domingo, 4 de julho de 2010

IRRESPONSABILIDADE SOCIAL- O Neoliberalismo e sua política econômica de flexibilização e precarização laboral

A ESPANHA COMO EXEMPLO (2)
Uma nova etapa da crise: disciplinar os trabalhadores, debilitar o poder sindical

(*) Antônio Baylos

O segundo tempo da nova etapa neoliberal acontece pela intervenção no marco legal das relações trabalhistas, fundamentalmente na reformulação das garantias de direitos dos trabalhadores ao emprego. A intervenção se dá em especial quanto ao regime de demissões e quanto à perda de incidência sobre a negociação coletiva setorial, em relação às condições impostas pelas empresas.


No caso espanhol, as negociações começaram no outono de 2009, passando por várias fases, a última das quais se caracterizou pela defesa, por parte das associações empresariais, de posições máximas. Estavam convencidos de que um acordo iria oferecer sempre posições de consenso menos complacentes com o documento de reivindicações empresariais, do que uma intervenção do governo. Com a ruptura ocorrida na última tentativa, o Governo prepara agora um decreto-lei, que deverá ser validado em sua tramitação no Parlamento. Abre-se, assim, um período de possíveis modificações nas medidas adotadas em função dos acordos com os grupos políticos nacionalistas, sempre com a incógnita sobre a incorporação a este processo da reforma política, como sucedeu anteriormente em todas as reformas trabalistas iniciadas por um governo socialista e contestada pelos sindicatos (em 1988 e 1994 principalmente).


O decreto aborda três grandes temas: as denominadas flexibilidade externa e interna e a intermediação privada no mercado de trabalho. No primeiro deles, ainda que nominalmente aborde a segmentação do mercado de trabalho espanhol entre contratos temporários e indefinidos, introduzindo alguns limites temporarios, o centro da reforma gravita sobre os custos das demissões, entendidos estes não em um sentido literal econômico, mas no mais amplo e decisivo aspecto político, privado-o das garantias que o controlavam. Isto é, se colocam em prática medidas de barateamento das demissões imotivados, por causas econômicas e se amplia um mecanismo de socialização dos custos de demissão em pequenas e médias empresas, através do pagamento de uma parte da indenização pelo Fundo de Garantia Salarial, embora esta linha de tendência não seja muito relevante.


Na realidade, é uma ampliação de mecanismos e instituições que já estavam vigentes no ordenamento jurídico espanhol. Portanto, trata-se mais de aprofundá-lo. Porém, o mais decisivo é a tendência a aprofundar a demissão sem justa causa. Isto implica em estabelecer, como princípio, o caráter definitivo da decisão do empresariado, ao reconhecer, unilateralmente, a improcedência da demissão com o pagamento da indenização correspondente, tanto na demissão disciplinar como por causas econômicas e do tipo objetivo. O controle judicial posterior não pode alterar, nem mediante um incremento da soma indenizatória, a decisão empresarial de desembaraçar-se do trabalhador e extinguir seu contrato.


A isto se soma o fato que se facilita extraordinariamente a causa da demissão relacionada com a crise da empresa. Não tanto pela introdução de elementos definidores da situação de prejuizo, mas fundamentalmente pela introdução de um padrão de medição da carga probatória do empresario, no processo de demissão. Ele deve ser “minimamente razoável”, de forma a que o magistrado possa dispensar – “flexibilizar” – a prova da dificuldade econômica como motivo de extinção do emprego.


Este intervenção sobre o regime de demissão se justifica tanto pelas virtudes seguras que deverá ter, para o crescimento do emprego, o pensamento do economicismo neoliberal como, em alguma de suas formulações políticas mais populares, a chamada flexicurity, a flexibilidade na demissão entendida como forma de debilitar ou impedir o controle judicial da causalidade da mesma.


Os sindicatos espanhois advertem que, com isso, se pretende eliminar uma das garantias centrais do sistema de tutela do direito ao trabalho, reconhecido constitucionalmente, afirmado na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, do Tratado de Lisboa de 2007, e compilado no Convênio 158 da OIT [Organização Internacional do Trabalho].


Um eixo da reforma, portanto, é mudar o paradigma legal sobre o caráter causal da demissão, tendendo a evitar o controle judicial sobre o ato empresarial e assim impossibilitar a tutela judicial afetiva. Nesta linha estão se movendo também as reformas em marcha em outros países europeus, desde a redução econômica dos custos de demissão até, de forma mais incisiva, a “flexibilização dos procedimentos” de demissão, o que leva a uma deterioração profunda da garantia judicial da estabilidade no emprego.


O segundo vetor é o de atuar sobre o sistema de negociação coletiva e sobre a estrutura de poder sindical que o sustenta. A conclusão geral da reforma é que está em marcha um conjunto de mecanismos de não aplicação da convenção coletiva setorial, o que pode esvaziar seu conteúdo de regulação em muitas áreas, fundamentalmente na questão de horário e de distribuição da jornada de trabalho. Frente a esta “centrifugação” da negociação salarial, se prevê soluções que passam por um procedimento de arbitragem, que no pode ser articulado dentro da própria negociação coletiva, e os sistema de solução de conflitos gerados autonomamente entre os interlocutores sociais, e por conseguinte, em direção à judicialização dos conflitos que derivem desta “descentralização”.


A tendência é a autorreferência excludente da empresa na regulação de condições de trabalho e emprego dos trabalhadores. Ela supõe a erosão completa da força vinculante do convênio do setor e, por isso mesmo, lesiona a liberdade sindical das organizações sindicais, que têm sua função institucional típica, a de regular as relações trabalhistas através de acordos coletivos, esvaziada de conteúdo.


O último dos temas abordados na reforma é o da legalização das agência privadas de emprego, no âmbito da intermediação do trabalho. Trata-se de um aspecto menos interessante, se comparado com os outros dois, e que em grande medida tem sua urgência determinada pela necessidade de concretizar uma determinação europeia de 2009, sobre as Empresas de Trabalho Temporário. A coabitação e coordenação destas agências com os serviços públicos de emprego é o terreno em que opera o desenvolvimento prático desta normativa.


IV


A reforma trabalhista foi aprovada pelo governo e será promulgada sob a forma de decreto lei. Existe uma sentença do Tribunal Constitucional que exige que este tipo de norma, ao implicar modificações em leis importantes, sejam tramitadas como projeto de lei. Portanto, haverá um espaço largo para negociação política do texto. Enquanto isso, a conflitividade social que foi desencadeada poderá continuar sendo retroalimentada.

Os sindicatos já convocaram greve geral, fazendo-a coincidir com o dia de mobilização, em fins de setembro, convocado pela Conferência Europeia de Sindicatos. A reivindicação é a criação de um novo modelo de desenvolvimento econômico mundial, que seja economicamente eficiente, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Concretiza-se em uma série de atividades na Europa, “para recuperar o crescimento” e em defesa das “políticas públicas”. O tema é fundamental, porque a estes dois vetores – redução de gasto público e da própria dimensão do aparato da administração e reforma do ordenamento trabalhista – une-se uma iminente redefinição, para baixo, de aspectos importantes do sistema de seguridade social, especialmente com relação às pensões. Em praticamente todos os países europeus – a partir de Grécia e Alemanha - anuncia-se que haverá reformas redutoras de direitos sociais.


A resposta a esta pressão coordenada em direção à reforma do modelo legal de relações trabalhistas tem que acontecer em nivel europeu, posto que é o modelo social europeu que está ameaçado de forma grave por estes processos de erosão. O sindicalismo europeu, no entanto, está sob letargia e responde com dificuldade e lentidão a uma situação carregada de tensões nos espaços nacional-estatais da União Europeia.


Possivelmente esta dificuldade de resposta e de elaboração de conceitos críticos e programáticos, relacionados à situação de milhões de trabalhadores europeus, situa-se no mesmo nivel da inexistência prática de uma reflexão política por parte da socialdemocracia europeia. Ela não se define como alternativa ao que hoje existe. Além disso, perdeu a capacidade de refletir sobre os elementos centrais de um sistema democrático e a forma de radicalizá-los frente ao despotismo dos poderes econômicos e financeiros.


A situação está em aberto e, portanto, deve merecer atenção no futuro próximo. Enquanto isso, a preparação e a extensão das mobilizações, tanto na Espanha como em outros países, e coordenadamente, no âmbito europeu, são condição necessária para compor uma alternativa desde a esquerda social, em torno de um projeto de reforma e, de certo modo, de refundação da democracia em torno de suas dimensões social e política.

(*) Antônio Baylos Prof. da Univ. Castilha-La Mancha (Espanha) 
Fonte: SUL21
Edição nº 045 do dia 03/07/2010
Link:
http://www.sul21.com.br/index.php/colunistas/Antonio-Baylos/699

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