PL
4330 institucionaliza a burla, diz
Ricardo Antunes
Para sociólogo
e professor do IFCH, projeto que regulamenta
a terceirização “equivale a uma regressão à escravidão no Brasil”
a terceirização “equivale a uma regressão à escravidão no Brasil”
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O Projeto de Lei 4330, que regulamenta a terceirização nas
empresas brasileiras e autoriza que as companhias terceirizem também suas
atividades-fim é “nefasto” e “vilipendia” o trabalhador brasileiro, disse o
professor Ricardo Antunes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
da Unicamp. “Mantidas as devidas proporções entre tempos históricos diversos,
ele equivale a uma regressão à escravidão no Brasil”, declarou Antunes. Um
pesquisador de Sociologia do Trabalho reconhecido mundialmente, Antunes lança
neste mês a edição comemorativa de 20 anos de seu já clássico “Adeus ao
Trabalho?” e o terceiro volume da série “Riqueza e Miséria do Trabalho no
Brasil”, organizada por ele, que reúne ensaios de pesquisadores brasileiros e
internacionais.
Nesta entrevista, Antunes fala sobre os efeitos e o significado
do PL 4330 – já aprovado pela Câmara dos Deputados, aguardando votação no
Senado Federal – e oferece réplica aos principais argumentos apresentados pelos
defensores da proposta, incluindo o de que a lei estende uma série de proteções
legais aos terceirizados. “É curioso ver a presidência da Fiesp (Federação das
Indústria do Estado de São Paulo), a Febraban (Federação Brasileira de Bancos)
de repente se tornarem defensoras dos direitos dos trabalhadores
terceirizados”, comentou ele, com ironia. O pesquisador também tratou do papel
do trabalho na economia globalizada pelo capital financeiro e das perspectivas
para o futuro.
“A humanidade no século 21 é absolutamente imprevisível. Quem
pode dizer que este capitalismo é inevitável? O capitalismo tem dois séculos, a
humanidade tem milênios”, disse. “O que virá depois? Não sei, mas podemos ter
nossas apostas, nossas reflexões, nossas paixões. O espetacular disso é que
desvendar o enigma do trabalho me ajudou a compreender o desenho da sociedade
que temos hoje. E essa compreensão só pode ser crítica. Só pode ser agudamente
crítica”. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Jornal da Unicamp – É correto dizer que o PL 4330 “rasga” a CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho), ou isso é um exagero?
Ricardo
Antunes – Ele
rasga a CLT porque acaba com o contrato entre trabalhadores e empresas, regido
pela CLT, e estabelece uma relação entre a empresa contratante e a contratada.
Esta relação negocial entre empresas macula a relação contratual entre o
capital e trabalho. Então, nisso, ele rompe o princípio básico da CLT. E tem,
feitas as devidas diferenciações, o efeito de uma regressão a uma sociedade do
trabalho escravo no Brasil, ainda que seja uma escravidão típica deste século
21.
JU
– Mas por quê? O que há no projeto que deixa os trabalhadores desprotegidos?
Ricardo
Antunes – O
artigo quarto deste projeto é a chave analítica para compreendê-lo. Esse artigo
diz que as atividades terceirizadas passam a incluir as atividades inerentes,
suplementares e complementares da empresa. Com isso, o projeto arrebenta a
súmula do Tribunal Superior do Trabalho que distinguia entre atividade-meio e
atividade-fim. Ao fazer isso, ao invés de beneficiar efetivamente os
terceirizados, ela vai levar a lógica da terceirização, que incide sobre cerca
de 13 milhões de trabalhadores e trabalhadoras hoje, para 40 milhões, 45
milhões.
E qual é a realidade concreta do terceirizado, hoje? É sobre
esse contingente que incidem as mais altas taxas de acidentes de trabalho e as
maiores burlas da legislação protetora do trabalho. Nossa pesquisa, nos três
volumes do “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil”, tem depoimentos que
mostram trabalhadores que não têm férias há 3 anos, nem de um dia. Os
trabalhadores terceirizados terminam um trabalho, vão atrás de outro, não podem
dizer agora vou tirar férias, entende? Aqui, é preciso enfatizar a questão de
gênero: são trabalhadores e trabalhadoras terceirizadas – contemplando a
importante divisão sócio-sexual do trabalho – que nos permitem dizer que a
exploração do trabalho terceirizado agride ainda mais intensamente a mulher
trabalhadora.
E os terceirizados (homens e mulheres) trabalham mais tempo do
que aqueles que são regulamentados pela CLT. E recebem em torno de 25% a
menos, às vezes 30% a menos, no salário. Então, são os que sofrem mais
acidentes, são os mais penalizados, e são os que não conseguem criar
organização sindical para se proteger, porque a rotatividade é muito grande, o
que dificulta essa organização.
JU
– Mas os proponentes do projeto dizem que ele traz salvaguardas para corrigir
essas distorções, como a responsabilidade solidária entre a empresa contratante
e a contratada.
Ricardo
Antunes – Eles
sabem mais do que ninguém que essas salvaguardas não são salvaguardas. Imagine
uma terceirizada que trabalha aqui no setor de limpeza da nossa Universidade.
Se ela é demitida, ela tem condições de sair daqui, pegar um ônibus, ir para o
fórum, contratar um advogado, entrar na justiça do trabalho, prestar
depoimento, esperar dois, três, cinco anos, dez anos...? Então, o patronato
sabe melhor que ninguém que essa é asalvaguarda da burla. Esta é a questão. Nós não temos um
preceito constitucional que estabelece que o salário mínimo deveria garantir a
vida digna do trabalhador, da trabalhadora, sua alimentação, saúde,
previdência, cultura, lazer? Pois é. Com menos de 800 reais por mês, esses atributos
constitucionais estão sendo efetivados ou burlados?
Então, as ditas salvaguardas – e o empresariado sabe melhor do
que ninguém isso – são facilmente burláveis. Isso é tanto verdade que semanas
atrás o ministro Levy [Joaquim Levy, ministro da Fazenda] foi ao Congresso
manifestar preocupação com a perda de arrecadação por causa desse projeto. E
por que vai ter menos arrecadação? Porque a burla é evidente. E o governo sabe
melhor disso.
Se quisessem fazer uma lei para defender
esses 12 milhões que já estão terceirizados, é muito simples: aprovamos um novo
projeto, mas eliminando-se o artigo quarto, que estende a terceirização para as
atividades-fim. Por que isto não ocorre? Porque o real objetivo deste PL não é regulamentar os
terceirizados, mas sim destruir os direitos dos regulamentares. Esse é o fulcro da questão: o projeto
destrói a relação capital e trabalho construída no Brasil desde a década de 30,
mesmo com todos os seus limites!
Minha posição é cristalina neste ponto: o trabalho terceirizado
avilta, subjuga e depaupera ainda mais os 12 milhões de terceirizados.
Temos que ter, então, a coragem de dizer de modo claro: somos contra a
terceirização. Em nossas pesquisas nunca nos deparamos com trabalhadores e
trabalhadoras satisfeitas com esse trabalho. Eles e elas aceitam porque é esse
trabalho ou o desemprego. Mas isso não deveria ser assim.
E em relação ao caso da responsabilidade solidária: alguém
acredita mesmo que uma empresa, ao contratar, digamos, 3 mil trabalhadores de
uma terceirizada vai conferir, um a um, o registro, o pagamento dos direitos...
Se estivéssemos na Noruega, eu teria dúvidas. No Brasil, não paira dúvida:
teremos mais burla.
JU
– Há o argumento de que não haverá precarização para os trabalhadores das
atividades-fim, porque eles exercem atividades consideradas mais nobres do que
as dos atuais terceirizados. E, também, de que seria antieconômico realizar uma
terceirização ampla de atividades-fim, logo não há o que temer nesse campo.
Ricardo
Antunes – Esse
argumento me faz recordar o título da peça de Shakespeare, “Sonho de uma Noite
de Verão”. Vamos ver uma atividade tida como nobre? Pilotos de avião. Se os
pilotos das grandes companhias aéreas de hoje, com direitos garantidos,
sindicatos organizados, já sofrem com a intensificação do trabalho – outro dia
vi um depoimento gravado de dois pilotos em que eles diziam, “olha não estou
aguentando mais, não sei se vou conseguir aterrissar porque estou sem dormir,
não estou mais vendo nada na minha frente...” – se assim é numa atividade
regulamentada, se assim é onde o sindicato dos pilotos é forte... Se assim é
com os médicos nos hospitais, se assim é com os professores, se assim é em
tantas categorias regulamentadas e bem organizadas, é possível imaginar que vai
ficar melhor quando esses trabalhadores tornarem-se terceirizados?
Então é preciso dizer: este projeto traz mais vilipêndio ao
trabalho. Não é possível imaginar que ele vá trazer melhorias. O empresariado
sabe melhor do que ninguém que é mais fácil demitir no regime da terceirização
total.
Quanto à outra questão, sim, muitas empresas não vão
necessariamente terceirizar a atividade-fim. Mas poderão terceirizar na hora
que quiserem. Então, o fato de um empresário ou de um gestor não terceirizar a
atividade-fim passa a ser uma opção dele. Se há crise, para que ficar pagando
fundo de garantia e demais direitos? E atenção: nenhum trabalhador tem o
direito garantido se não entrar na Justiça do Trabalho. Os terceirizados têm
tempo e condições de ficar atrás dos seus direitos, ou se exaurem
cotidianamente para ganhar o pão de cada dia?
JU – Mas se é apenas uma questão de ganância empresarial, por que
o setor público também busca terceirizar atividades? Não seria um movimento
inevitável?
Ricardo
Antunes – O
problema é mais complexo do que “ganância”. É preciso ver que o mundo que temos
hoje é moldado pelo capital financeiro. E esse capital financeiro não é só
banco, são os bancos, as indústrias, as fusões de bancos e indústrias, controladas
pelas grandes corporações financeiras, além do capital fictício, onde o
dinheiro vira mais dinheiro pela especulação.
Assim, o capital financeiro está profundamente vinculado ao
setor produtivo. E vou dar um exemplo muito simples: quando você vai comprar um
automóvel, no passado, se você fosse pagar à vista, você seria um cliente
espetacular, VIP. Hoje, o cliente VIP não é o que paga à vista. É o que compra
o automóvel caro e o financia. Porque, desse modo, tanto a indústria
automobilística, como seu braço financeiro, ganham duplamente, na produção e no
financiamento.
Esse capital financeiro – dado que não consegue se libertar de
vez do trabalho – pressupõe um trabalho corroído nos seus direitos. Quer uma
empresa flexível, fluida, que eu chamei nos meus livros de empresa
“liofilizada”, que tem cada vez menos trabalho vivo e mais maquinário
informacional-digital. Esse é o fulcro da racionalidade neoliberal: a
empresa racional, no plano microcósmico, é enxuta, flexível, lépida e faceira.
E para ser assim ela precisa desconstruir os direitos do trabalho, para que os
trabalhadores possam entrar e sair como peças descartáveis. A empresa quer
fechar sua unidade em São Paulo e ir para a China sem se preocupar com custos
de demissões, direitos etc.
O trabalho vira uma espécie de sanfona. O mercado requer
trabalhadores e trabalhadoras, ampliam-se os terceirizados. Quando o mercado se
retrai, demissões flexíveis, ágeis e rápidas, sem custos. Só que a classe
trabalhadora não pode ficar perambulando dessa forma.
Agora você pergunta, é inevitável que seja assim? Essa é a tese
do Fukuyama [Francis Fukuyama, filósofo e cientista político americano, autor
da tese do “Fim da História”], mas não foi a tese do Occupy Wall Street. Occupy
Wall Street foi muito importante, porque pela primeira vez, depois de décadas,
nos EUA, houve uma rebelião de massa dizendo que 1% se apropria do bolo global,
e 99% ficam com o farelo.
Além disso, a resistência e organização da classe trabalhadora
são vitais. Por que o trabalho é mais precarizado, mais terceirizado nos
Estados Unidos do que na Alemanha? Porque o movimento sindical na Alemanha
resistiu mais fortemente. Por que o trabalho é mais precarizado na Inglaterra?
Lá existe uma modalidade de contrato, o “Zero Hour Contract” (contrato de zero
hora), em que o trabalhador fica com o celular ligado, um dia, dois dias, três
dias... Se receber um chamado, ele tem que automaticamente atender. E ganha por
esse chamado. Se não receber chamado, não ganha nada, mas tem que ficar à
disposição.
E por que na Inglaterra existe essa flexibilização, maior do
que, por exemplo, na França? Por causa do neoliberalismo inglês, que se iniciou
com Margareth Thatcher, continuou com John Major e depois, tragicamente, com o
aparentemente trabalhista, mas de alma profundamente neoliberal, Tony Blair. Lá
ocorreu uma devastação dos sindicatos e da legislação protetora do trabalho,
enquanto que na França as centrais sindicais conseguiram preservar mais
direitos. Uma década atrás, na França, houve inclusive uma greve muito
importante para barrar o chamado Contrato de Primeiro Emprego, que precarizava
o primeiro emprego. Ela reuniu estudantes que perceberam que o 1º emprego era a
porta de entrada para a escravidão moderna, e os trabalhadores já inseridos,
que perceberam que, se passasse a precarização para os trabalhadores jovens,
logo eles também seriam afetados.
JU
– E quanto à terceirização no setor público?
Ricardo
Antunes – Me parece um equivoco dizer que o neoliberalismo quer
acabar com o Estado. O neoliberalismo quer destruir as atividades públicas:
saúde pública, educação pública, previdência pública, e ao mesmo tempo
fortalecer, no Estado, tudo aquilo que garante os fundos públicos para
interesses privados. Por exemplo, uma crise pesada como a de 2007 na
Inglaterra, de 2008 nos EUA, qual foi a função do governo? Intervenção nos
bancos para salvá-los, intervenção na General Motors para salvá-la. E para isso
é preciso tirar dinheiro da saúde, é preciso tirar dinheiro da previdência, é
preciso privatizar ainda mais a previdência, a saúde, a educação. Esta é a
lógica da racionalidade neoliberal. E essa lógica invadiu o setor público, no
caso brasileiro, com muita ênfase na década de 90. Foi um dos pontos mais
nefastos do governo Fernando Henrique. E a terceirização, no setor público,
traz economia? Não é claro isso. O que é claro é que, no Estado, a
terceirização aumenta também os focos de corrupção.
E se você levar a lógica privada ao setor público, imaginando
que vai melhorar, vamos ter uma verdadeira desfiguração do sentido essencial
que deve reger a atividade pública. Um hospital público deve oferecer saúde
pública, uma escola pública deve educar gratuitamente, e o mesmo deve se passar
na universidade pública.
Por que há uma diferença brutal entre universidade pública e a
faculdade privada? Porque as primeiras, as públicas, são regidas por padrões
científicos, contratos de trabalho que permitam o tempo de pesquisa, o tempo da
ciência. As faculdades privadas, ao contrário, são regidas prioritariamente por
padrões mercantis. É isso que queremos para o Estado? Que ele se torne uma
empresa guiada pela lógica da mercadoria, das commodities? Não é possível que
isso seja implementado sem resistência.
JU
– Há quem diga que a terceirização, mesmo não sendo o ideal, se tornou uma
necessidade econômica para o Estado, que está sem dinheiro.
Ricardo
Antunes – Quanto
do PIB brasileiro vai para o pagamento dos juros da dívida pública e quanto vai
para o Bolsa Família? A Dilma nomeia o Levy para fazer o ajuste fiscal
penalizando os trabalhadores e, ao mesmo tempo, aumenta os juros da dívida
pública, eliminando a economia feita pelo ajuste nas contas. Ou seja, não há
inevitabilidade, o que há é uma opção política: que Estado queremos? Qual o
Estado que o mundo financeiro impõe?
JU
– Como é o cenário global do trabalho desregulamentado e terceirizado?
Ricardo
Antunes – Há
uma empresa na China, a Foxconn, que tem até atividade no Brasil, que é
emblemática: ela não tem produtos próprios, é uma terceirizada global, que
monta aparelhos, por exemplo, para a Apple. A Foxconn, em 2010, teve cerca
de 17 tentativas de suicídio na China, isso está documentado pela
organizaçãoSacom (Students and Scholars Against
Corporate Misbehaviour, “Estudantes e Estudiosos contra o Mau Comportamento
Empresarial”) e por vários pesquisadores do tema. Dessas tentativas, sete
resultaram em morte. Por que isso? Porque havia intensa exploração do trabalho,
assédio moral, físico e até assédio sexual... Esses suicídios lembram um pouco
a escravidão: o suicídio era uma forma de luta individual contra a escravidão,
de quem não tinha mais nada a perder. Entre morrer pelo exaurimento corpóreo e
psíquico no trabalho, o suicídio podia abreviar a tragédia. E são jovens
chineses, jovens operários. A intensidade da exploração era tão completa que
houve uma intensa campanha de denúncia e a Apple foi obrigada a pressionar a
Foxconn, para impedir que sua imagem fosse maculada. E todos sabem que um dos
segredos do sucesso da Apple é a montagem de seus produtos nas plantas
asiáticas. Essa é a sociedade global, com suas cadeias produtivas globais...
Por que a China, nos últimos anos, tem
tido altos níveis de greve? Há estudos importantes sobre a intensidade das
greves na China, muitas consideradas “selvagens”, no sentido de que não têm uma
organização sindical, pois são espontâneas. E pouco tempo atrás, nos Estados
Unidos, houve uma grande greve dos trabalhadores das empresas de fast-food. No Japão, há trabalhadores que
praticamente moram em cybercafés, os “refugiados em cybercafé”, que saem do
trabalho contingente e vão para os cafés para interagir via internet, procurar
emprego para o dia seguinte e descansar, pois não têm condições de alugar um
quarto.
Não é possível que seja esse o desenho do mundo do trabalho que
queremos. E o estudo do trabalho é importante porque ele é parte da anatomia
dessa forma societal destrutiva que estamos vivendo hoje em relação ao
trabalho.
E essa é a conclusão que consta de meu livro “Os Sentidos do
Trabalho”: o trabalho que estrutura o capital, desestrutura a humanidade. E o
trabalho que estrutura a humanidade, desestrutura o capital. E esse parece ser
um imperativo do século 21.
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