ENTREVISTA – Minirreforma da previdência – Impactos
das MPVs 664 e 665/14.
Sandro Eduardo Sardá, Procurador do Trabalho em SC,
Coordenador Nacional do Projeto de Adequação das Condições de Trabalho em
Frigoríficos
As alterações contidas nas MPs 664/14 e 665/14 constituem um retrocesso social
nas políticas previdenciárias e de saúde ?
Sandro Eduardo Sardá: As alterações promovidas representam o maior
retrocesso social em políticas de seguridade social das últimas décadas.
Nem mesmo a criação do fator previdenciário pela Lei nº 9.786/99 representou
tamanha precarização. Por meio de medidas provisórias foram suprimidos
direitos incorporados ao patrimônio jurídico dos trabalhadores, desde a
década de 70, violando o princípio constitucional da vedação de retrocesso
social, da proporcionalidade, da igualdade, dentre outros. Um exemplo
sintomático do conteúdo geral da minirreforma da previdência, versa sobre a pensão
por morte. Em 1979 a legislação exigia 12 meses de carência (Decreto nº
83.080/79). A partir de 1992 foi dispensada a carência (Decreto nº 611/92). A
MP 664 prevê 24 meses de carência, portanto, o dobro do previsto em 79.
São mais de 4 décadas de retrocesso social. O pior é que as alterações afetam
diretamente populações vulneráveis em razão de adoecimento, desemprego
involuntário e morte em ente familiar. O INSS estima que a renda média dos
benefícios concedidos no Brasil gira em torno de R$ 950 reais. São portanto os
doentes, os pobres e os desempregados desta país que vão pagar a conta do
ajuste fiscal. Ressalto que não há nenhuma distorção a ser corrigida, trata-se
da mera supressão de direitos fundamentais.
Como estas medidas afetam a saúde dos
trabalhadores ?
A saúde tem como fatores
condicionantes e determinantes a alimentação, a moradia, o trabalho a renda, a
educação, o lazer, o transporte, a previdência social, o acesso a bens e
serviços essenciais, dentre outros (art. 3º da Lei n° 8.080/90). Evidentemente
que a retirada de direitos fundamentais previstos em políticas públicas
previdenciárias e de proteção ao desemprego afeta de forma negativa e
substancial a saúde dos trabalhadores. Importante ressaltar que o Brasil,
apesar de ser a 7ª maior econômica do planeta, apresenta preocupantes
níveis de desenvolvimento econômica e social (IDH), fato que tendem a ser
agravar ainda mais com estas medidas.
A MP 664/14 estabeleceu que o auxílio-
doença somente será concedido após o 30º dia de afastamento. No modelo anterior
o prazo era de 15 dias. Qual o impacto desta alteração ?
A tendência é que os
empregados acometidos de patologias voltem ao trabalho ainda sem o
reestabelecimento pleno da capacidade laboral, com quadro de cronificação das
doenças, principalmente em relação aos distúrbios osteomusculares e transtornos
mentais, com prejuízos irreparáveis à saúde dos trabalhadores, à previdência e
ao sistema único de saúde. De outro lado, o art. 118 da Lei nº 8.2113/91
estabelece como requisito para a implementação da estabilidade acidentária, a
concessão de auxílio-doença, que agora somente será devido após 30 dias. Isto
quer dizer que retirou-se dos trabalhadores o direito a estabilidade
acidentária após 15 dias de afastamento. Neste cenário, ampliar-se-ão as
demissões discriminatórias de empregados adoentados. Da mesma forma, diversas
convenções e acordo coletivos preveem a estabilidade no emprego, após o
recebimento do auxílio-doença, mesmo que de natureza não-acidentária. Com a MP
664, todas estas estabilidades, que tutelam o direito ao trabalho dos
empregados acometidos de patologias, exigirão afastamentos superiores a 30
dias. A majoração do prazo também afeta negativamente as notificações de
doenças ocupacionais, com tendência de ampliação do preocupante quadro de
subnotificação. A Organização Mundial de Saúde estima que, na América Latina,
somente cerca de 4% das doenças ocupacionais são notificadas. A partir da Lei
nº 11.430/06, que institui o nexo técnico epidemiológico, verificou-se uma
tendência de ampliação das notificações, quadro de tende a retroceder com a
atual MP 664/14. Apesar das graves deficiências verificadas nas atuais perícias
do INSS, notadamente em relação ao estabelecimento do nexo causal e avaliação
da incapacidade, a qualidade das medidas de atenção à saúde tendem a se
precarizar ainda mais com a concessão do auxílio doença somente após o 30º dia
de afastamento. A mudança em comento também afeta negativamente o modelo
baseado no FAP, RAT/SAT. Interessante notar que o FAP/RAT, em razão de baixas
alíquotas, dentre outros fatores, não representou uma expressiva e adequada
forma de tributação das empresas que mais geram adoecimentos. O instituto nem
sequer foi aprimorado e já está a sendo precarizado. Mas no Brasil, como diria
o poeta: “aqui tudo é construção e já é ruína”. Em resumo: a concessão de
auxílio doença somente após 30 dias - que a princípio seria uma medida que
onera as empresas que mais geram adoecimentos ocupacionais - na prática
trata-se de um profundo retrocesso social em relação a proteção da saúde dos
trabalhadores.
A medida provisória 664/14 autoriza a
realização de perícias previdenciárias pelas empresas ?
Exatamente. Mediante termos
de cooperação ou convênios as empresas estão autorizadas a realizar perícias de
natureza previdenciária, seja por meio da contratação de empresas
especializadas ou por médicos diretamente contratados. A medida provisória
também procedeu a retirada do termo “exclusivamente” da Lei nº 10.876/04 que
dispõe sobre a carreira de medico da previdência social. Assim, a partir de
30/12/14, tanto os médicos das empresas quanto os do INSS tem atribuição para
realizar a atividades como a emissão de parecer conclusivo quanto à
capacidade laboral e nexo causal para fins previdenciários; inspeção de
ambientes de trabalho para fins previdenciários; caracterização da invalidez
para benefícios previdenciários e assistenciais. A realização de perícias
previdenciárias é atividade típica de Estado insuscetível de delegação. A
previsão causa absoluta estranheza uma vez que na grande maioria dos casos as
empresas não procedem a devida adequação do seu meio ambiente de
trabalho, lesionam empregados em larga escala, e ainda estão autorizadas
para atestar se os seus empregados estão incapacitados e se há nexo causal. A
Constituição Federal não adotou o princípio de “botar a galinha para cuidar do
galinheiro”, muito pelo contrário prevê a proteção á saúde, ao meio ambiente,
ao trabalho decente e a vida digna. Das diversas inconstitucionalidades formais
e materiais existentes nas MPs 664 e 665/14, esta é, sem sombra de dúvida, a
mais flagrante violação ao ordenamento jurídico constitucional. Interessante
notar que este modelo já foi adotado pelo Brasil na década de 90 e foi
suprimido por, ao mesmo tempo, gerar danos aos empregados e ampliar os custos
com benefícios, conforme apontado em relatório do TCU. A privatização das
perícias tendo a gerar graves distorções e inclusive ampliar, em muito, as
possibilidades de fraude. O curioso é que o governo alega que as medidas visam
corrigir distorções. A análise profunda e técnica do conteúdo das MPVs 664 e
665, revela que o argumento do Executivo Federal é evidentemente falacioso.
Como ficou a situação das pensões por
morte e do seguro-desemprego ?
Para pensão por morte foi
criado um período de carência excessivo. Além da carência, foi previsto a
exigência de 24 meses de casamento ou união estável. A medida é
inconstitucional, por criar casamentos e uniões de primeira e segunda
categoria. Já a previsão de limitação das pensões por morte em razão da
expectativa de vida é uma espécie de fator previdenciário às avessas. O fator
previdenciário nem sequer foi extinto e já estão criando uma outra espécie.
Outro ponto importante é valor da pensão por morte que foi alterado e
agora será de 50%, acrescido de 10% por dependentes. Na prática, cerca de 90% a
95% das pensões por morte serão de 1 salário mínimo. Em relação ao seguro
desemprego, com as alterações somente 45% das rescisões sem justa causa terão
cobertura social. Estudos apontam que a ausência de proteção social nas
situações de desemprego gera prejuízos na formação profissional dos
trabalhadores e de seus familiares, círculo vicioso de empobrecimento e
precarização. A redução dos gastos com o seguro desemprego deve observar o
modelo constitucional e, portanto, passa pela regulamentação do art. 7º, I da
CF (vedação da demissão arbitrária, nos moldes da Convenção 158 da OIT) e do
art. 139 da CF (tributação complementar de empresas com alta rotatividade).
Há necessidade de se buscar um outro
paradigma em relação ao Ministério da Previdência e ao INSS ?.
A verdade é que o Ministério
da Previdência Social e o INSS, historicamente, vem adotando reformas com a
pretensão de reduzir gastos. Todavia, o fazem através da redução e precarização
de direitos fundamentais e não por meio da efetivação das medidas que visam a
prevenção, a promoção e a assistência à saúde dos trabalhadores, como a
reabilitação profissional, as ações regressivas, perícias adequada e
multiprofissionais, vistorias nos locais de trabalho, aplicação do nexo
técnico epidemiológico, dentre outras. A redução de benefícios deve ser feita
pelo viés da promoção da saúde e não por meio da precarização e da retirada de
direitos. Trata-se de uma lamentável cultura arraigada no seio destas
instituições. Há de se buscar um outro paradigma. O Brasil, anualmente, gasta
aproximadamente 4% de seu PIB em acidentes do trabalho e doenças ocupacionais.
No Brasil, a violência no trabalho é estruturante do modelo de socioeconômico,
cabendo ao Estado adotar políticas publicas de efetivação do trabalho
decente. Todavia, atualmente, estamos a seguir o caminho completamente oposto.
Na sua opinião, o que poderia ser feito
no Brasil para termos ambientes de trabalho mais seguros e saudáveis?
Acho que a cultura
empresarial e o modelo de desenvolvimento no Brasil merecem ser revistos. O
modelo baseado no consumo desenfreado e na produtividade a qualquer custo é
evidentemente insustentável do ponto de visa socioambiental. Com raras
exceções, não se observa nas empresas uma adequação preocupação com a
saúde, a segurança e a vida dignidade dos trabalhadores. O modelo sindical
também é absolutamente inadequado e deve ser urgentemente revisto. Sob a ótica
estatal, União, Estados e Municípios não adotam políticas públicas adequadas de
proteção à saúde dos trabalhadores. Após 27 anos da promulgação da Constituição
Federal o SUS ainda não tem uma política minimamente efetiva de prevenção,
promoção e recuperação à saúde dos trabalhadores. O Ministério do Trabalho e
Emprego atualmente conta com cerca de 2.700 Auditores Fiscais do Trabalho,
quando deveria ter no mínimo 7.000 fiscais. A gestão e definição de prioridades
do MTE também são bastante inadequadas. O INSS sequer tem políticas adequadas
de reabilitação profissional. Em matéria acidentária, o Judiciário Trabalhista
fixa indenizações em valores irrisórios. As perícias judiciais são, em geral,
de baixa qualidade. O Ministério Público do Trabalho tem limitações de pessoal,
mas também dificuldades em determinar suas prioridades. No MPT as cobranças por
produtividade vem transformando promotores de justiça em “movimentadores de
procedimentos”. Enfim, não é toa que o Brasil é o 4º país do mundo em acidentes
fatais. O Brasil detém níveis de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais
que podem facialmente ser comparados a um genocídio contra os trabalhadores. A
verdade é que sequer podemos falar em acidentes no trabalho, mas sim em
verdadeira violência no trabalho, pois muitas mortes e adoecimentos ocorrem em
razão de uma política empresarial deliberada em não adotar medidas de proteção
à saúde e segurança, mesmo diante de ostensivos agentes de risco. Isto ocorre
em relação aos bancos, frigoríficos, construção civil, transportes de cargas,
supermercados e atividades de atendimento hospitalar, por exemplo. O amianto
que já foi banido em mais de 70 países ainda é utilizado em larga escala no
Brasil. Mas temos alguns pequenos avanços. Do ponto de vista cultural, acho que
a sociedade começa vagarosamente a perceber que é um péssimo negócio lesionar
ou matar alguém para cortar frangos, para realizar atividades bancárias, para
construir prédios e estádios de futebol ou para transportar cargas. Temos um
longo e árduo caminho a trilhar. Oxalá cresçam pitangas.
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