismo e o nazismo para falar da
realidade política brasileira hoje…
Tarso Genro: O fascismo e o nazismo não são idênticos. São formas diferentes de
totalitarismo, que se adequam às respectivas histórias nacionais, embora tenham
traços comuns. O ódio às mediações e a intolerância com a lentidão da
democracia são traços de ambos. As ditaduras – e também as democracias – não são
iguais. Uma semelhança incontornável entre as democracias, é a pluralidade dos
partidos, a criação do Direito pelas instâncias formais, previstas na
Constituição, e as eleições periódicas. Uma semelhança clássica, entre as
ditaduras, é a criação de algo que insistem em nominar como direito, por um
poder concentrado, que se origina principalmente da força e da manipulação, não
do consenso obtido no espaço aberto da política. Melhor seria chamar, o que nas
ditaduras chamam de direito, de sistema de normas arbitrárias. Mas, há outra
semelhança entre as ditaduras, que também é importante para a criação da sua
(falsa) legitimidade. É o convencimento público da existência de um inimigo em
abstrato, ao qual ela, a ditadura, se reporta para defender o staus quo, pela
repressão seletiva, pela desmoralização pública pelos meios de comunicação ou
pela simples violência, na sua forma mais embrutecida. É um inimigo abstrato,
que pode ser criminalizado, como indivíduo ou como grupo associado, quando isso
for necessário. É uma comunidade diferente, internamente, cultural, religiosa
ou racial; é uma ideologia política configurada num movimento ou num partido; é
um grupo inimigo do Estado, a serviço de outro país; são os traidores da nação
ou do Partido único; são os corruptos, em geral, normalmente identificados como
“os políticos”. Todos eles justificam a exceção.
Quando falo de um perigo fascista, que ronda a sociedade brasileira, não
quero dizer que há possibilidade de se repetir, aqui, rapidamente um Mussolini
ou um Hitler. Nem que exista uma conspiração organizada de algum poder
burocrático ou social, capaz de implementar uma forma de fascismo, hoje. O que
estou dizendo – e acho que as forças políticas do país deveriam discutir isso
sem medo – é que os sintomas iniciais estão aí. Tanto Hitler como Mussolini
eram figuras grotescas, cheias de rancor, que foram apropriados pela direita
mais autoritária, para debelar crises, “acabar com a corrupção”, enfrentar a
“decadência da política” e “refundar o Estado”. A situação se torna mais grave,
quando se vê que a ampla maioria da mídia tradicional, que é de propriedade de
poucas famílias muito ricas, dá um apoio praticamente incondicional a esta
“exceção” não declarada, que tem, hoje, no seu centro, a destruição da figura
do Presidente Lula. Não pelos seus defeitos, que todos temos, mas pelas suas
virtudes, que começaram a dar uma identidade social ao estado de Direito no
Brasil.
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