O festejado Professor Giovanni
Alves, da Unesp-Marília (SP), encontra-se em Portugal, Universidade de Coimbra,
concluindo seu curso de Pós-Doutorado, estudioso sobre as condições do estado
de sociometabolismo da barbárie em que vivemos faz uma análise atualizadíssima
da crise européia, que foi publicada pela Revista
"O Comuneiro"(de Portugal), provocando o artigo forte inquietação entre alguns intelectuais
sociais-democratas, órfãos do "Welfare State" como também na direita
intelectual inquieta com a critica radical do capitalismo.
Leia mais.
A crise européia e o “moinho satânico” do
capitalismo global
Giovanni Alves (*)
A crise financeira de
2008 expõe com candência inédita, por um lado, a profunda crise do capitalismo
global e, por outro, a débâcle político-ideológico da esquerda socialista
européia intimada a aplicar, em revezamento com a direita ideológica, os
programas de ajustes ortodoxos do FMI na Grécia, Espanha e Portugal, países
europeus que constituem os “elos mais fracos” da União Européia avassalada
pelos mercados financeiros.
Aos poucos, o capital
financeiro corrói o Estado social europeu, uma das mais proeminentes
construções civilizatórias do capitalismo em sua fase de ascensão histórica.
Com a crise estrutural do capital, a partir de meados da década de 1970, e a
débâcle da URSS e o término da ameaça comunista no Continente Europeu, no
começo da década de 1990, o “capitalismo social” e seu Welfare State, tão
festejado pela social-democracia européia, torna-se um anacronismo histórico
para o capital. Na verdade, a União Européia nasce, sob o signo paradoxal da
ameaça global aos direitos da cidadania laboral. É o que percebemos nos últimos
10 anos, quando se ampliou a mancha cinzenta do desemprego de longa duração e a
precariedade laboral, principalmente nos “elos mais fracos” do projeto social
europeu. Com certeza, a situação do trabalho e dos direitos da cidadania
laboral na Grécia, Espanha e Portugal deve piorar com a crise da dívida
soberana nestes países e o programa de austeridade do FMI.
Vivemos o paradoxo
glorioso do capital como contradição viva: nunca o capitalismo mundial esteve
tão a vontade para aumentar a extração de mais-valia dos trabalhadores
assalariados nos países capitalistas centrais, articulando, por um lado,
aceleração de inovações tecnológicas e organizacionais sob o espírito do
toyotismo; e por outro lado, a proliferação na produção, consumo e política, de
sofisticados dispositivos de “captura” da subjetividade do homem que trabalha,
capazes de exacerbar à exaustão, o poder da ideologia, com reflexos na
capacidade de percepção e consciência de classe de milhões e milhões de homens
e mulheres imersos na condição de proletariedade.
Deste modo, a crise
européia é não apenas uma crise da economia e da política nos países europeus,
mas também – e principalmente – uma crise ideológica que decorre não apenas da
falência política dos partidos socialistas em resistir à lógica dos mercados
financeiros, mas também da incapacidade das pessoas comuns e dos movimentos
sociais de jovens e adultos, homens e mulheres explorados e numa situação de
deriva pessoal por conta do desmonte do Estado social e espoliação de direitos
pelo capital financeiro, em perceberem a natureza essencial da ofensiva do
capital nas condições do capitalismo global.
Ora, uma parcela
considerável de intelectuais e publicistas europeus têm uma parcela de
responsabilidade pela “cegueira ideológica” que crassa hoje na União Européia.
Eles renunciaram há tempos, a uma visão critica do mundo, adotando como único
horizonte possível, o capitalismo e a Democracia – inclusive aqueles que se
dizem socialistas. Durante décadas, educaram a sociedade e a si mesmos, na crença
de que a democracia e os direitos sociais seriam compatíveis com a ordem
burguesa. O pavor do comunismo soviético e a rendição à máquina ideológica do
pós-modernismo os levaram a renunciar a uma visão radical do mundo. Por
exemplo, na academia européia – que tanto influencia o Brasil – mesmo em plena
crise financeira, com aumento da desigualdade social e desmonte do Welfare State,
abandonaram-se os conceitos de Trabalho, Capitalismo, Classes Sociais e
Exploração. Na melhor das hipóteses, discutem desigualdades sociais e
cidadania…
Há tempos o léxico de
critica radical do capitalismo deixou de ser utilizado pela nata da renomada
intelectualidade européia, a maior parte dela, socialista, satisfeita com os
conceitos perenes de Cidadania, Direitos, Sociedade Contemporânea, Democracia,
Gênero, Etnia, etc – isto é, conceitos e categoriais tão inócuas quanto
estéreis para apreender a natureza essencial da ordem burguesa em processo e
elaborar com rigor a crítica do capitalismo atual. Na verdade, para os pesquisadores
da “classe média” intelectualizada européia, muitos deles socialistas
“cor-de-rosa”, a esterilização da linguagem crítica permite-lhes pleno acesso
aos fundos públicos (e privados) de pesquisa institucional.
É claro que esta
“cegueira ideológica” que assola o Velho Continente decorre de um complexo
processo histórico de derrota do movimento operário nas últimas décadas, nos
seus vários flancos – político, ideológico e social: o esclerosamento dos
partidos comunistas, ainda sob a “herança maldita” do stalinismo; a
“direitização” orgânica dos partidos socialistas e sociais-democratas, que
renunciaram efetivamente ao socialismo como projeto social e adotaram a idéia
obtusa de “capitalismo social”; a débâcle da União Soviética e a crise do
socialismo real, com a intensa campanha ideológica que celebrou a vitória do
capitalismo liberal e do ideal de Democracia. A própria União Européia nasce
sob o signo da celebração da globalização e suas promessas de desenvolvimento e
cidadania. Last, but not
least, a vigência da indústria cultural e das redes sociais de
informação e comunicação que contribuíram – apesar de suas positividades no
plano da mobilização social – para a intensificação da manipulação no consumo e
na política visando reduzir o horizonte cognitivo de jovens e adultos, homens e
mulheres à lógica do establishment, e, portanto, à lógica neoliberal do
mercado, empregabilidade e competitividade.
Na medida em que se
ampliou o mundo das mercadorias, exacerbou-se o fetichismo social,
contribuindo, deste modo, para o “derretimento” de referenciais cognitivos que
permitissem apreender o nome da “coisa” que se constituía efetivamente nas
últimas décadas: o capitalismo financeiro com seu “moinho satânico” capaz de
negar as promessas civilizatórias construídas na fase de ascensão histórica do
capital.
Não deixa de ser
sintomático que jovens de classe média indignados com a “falsa democracia” e o
aumento da precariedade laboral em países como Portugal e Espanha, tenham
levantado bandeiras inócuas, vazias de sentido, no plano conceitual, para
expressar sua aguda insatisfação com a ordem burguesa. Por exemplo, no dia 5 de
junho de 2011, dia de importante eleição parlamentar em Portugal, a faixa na
manifestação de jovens acampados diante da célebre catedral de Santa Cruz em
Coimbra (Portugal), onde está enterrado o Rei Afonso Henriques, fundador de
Portugal, dizia: “Não somos contra o Sistema. O Sistema é que é Contra Nós”.
Neste dia, a Direita (PSD-CDS) derrotou o Partido Socialista e elegeu a maioria
absoluta do Parlamento, numa eleição com quase 50% de abstenção e votos
brancos. Enfim, órfãos da palavra radical, os jovens indignados não conseguem
construir, no plano do imaginário político, uma resposta científica e radical,
à avassaladora condição de proletariedade que os condena a uma vida vazia de
sentido.
Na verdade, o que se
coloca como tarefa essencial para a esquerda radical européia – e talvez no
mundo em geral – é ir além do mero jogo eleitoral e resgatar a capacidade de
formar sujeitos históricos coletivos e individuais capazes da “negação da
negação” por meio da democratização radical da sociedade. Esta não é a primeira
– e muito menos será a última – crise financeira do capitalismo europeu.
Portanto, torna-se urgente construir uma “hegemonia cultural” capaz de impor
obstáculos à “captura” da subjetividade de homens e mulheres pelo capital. Para
que isso ocorra torna-se necessário que partidos, sindicatos e movimentos
sociais comprometidos com o ideal socialista, inovem, isto é, invistam, mais do
que nunca, em estratégias criativas e originais de formação da classe e redes
de subjetivação de classe, capazes de elaborar – no plano do imaginário social
– novos elementos de utopia social ou utopia socialista. Não é fácil. É um
processo contra-hegemônico longo que envolve redes sociais, partidos,
sindicatos e movimentos sociais. Antes de mais nada, é preciso resgatar (e
re-significar) os velhos conceitos e categorias adequadas à critica do capital
no século XXI. Enfim, lutar contra a cegueira ideológica e afirmar a lucidez
crítica, entendendo a nova dinâmica do capitalismo global com suas crises
financeiras.
Ora, cada crise
financeira que se manifesta na temporalidade histórica do capitalismo global
desde meados da década de 1970 cumpre uma função heurística: expor com
intensidade candente a nova dinâmica instável e incerta do capitalismo
histórico imerso em candentes contradições orgânicas.
Na verdade, nos
últimos trinta anos (1980-2010), apesar da expansão e intensificação da
exploração da força de trabalho e o crescimento inédito do capital acumulado,
graças à crescente extração de mais-valia relativa, a produção de valor
continua irremediavelmente aquém das necessidades de acumulação do sistema
produtor de mercadorias. É o que explica a financeirização da riqueza capitalista
e a busca voraz dos “lucros fictícios” que conduzem a formação persistente de
“bolhas especulativas” e recorrentes crises financeiras.
Apesar do crescimento
exacerbado do capital acumulado, surgem cada vez mais, menos possibilidades de
investimento produtivo de valor que conduza a uma rentabilidade adequada às
necessidades do capital em sua etapa planetária. Talvez a voracidade das
políticas de privatização e a expansão da lógica mercantil na vida social sejam
estratégias cruciais de abertura de novos campos de produção e realização do
valor num cenário de crise estrutural de valorização do capital.
Ora, esta é a
dimensão paradoxal da crise estrutural de valorização. Mesmo com a intensificação
da precarização do trabalho em escala global nas últimas décadas, com o
crescimento absoluto da taxa de exploração da força de trabalho, a massa
exacerbada de capital-dinheiro acumulada pelo sistema de capital concentrado,
não encontra um nível de valorização – produção e realização – adequado ao
patamar histórico de desenvolvimento do capitalismo tardio.
Deste modo, podemos
caracterizar a crise estrutural do capitalismo como sendo (1) crise de formação
(produção/realização) de valor, onde a crise capitalista aparece, cada vez
mais, como sendo crise de abundância exacerbada de riqueza abstrata.
Entretanto, além de ser crise de formação (produção/realização) de valor, ela é
(2) crise de (de)formação do sujeito histórico de classe. A crise de
(de)formação do sujeito de classe é uma determinação tendencial do processo de
precarização estrutural do trabalho que, nesse caso, aparece como precarização
do homem que trabalha.
Ora, a precarização
do trabalho não se resume a mera precarização social do trabalho ou
precarização dos direitos sociais e direitos do trabalho de homens e mulheres
proletários, mas implica também a precarização-do-homem-que-trabalha como ser
humano-genérico. A manipulação – ou “captura” da subjetividade do trabalho pelo
capital – assume proporções inéditas, inclusive na corrosão
político-organizativa dos intelectuais orgânicos da classe do proletariado. Com
a disseminação intensa e ampliada de formas derivadas de valor na sociedade
burguesa hipertardia, agudiza-se o fetichismo da mercadoria e as múltiplas
formas de fetichismo social, que tendem a impregnar as relações humano-sociais,
colocando obstáculos efetivos à formação da consciência de classe necessária e,
portanto, à formação da classe social do proletariado.
Deste modo, o
capitalismo global como capitalismo manipulatório nas condições da vigência
plena do fetichismo da mercadoria, expõe uma contradição crucial entre, por um
lado, a universalização da condição de proletariedade e, por outro lado, a
obstaculização efetiva – social, política e ideológica – da consciência de
classe de homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho.
Imerso em candentes
contradições sociais, diante de uma dinâmica de acumulação de riqueza abstrata
tão volátil, quanto incerta e insustentável, o capitalismo global explicita
cada vez mais a sua incapacidade em realizar as promessas de bem-estar social e
emprego decente para bilhões de homens e mulheres assalariados. Pelo contrário,
diante da crise, o capital, em sua forma financeira e com sua personificação
tecnoburocrática global (o FMI), como o deus Moloch, exige hoje sacrifícios
perpétuos e irresgatáveis das gerações futuras.
Entretanto, ao invés
de prenunciar a catástrofe final do capitalismo mundial, a crise estrutural do
capital prenuncia, pelo contrário, uma nova dinâmica sócio-reprodutiva do
sistema produtor de mercadorias baseado na produção critica de valor.
Apesar da crise
estrutural, o sistema se expande, imerso em contradições candentes, conduzido
hoje pelos pólos mais ativos e dinâmicos de acumulação de valor: os ditos
“países emergentes”, como a China, Índia e Brasil, meras “fronteiras de
expansão” da produção de valor à deriva. Enquanto o centro dinâmico capitalista
– União Européia, EUA e Japão – “apodrece” com sua tara financeirizada (como
atesta a crise financeira de 2008 que atingiu de modo voraz os EUA, Japão e
União Européia), a periferia industrializada “emergente” alimenta a última
esperança (ou ilusão) da acumulação de riqueza abstrata sob as condições de uma
valorização problemática do capital em escala mundial (eis o segredo do milagre
chinês).
Portanto, crise
estrutural do capital não significa estagnação e colapso da economia
capitalista mundial, mas sim, incapacidade do sistema produtor de mercadorias
realizar suas promessas civilizatórias. Tornou-se lugar comum identificar crise
com estagnação, mas, sob a ótica do capital, “crise” significa tão-somente
riscos e oportunidades históricas para reestruturações sistêmicas visando a
expansão alucinada da forma-valor. Ao mesmo tempo, “crise” significa riscos e
oportunidades históricas para a formação da consciência de classe e, portanto,
para a emergência da classe social de homens e mulheres que vivem da venda de
sua força de trabalho e estão imersos na condição de proletariedade. Como diria
Marx, Hic Rhodus, hic salta!
(*) Giovanni Alves é professor livre docente de Sociologia da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marilia, e pesquisador
bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa, atualmente fazendo pós-doutorado na
Universidade de Coimbra/Portugal. É coordenador do projeto Núcleo de Estudos sobre a
Globalização e autor do livro ’Trabalho e Subjetividade – O espírito do
toyotismo na era do capitalismo manipulatório’ (Editora Boitempo, 2011).
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