(*) Jorge Luiz Souto Maior (1)
1. O Golpe
Em 1º. de abril de 1964, o golpe militar,
impulsionado pelo medo de uma reforma social e patrocinado por grupos
empresariais estrangeiros, com eco em parte da classe empresarial brasileira,
que, naquele instante, ainda não se conformava com o advento de uma legislação
trabalhista no Brasil, derrubou o governo democrático e instaurou uma ditadura,
que duraria até março de 1985.
Dia desses, estudando o período, consultei
o manancial da Revista LTr, curioso para saber o que diziam a respeito os
juristas trabalhistas na época.
A edição de mar/abr, de 1964, da Revista,
traz as seguintes discussões: Publicação das Súmulas do STF sobre direito do
trabalho; os artigos: “Previdência Social” (Orlando Gomes e Élson Gottschalk),
“Despedida de dirigente sindical” (Alcides de Mendonça Lima), “Presença
obrigatória do advogado na Justiça do Trabalho” (Ruy de Azevedo Sodré), “Alta
clínica em ambiente do trabalho” (José Barros Azevedo); e Jurisprudência sobre:
adicional de insalubridade, equiparação salarial; recurso de revista;
auxílio-doença etc...
O número seguinte, mai/jun-64, traz a
publicação da Lei de greve, n. 4.330/64, sem considerações críticas e artigos
dos temas típicos trabalhistas e jurisprudência, prosseguindo no mesmo tom nas
demais edições.
Esta passividade, em termos trabalhistas,
talvez se explique pelo natural temor da repressão ou pela declaração proferida
pelo Comando Supremo da Revolução, logo após a tomada do poder, nos seguintes
termos: “O Comando Supremo da Revolução, tendo tomado conhecimento de que
indivíduos ligados ao peleguismo e que infestam os meios sindicais estão
desenvolvendo campanhas e boatos para provocar inquietações nos meios operários,
vem uma vez por todas esclarecer os seguintes pontos: 1 – A Revolução vitoriosa
levada a cabo pelas Fôrças Armadas, com apoio do povo, considera irreversíveis
as conquistas sociais legítimas contidas na legislação trabalhista em vigor; 2
– Os trabalhadores continuarão em pleno gozo de seus direitos, agora mais do
que antes, porque estão livres da influência político-partidária; 3 – A Justiça
do Trabalho permanece em pleno funcionamento em sua missão de defesa dos justos
interesses e de harmonizar as divergências entre empregados e empregadores; 4 –
O Comando Supremo da Revolução está certo de que os trabalhadores brasileiros
saberão não dar ouvidos a estes boatos, desprezando os elementos perturbadores,
saberão cumprir seus deveres e obrigações, inseparáveis que são dos direitos
constantes da legislação trabalhista brasileira’.” (2)
Entretanto, apesar dessa declaração, a
política econômica do governo se pautou pelo “arrocho salarial”, nos termos do
Decreto-lei n. 15, de julho de 1966, baixado com base no AI n. 02.
A respeito dessa questão específica, o que
se extrai de números da Revista referida são dois artigos, (edição de jul/ago
de 1966, pp. 352-357) e (edição de set/out de 1967, pp. 525/530), defendendo a
constitucionalidade do Decreto, que previa que aumentos salariais somente
poderiam ocorrer após um ano do último acordo ou dissídio coletivo e que as
empresas em dificuldade financeira poderiam recorrer à Justiça do Trabalho
(perante às Juntas de Conciliação), para requerem a suspensão da aplicação do
acordo ou decisão normativa.
Em algumas obras jurídicas trabalhistas da
época, a exposição histórica do Direito do Trabalho parecia negligenciar o fato
de que se vivia em plena ditadura, preferindo-se tecer críticas à outra
ditadura, a de Vargas. Antonio Lamarca, por exemplo, em seu livro, Curso
Expositivo de Direito do Trabalho, RT, São Paulo, de 1972, após fazer severa
crítica à ditadura de Vargas, assim se posicionava sobre a história do Direito
do Trabalho iniciada com a “Revolução” Militar:
Em 31 de março de 1964, nova Revolução sacudiu o gigante: o
regime representativo sofreu novo abalo; baixaram-se Atos Institucionais, em
substituição a vários dispositivos da Constituição. Os direitos dos
trabalhadores foram assegurados. Por isso é que, como dissemos, achamos, data
venia, arbitrária a divisão feita por BARRETO PRADO. A Revolução de 1964
desfraldou uma bandeira contra a corrupção e subversão; mas os direitos de
nossos trabalhadores foram salvaguardados. Nesta fase derradeira,
regulamentou-se o direito de greve (Lei n. 4.330, de 1o.6.1964),
estabeleceram-se diversas medidas de controle salarial, para coadjuvar o
combate à inflação galopante, e regulamentaram-se numerosas profissões. (p. 23)
Mais abaixo arrematava o mesmo autor:
A Segunda Guerra Mundial forneceu-nos os fundamentos de uma
sólida indústria de transformação: estamos, hoje em dia, emergindo do
escravizante monopólio do café e preparamo-nos, confiantes, para dar um salto
por cima do Futuro, recuperando o tempo perdido. “Ninguém segura este país”
constitui um slogan que pode ministrar-nos o até agora ausente orgulho
nacional. Possivelmente a próxima centúria nos apanhe liderando as nações
de língua neo-latina, nos termos econômicos, político e social. Temos tudo para
sermos grandes. (p. 23)
Na obra de Mozart Victor Russomano, Curso
de Direito do Trabalho José Konfino Editor, Rio de Janeiro, de 1972, que na
época ocupava o cargo de Vice-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, no
levantamento histórico do Direito do Trabalho, há destaque à proliferação de
leis trabalhistas do período de Vargas, especialmente, a partir da Carta de 37,
como uma característica dos regimes “nazi-fascistas”. Em seguida, é feita uma
menção à “redemocratização” do país, com a Constituição de 1946, não se
proferindo uma só palavra sobre a ditadura militar. Do período posterior a 64,
lembra-se apenas da Constituição de 1967 e do Decreto-Lei n. 229, de 28 de fevereiro
de 1967 (pp. 21-23).
Parte da produção jurídica trabalhista da
época, portanto, acaba por negligenciar o fato de que se vivia sob o comando de
uma ditadura, que aniquilava o Estado Democrático de Direito e que impunha
diretrizes à relações de trabalho baseadas em Atos Institucionais. Como
conseqüência desta situação, não se vê nenhum embate mais profundo sobre a
função do direito do trabalho e suas relações com os ideais de justiça social,
naquele tempo de arrocho salarial e de repressão da atividade sindical.
Mas, as discussões trabalhistas começam a
ficar um pouco mais calorosas com a apresentação, pelo governo, em 1966, do
projeto de criação do FGTS.
Denunciando o desmantelamento do direito trabalhista
que o FGTS representava, destaca-se contundente crítica de Armando Cassimiro
Costa, em parecer elaborado em 10 de maio de 1966, nos seguintes termos:
Ainda recentemente no I
Congresso Iberoamericano de Derecho del Trabajo, “entre as conclusões aprovadas
pela respectiva comissão, destacamos a de que a estabilidade deve ser
consagrada como regra, ficando a despedida (sem justa causa) como exceção”. E
mais “De um modo geral, reconheceu-se a finalidade social do instituto:
garantir o direito ao trabalho, evitando o desemprego” (José Marins Catharino,
in LTr 29/533). A mutilação que o Governo brasileiro propõe para o instituto em
causa é, pois, um desmentido à conclusão a que chegaram os juristas
iberoamericanos. E note-se que, atualmente, no Brasil, quem impõe as leis não é
mais o homem do direito, afeito à técnica e à ciência jurídica, mas o
economista, o “o homo oeconomicus” (pp. 120-121) “O mal não está na
estabilidade. Está nos que não a compreendem. Entre estes se enfilera, agora, o
Governo Federal. Como disse o Prof. Cesarino Júnior na entrevista já citada, é
preceiso não confundir indenização com estabilidade: substituir uma coisa pela
outra seria violentar a própria natureza do contrato individual de trabalho.
Enfim, o remédio está na fiscalização das leis trabalhistas – omissão do
próprio Governo – que agora se volta contra o instituto, cometendo dupla
falha.” (LTr, mar/abr 1966, n. 30, p. 121).
Sobressaem, também, no mesmo sentido, o artigo de
Aluysio Sampaio (Juiz do Trabalho), com o título, “Rescisão do contrato de
trabalho: estabilidade, com indenização, ou fundo de garantia”, LTr, jul/ago,
1967, n. 31, pp. 387-437, e a obra de José Martins Catharino, LTr, São Paulo,
1966.
Merece relevo, ainda, já em 1970, a obra de Cesarino
Júnior, Direito Social Brasileiro, onde o autor firma forte oposição ao período
posterior a 1964, referindo-se a ele como período de “atividade revisionista
negativa”, em virtude do “arrocho salarial” imposto pelas novas leis de
política salarial e a Lei n. 5.107/66, que criara o FGTS (p. 88).
Lembrando do compromisso assumido pelos
revolucionários, de que não atingiriam os direitos dos trabalhadores, assim se
posicionou Cesarino:
Tal pronunciamento deu a
entender que nada se faria no sentido de impor uma carga exagerada aos
hipossuficientes em matéria de reformas sociais. Ocorre, porém, que duas leis
de caráter nitidamente tecnocrata foram impostas aos trabalhadores.
Referimo-nos a toda legislação concernente ao chamado “arrocho salarial” e à lei
que criou o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. (3)
Também Mozart Victor Russomano, na mesma
obra acima mencionada, na parte que diz respeito à estabilidade no emprego e ao
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, acaba deixando de lado a sua aparente
parcialidade, para atacar frontalmente o FGTS, denominando-o como um “duro
golpe desfechado contra a estabilidade” (p. 245).
Em sua defesa da estabilidade, aliás, Russomano,
denuncia que a política econômica da época estava atendendo interesses de
grupos econômicos nacionais e estrangeiros:
A princípio, os partidários da abolição da estabilidade
tiveram os seus esforços barrados por uma política nacional de declarada
proteção ao trabalhador, desenvolvida por um governo que buscava apoio, em
última análise, no sindicalismo nacional.
Essa fase do processo brasileiro foi encerrada e, de
imediato, instituiu-se no País um governo central forte, atuante, distanciado
das reivindicações sindicalistas e que – tendo absorvido o Poder Legislativo –
não encontrou barreiras políticas para pôr em execução a idéia insuflada, de
modo todo especial, por grupos econômicos nacionais e estrangeiros, que
formavam os redutos mais poderosos contra a estabilidade, por verem nela,
inclusive, um empecilho aos seus investimentos.
Na campanha que então se realizou contra a estabilidade,
foram recapitulados todos os notórios defeitos do sistema brasileiro. Mas, não
se cogitou de corrigi-los. Tratou-se, sim, de reformular o direito anterior,
invocando-se as conveniências da política econômica, inclusive, a necessidade
de atração, para o território nacional, de capitais privados estrangeiros.
Silenciava-se, contudo, sobre os numerosos exemplos do Direito Comparado, que
assinalam o progressivo aumento do número de nações que consagram a
estabilidade, com nuanças inevitáveis, oriundas das condições do lugar e da
época, especialmente a partir da promulgação da Lei de 1951, da República
Federal da Alemanha.
(....)
Esse caminho promissor não seduziu os legisladores do
período imediatamente posterior à Revolução de 1964. Naquela época, vivíamos
uma fase difícil da vida nacional, sacudida nas suas mais sólidas estruturas
pela inflação em alto ritmo. O Poder Público chegou, em estilos duros, a
medidas enérgicas para contenção do custo de vida. A política econômica e, mais
particularmente, a política salarial – pela primeira vez, na História do Brasil
– reprimiram a reivindicação de novos direitos articulada pelos trabalhadores
e, inclusive, chegaram ao extremo de forçar o retrocesso de certas normas,
entre as quais estão as relativas à estabilidade.
...pela primeira vez, também, na crônica nacional, apesar da
implantação no País de regime político rígido e poderoso, fomos testemunhas de
um belo movimento sindical. Os trabalhadores reagiram, com valentia, contra
essa flagrante subtração de seus direitos tradicionais, conquistados após mais
de trinta anos de lutas penosas, e obtiveram, através de suas principais
associações de classe, que aquela campanha alcançasse repercussão nacional. Ao
lado deles, encontravam-se os juslaboralistas. Com raras exceções, os
professores universitários de Direito do Trabalho de todo o Brasil
compreenderam a importância daquele momento. Com a serenidade própria do
cientista, eles souberam defender o que era inalienável na regulamentação do
trabalho. Seus instrumentos foram a cátedra, a imprensa e o livro.
Não faltaram, é verdade, as defesas do
FGTS e os ataques à estabilidade. Neste sentido, Octavio Bueno Magano, em
artigo publicado na edição da LTr, de mai/jun de 1966 (“Revisão da
estabilidade”, pp. 273-283), assim se pronunciara:
A maioria das críticas feitas ao Projeto não se dirigem
propriamente a ele resolvendo-se, ao contrário, numa apologia sentimental da
estabilidade, ou na condenação de sua supressão, que nele absolutamente não se
preconiza. Essa falta de objetividade atraiçoa, em muitos casos, o propósito de
atingir, por razões políticas, os que o apadrinham e não o que nele se contém.
(....)
Num país com o Brasil, o grande objetivo a ser alcançado é o
da maximização da taxa de desenvolvimento. Só o desenvolvimento econômico
poderá propiciar efetiva melhoria das condições de vida da população.
Na perseguição de tal objetivo, há dois instrumentos
fundamentais: a poupança e a produtividade.
(....)
No Projeto em análise estão presentes os referidos
instrumentos de progresso: a poupança e a produtividade. (....) A
conversão do Projeto em lei será, pois, um fator de desenvolvimento
econômico e social, a ser por todos desejado.
De todo modo, com exceção dessa discussão
um pouco mais calorosa a respeito da estabilidade e do FGTS, o fato é que
vivíamos sob uma ditadura, que impunha reformas na Constituição por meio de
Atos Institucionais e nenhum questionamento mais direto se fazia sobre isto
(pelo menos nas obras e textos consultados). Aliás, muito ao contrário o que
resta deste período é uma concordância expressa com a quebra da ordem jurídica
havida, com a edição do Enunciado n. 150, do Eg. TST, em 1982, que assim
preconizou: “Falece competência à Justiça do Trabalho para determinar a
reintegração ou a indenização de empregado demitido com base nos atos
institucionais.”
Por que falo disso? Porque certamente
ficarão para a história os anais desse Congresso de Direito Previdência (que se
perfaz em concomitância com outro, o de Direito do Trabalho), realizado em
junho de 2013 em local muito próximo da Avenida Paulista, e algum dia alguém,
um “pesquisador chato”, vai levantar o que se discutiu aqui enquanto o país
passava por esse momento de extrema agitação com as manifestações pelas ruas,
um momento que se pode até identificar como revolucionário, por diversos
aspectos.
Isso porque, primeiro, nunca antes na
história desse país se viu mobilização popular igual. Nem a de 1968, ou a de
1992, tiveram o mesmo alcance e a mesma complexidade. As presentes manifestações
atingiram um leque enorme de reivindicações, fazendo com que as pessoas,
notadamente, os jovens, tivessem maior percepção da vida política e
democrática. Segundo, trouxeram uma revalorização da rua. O espaço público foi
retomado e o convívio humano, que estava atropelado pelo individualismo, foi,
de certo modo, recuperado. E terceiro, revitalizou-se a vida política,
sobretudo diante da compreensão de que a luta nas ruas pode mesmo produzir
resultados concretos.
Assim, não seria apropriado que nos
silenciássemos a respeito, até porque a matéria aqui posta em discussão, o
direito previdenciário, está essencialmente ligada à temática das ruas, como
procurarei demonstrar.
3. As reivindicações da rua batem à porta
Não há, no instante em que se realiza este
Congresso, manifestantes aí fora, cobrando-nos ostensivamente, mas o grito que
vem sendo dado deve ser considerado.
Se olharmos atentamente – e estive em três
das manifestações chamadas pelo Movimento Passe Livre (as que se iniciaram no
Largo da Batata, na Pç. da Sé e na Av. Paulista) – as reivindicações têm, no
geral, um ponto de identidade: o reforço da ideia de Estado. Mas, não o Estado
policial, o Estado Liberal burguês, que intervém na realidade social apenas
para preservar as desigualdades e para punir penalmente os “desajustados”. O
que se requer nas ruas é o Estado Social: os manifestantes querem transporte
gratuito; educação e saúde pública de qualidade; além de moralidade
administrativa, contra a corrupção, que não se desvincula do objeto Estado
Social, pois para a execução das atividades públicas é preciso dinheiro e o
furto do dinheiro público é, sem a menor dúvida, o maior crime que se pode
cometer contra o Estado Social.
O mundo verifica um abalo geral do
capitalismo e, de modo geral, os movimentos espontâneos de estudantes pelo
mundo afora tratam da discussão do capitalismo, senão expressamente
direcionando-se na direção do socialismo – embora essa pauta também se ponha –,
ao menos na perspectiva da contraposição às concepções liberais ou, mais
propriamente, neoliberais, preconizando maior intervenção do Estado (Social) na
economia, por meio da promoção dos direitos sociais, que têm sido
negligenciados desde o final do século passado. Querem uma sociedade melhor,
para todos, e não ausência de interferência para demonstrarem sua competência e
vencerem a concorrência...
Mesmo os jovens da classe média sem
orientação política definida, que se integraram ao movimento iniciado pelo MPL,
movimento composto, originariamente, por jovens de esquerda, foram para as ruas
defender os mesmos propósitos, ainda que, em determinado momento, as pautas
tenham se tornado confusas em virtude das tentativas de atração do fato para um
debate político eleitoral limitado aos interesses de dois Partidos.
De todo modo, na essência e em resumo, o
que se viu nas ruas brasileiras, de forma incontestável, foi o sepultamento do
neoliberalismo, pondo-se na ordem do dia a discussão de um novo modelo de
sociedade, pautado pela busca da efetividade do Estado Social, um Estado que
possa garantir aos cidadãos seus direitos mínimos de cidadania.
O início das mobilizações atuais se deu
com o Movimento Passe Livre, que, ademais, fez aquilo que já vinha fazendo há
algum tempo, desde 2006: revoltar-se quando um aumento das passagens era
anunciado.
Vale reparar, portanto, que a revolta é
uma reação a uma violência. Uma violência que não se apresenta fisicamente, mas
que existe para quem a sofre. O problema para a vítima é que a reação da
revolta, às vezes materializada em ato coletivo, é muito mais facilmente
visualizada.
No caso da revolta pelo aumento das
passagens onde está, de fato, a violência? A violência está configurada no ato
de aumentar o preço de um serviço público, que deveria ser gratuito, sem
demonstração alguma das contas que justificam o aumento. E a violência ainda é
maior quando se recorda que quem se utiliza do transporte pública são,
principalmente, as pessoas que, por causa de uma política urbana segregadora e de
uma política econômica excludente, foram expulsas para as periferias das
cidades.
Bom, mais essas violências já estavam aí e
o Movimento Passe Livre já havia se manifestado antes e não se chegou das
outras vezes ao ponto a que se chegou agora, no que se refere ao tamanho das
mobilizações.
Então a que se indagar: Por que desta vez a
situação chegou ao ponto a que chegou? Teriam as violências contra as pessoas
aumentado?
As respostas não são simples. Acho que, no
geral, os problemas de estagnação do modelo de sociedade aumentaram,
multiplicando as insatisfações e as frustrações pessoais. Mas, mais relevante do
que isso talvez tenha sido o aumento da percepção das violências, o que foi
favorecido pelo acesso à informação. Essa percepção impulsionou as revoltas, as
quais, por sua vez, foram alimentadas pela maior facilidade de expressão e de
programação de reações coletivas nas redes sociais.
Quando o mesmo fato, que já tinha ocorrido
outras vezes, voltou à cena em um contexto distinto, mais propício ao
esclarecimento e à produção e propagação do conhecimento, as revoltas foram
maiores e a utilização dos antigos mecanismos de contenção não funcionaram.
Aliás, muito pelo contrário, acabaram potencializando as manifestações. Quando
o Prefeito da cidade de São Paulo e o Governador do estado de São Paulo, lá de
Paris, não deram atenção ao movimento do Passe Livre, chamando os integrantes
de vândalos e baderneiros, incentivando a repressão policial e, pior ainda,
quando tentaram justificar a ação da polícia, negligenciando a violência
explicitamente cometida, a mobilização, fruto da percepção da violência, tanto
implícita quanto explícita, adquiriu ares de revolta e tomou as ruas,
incendiada pelo poder de comunicação da internet. Milhares de pessoas saíram às
ruas e sentindo o conforto e a força da ação coletiva, adicionada pelo recuo
das autoridades e a sensação do funcionamento das instituições democráticas,
viram a oportunidade de expressar várias de suas angústias, que, no geral, como
dito, estavam ligadas às frustrações decorrentes da estagnação do capitalismo,
gerando os reclamos pelos direitos sociais.
Fato é que esse grito de insatisfação, não
demorará muito, se voltará ao Judiciário e, em especial, àqueles que lidam com
os direitos sociais por excelência: o Direito do Trabalho e o Direito da
Seguridade Social. E esta será, como as demais, uma mobilização fundada na
percepção da violência já sofrida.
É momento, pois, de visualização das
diversas formas de violências que estão subjacentes nos conflitos que são
trazidos ao Judiciário.
Se pensarmos bem, os processos judiciais
refletem uma situação de violência, qual seja, o fato de uma pessoa (ou
empresa, ou o próprio Estado) não ter respeitado um direito alheio – ao menos
na visão do autor. Mas, há se perceber que também há uma violência
institucional, que se perfaz com a demora no andamento do processo e, pior, com
a negação do direito por conta de vícios formais ou má apreciação da prova.
A enorme quantidade de processos que correm
no Judiciário é significativo, ademais, do grande desajuste de uma sociedade
que se acostumou com a violência e que, pela sensação de impunidade, convive
com ela, promiscuamente, na condição de vítima e protagonista.
Para se ter uma noção do tamanho do
problema, refletido em números, no que se refere às questões trabalhistas
especificamente, em cinco anos, de 2006 a 2011, a Justiça do Trabalho, reconhecendo
violações de direitos, devolveu mais de R$56 bilhões aos reclamantes –
trabalhadores em sua grande maioria. “Só em 2011, foram quase R$15 bilhões – ou
90% de todo o repasse feito pelo governo federal no ano passado no Programa
Bolsa Família, que atende a 13 milhões de famílias em todo o país”.
Em 2011, a Justiça do Trabalho recebeu 2,1milhões
de novos processos. São reclamações de todo tipo, que revelam diversas formas
de violência: não pagamento de horas extras, sem formulação de cartões de
ponto; ausência de registro; ausência de pagamento de verbas rescisórias,
sobretudo em terceirizações etc.
As violências podem ser explícitas.
Segundo números extraídos das ações decorrentes de acidentes do trabalho, 2,8
mil trabalhadores morreram em 2011. Mas, torna-se mais grave quando é
desconsiderada, isto é, quando o próprio Direito diz que ela não ocorreu,
negando aos parentes da vítima qualquer reparação, sob o argumento de que a
trabalhador morto na execução do trabalho cometeu um ato inseguro, inclusive
porque, ademais, “viver é muito perigoso”.
Outro dia, assisti a um julgamento no qual
a empresa tentava sustentar sua irresponsabilidade pela morte do trabalhador,
sob o argumento de culpa exclusiva da vítima, afirmando que este se “distraiu”
e que se assim não tivesse agido nada teria sofrido já que a atividade era
plenamente segura e sem riscos. A atividade era a lenhador. O trabalhador
cortava árvores e uma delas caiu em sua cabeça. Ora, mesmo se considerando a
hipótese de que o trabalhador pudesse ter se distraído, a distração não pode
custar a vida e, ademais, é exatamente porque se perdeu a vida, por uma
distração (se é que houve!), que a atividade era de extremo risco, saltando aos
olhos a responsabilidade da empresa pelo ocorrido.
Mas, não basta gerar a violência do
acidente. Ainda tem que se cometer a violência de não assumir, espontaneamente,
a responsabilidade, forçando as vítimas a ingressarem com ações no Judiciário,
penalizando toda a sociedade com o inegável custo da Instituição, e, para
completar, ainda acusar, expressamente, o trabalhador de seu o culpado pelo
fato.
Não falta muito e ainda vão pedir
ressarcimento da vítima do acidente ou de seus sucessores pelos danos causados
às máquinas ou à imagem da empresa em razão da acusação de ser responsável por
um acidente do trabalho com relação ao qual apenas o trabalhador concorreu...
Falando
de direito previdenciário, foram distribuídas, em 2010, às Varas da Justiça
Federal, na cidade de São Paulo, 16.924 ações, e 39.396, nos Juizados Especiais
do Estado. Nestes, nos Juizados Especiais, em matéria previdenciária, foram
distribuídas, em 2010, no Estado de São Paulo, 128.644 ações (4) [1].
Em
todo país, visualizando os dados de 2011 e considerando os processos então em
curso, o INSS apresentava-se como réu em 5,8 milhões de ações, que tiveram
origem, sobretudo, com a regra a alta programada. Segundo estimativa do Sindicato
Nacional dos Aposentados e Pensionistas da Força Sindical (Sindinap) entre
50% e 70% desses processos previdenciários são motivados por problemas com os
auxílios, entre eles o auxílio-doença (5).
Conforme noticia o CNJ (6), os setores públicos da esfera federal e dos
estados foram responsáveis por 39,26% dos processos que chegaram à Justiça de
primeiro grau e aos Juizados Especiais entre janeiro e outubro do ano passado.
O Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) ocupa o primeiro lugar no ranking
das organizações públicas e privadas com mais processos no Judiciário
Trabalhista, Federal e dos estados. O órgão respondeu por 4,38% das ações que
ingressaram nesses três ramos da Justiça nos 10 primeiros meses do ano passado,
sendo que no que se refere, especificamente, à Justiça Federal, esse percentual
é de 34% (de ações no primeiro grau) e 79% (nos juizados especiais).
Lembre-se
que no caso dos direitos previdenciários, o segurado, primeiro, precisa passar
pela via administrativa junto ao órgão previdenciário, que adota uma postura de
resistência à pretensão do segurado, submetendo-o a mais uma violência.
Muitas pessoas devem ter exemplos
concretos do que estou falando, mas o relato de um fato parece conveniente.
Outro dia, no corredor da Faculdade, um aluno pediu-me uma ajuda para o caso
que havia ocorrido com a empregada doméstica que trabalha em sua residência.
Ela tinha ido ao INSS, para requerer um benefício, mas lhe foi negado, sob o
argumento de que não havia cumprido a carência necessária. Ocorre que o próprio
documento expedido pelo INSS, que o aluno trazia em mão, apontava que o tempo
de contribuição reconhecido no documento era superior ao tempo de carência
exigido e quando ele falou isso para o atendente do INSS, pois foi até lá para
uma espécie de assessoria jurídica, recebeu como resposta que nada poderia ser
feito porque não havia como alterar a resposta dada pelo sistema...
O INSS,
além disso, tende a adotar interpretação jurídica menos favorável ao segurado, como
se dá, por exemplo, com a atividade de eletricitário, não reconhecida pelo INSS
como especial, mesmo que a jurisprudência acene em sentido contrário, sendo que
a mesma situação se passa com os níveis de ruído para concessão da
aposentadoria especial, indo o INSS ao ponto de questionar, mediante incidente
junto ao STJ, decisão da Turma Nacional de Uniformização (TNU) dos Juizados
Especiais Federais, que foi contrária ao que acredita ser o seu interesse:
dificultar a vida do segurado.
O INSS também não reconhece a autoridade das
sentenças trabalhistas que declaram que a atividade exercida pelo trabalhador
era insalubre, o que repercute no direito à aposentadoria especial, ou mesmo
que declara a existência do vínculo de emprego, o que tem efeito na contagem do
tempo de contribuição para efeito de aposentadoria, ou mesmo a que fixa nova
base salarial ao trabalhador, decorrente da verificação da existência de
pagamento “por fora” ou em função da integração à base remuneratória de parcelas
não adimplidas, como horas extras, o que implica modificação na base de cálculo
do salário-de-contribuição, para fins de majoração do valor do benefício, mesmo
que da sentença decorra, na lide trabalhista, o pagamento, para o INSS, da
contribuição social correspondente e que isso se faça por intermédio da guia
adequada, com incidência de juros, da multa e da correção monetária, forçando o
trabalhador, que já sofreu as violências da desconsideração, pelo particular,
de seu direito, e da necessidade de buscar o Judiciário trabalhista para
recuperá-los, a novamente ter que se valer da via judicial, desta feita na
Justiça Federal.
Ou seja, mesmo com uma sentença judicial nas
mãos, que reconhece a situação fático-jurídica, o trabalhador se vê diante de nova
violência cometida pelo INSS.
Lembre-se, a propósito, do quanto foi
desesperador para o segurado, a institucionalização da alta programada, que
durou cerca de 06 anos, pela qual o INSS já estipulava, com base no laudo
médico pericial, em que dia o segurado iria recuperar sua saúde, suspendendo,
automaticamente, o pagamento do benefício e fazendo com o que o segurado,
seguindo o percurso já narrado, tivesse que “procurar os seus direitos”.
Negado
administrativamente o benefício, o segurado deve se valer da ação judicial,
que, em geral, para avaliação do pedido formulado, requer a realização de uma
perícia (alguns poucos juízes aceitam os atestados médicos particulares
trazidos pela parte). Mas, nas Varas não há perito oficial e o juiz deve nomear
algum médico, que é um médico da atividade privada, que, por mais que se diga o
contrário, não é da “confiança” do juiz e, em geral, esse perito raciocina com
a lógica privada, favorecendo à avaliação da improcedência do pedido.
Considerando,
ainda, a “natural” demora da prestação jurisdicional e a aversão à concessão de
tutela antecipada em matéria previdenciária, o resultado é que a situação
processual do segurado, no geral, não é nenhum pouco confortável e acaba se
constituindo em mais uma violência.
O INSS, pautado pela necessidade de
informatização, está se burocratizando ainda mais por meio da racionalização
econômica e, assim, tem entendido que precisa dar lucro e para tanto a não
concessão de benefícios transforma-se em um objetivo.
E o mesmo, cabe frisar, está se passando
com o Judiciário na implementação das metas decorrentes da gestão estratégica.
Nesta lógica, quanto menos durar o processo mais eficiente o Judiciário será,
pouco importando se para isso tenha que se sacrificar o direito. Como diz um amigo
advogado, é possível perceber nos últimos tempos a difusão da teoria da
improcedência, pois um processo sem condenação não gera atos em execução. Foi assim,
ademais, que, na Justiça do Trabalho, na fase de execução, a prescrição
intercorrente foi desenterrada...
Essa situação revela-se ainda mais grave
quando percebemos que no caso do conflito previdenciário, no pólo passivo, ou
seja, o pretenso agressor é o INSS, isto é, o Estado, gerando uma contradição
insuportável, sobretudo no presente momento, pois o Estado reclamado nas ruas é
a quem cumpre efetivar os direitos sociais.
Dia desses recebemos um professor alemão
na Faculdade de Direito da USP, Wolfgang Däubler, e quando, após sua palestra,
lhe indaguei como eles resolviam os problemas do precatório, ele não entendeu a
pergunta e tive que ser auxiliado, na formulação da questão, pelas demais
pessoas que estavam presentes ao evento. Quando ele entendeu, ficou horrorizado
e respondeu com uma indagação exclamativa: “Mas, como assim: o Estado não
cumpre o direito que ele próprio cria? Na Alemanha isso não acontece.”
Ficamos todos quietos, para não aprofundar
a vergonha, vez que se levássemos a questão adiante teríamos que lhe dizer que
por aqui não só o Estado assim age como os homens do direito acham normal que
isso ocorre e mesmo as estruturas jurídicas, da forma como são aplicadas,
servem como uma espécie de incentivo institucionalizado para que o Estado não
cumpra o direito em detrimento do cidadão, conferindo-lhe “prerrogativas”
processuais: juros reduzidos, prazos em dobro, isenção de custas e o próprio
precatório, que, em verdade, serve de freio à obrigação do pagamento.
De fato, é inconcebível que os
administradores da coisa pública não tenham compromisso com os direitos sociais
e transformem o Estado em um dos maiores, senão o maior, litigante da realidade
jurídica nacional.
É preciso, portanto, reconhecer que existe
um estágio de violência institucionalizada, representada pelo desrespeito aos
direitos sociais, da qual participa o próprio Estado como agente, tendo como
vítima principalmente o cidadão mais pobre, que, neste sentido, é tratado como
um inimigo, o que é inconcebível, ainda mais dentro da lógica jurídico-política
de um Estado Social.
Vale reparar que, de forma totalmente
incoerente, essa preocupação econômica, que justifica as supressões de
direitos, não se vê, na mesma intensidade, com relação à arrecadação, o que
representa mais uma violência aos titulares de direitos sociais, pois a
efetividade destes direitos, notadamente dos previdenciários, dependem de
custeio.
Falando da realidade da Justiça do
Trabalho, que conheço melhor, são freqüentes os acordos, nos quais não há
reconhecimento de vínculo empregatício, mesmo quando não se tem dúvida nenhuma
que este existiu, e discriminação de parcelas que compõem o acordo como sendo,
unicamente, indenizatórias, tudo com a finalidade de evitar a obrigação quanto
aos recolhimentos previdenciários e tributário. Essa tem sido uma grande violência
que se comete com o patrimônio do trabalhador, representando, ainda, um
incentivo à violação de direitos e uma espécie de punição aos empregadores que
respeitam a ordem jurídica, vez que representa uma vantagem econômica indevida
aos concorrentes destes.
É interessante, ademais, ver até a total
incoerência das atitudes de um empregador que, não tendo cumprido as obrigações
decorrentes do direito social, chega a sugerir, em audiência, como estratégia
para concluir o acordo, que o reclamante receba seguro-desemprego, mesmo que não
tenha havido o recolhimento do respectivo custeio, qual seja, o depósito do
FGTS. E o pior é que o juiz aceita, expedindo Alvará para o pagamento do
benefício. O Estado Social é violentado pelo próprio Estado...
Para se ter uma ideia até onde a coisa
vai, em 2011 a
Procuradoria Geral da União encaminhou à Corregedoria do Tribunal um Pedido de
Providências, no qual reclamava do fato de eu estar intimando a Procuradoria
local do INSS para se manifestar em processos cujos acordos não ultrapassavam a
R$10.000,00, apoiando-se nos termos uma Portaria, a de n. 176, de 19/02/2010,
do Ministério da Fazenda, segundo a qual o INSS não deve verificar a
regularidade dos recolhimentos previdenciários em processos finalizados com
acordos até o valor indicado (atualmente, pela Portaria n. 435, de 08/09/11, do
Ministério da Fazenda, o patamar da não manifestação aumentou, passando para as
situações em que o valor da contribuição, ela própria, for igual ou inferior a
R$10.000,00). Não obstante, pareceu-me – e ainda me parece – essencial que o
INSS estivesse atento à existência de processos repetitivos de algumas
empresas, com valores inferiores ao mínimo fixado, nos quais se podia constatar
uma prática de sonegação que se perfaz pela discriminação das parcelas do
acordo como sendo unicamente indenizatórias. Aliás, dado o teor da referida
Portaria (piorado na Portaria posterior), muitos juízes, sem a obrigatoriedade
de manifestação do INSS em processos cujas contribuições sociais devidas estão
no parâmetro referido, sequer têm executado as contribuições sociais, o que
lhes permite encerrar mais rapidamente os processos e melhor o dado estatístico
referente ao tempo de tramitação dos processos, até porque o que sai nos relatórios
do Judiciário, que se tornam públicos, é a comparação entre as Varas, apontando
quais foram mais céleres e quais foram mais lentas...
A ausência de uma consciência em torno de
um compromisso social é enorme. Veja, por exemplo, a que fins o dinheiro do
FGTS tem servido. Em Jundiaí/SP, vi, outro dia, uma grande placa indicando que
a obra de ampliação de uma avenida, no centro da cidade (para alimentar a
lógica do automóvel), estava sendo financiada pelo FGTS. Anunciou-se, meses
depois da reforma, que na tal avenida seria construído um shoppping, que já
está pronto...
Tratando da violência do Estado, não posso,
por fim, deixar de falar da terceirização no setor público, que é uma afronta à
Constituição, desprezando a exigência do concurso público, favorecendo ao
desvio do dinheiro público e provocando uma segregação odiosa no ambiente de
trabalho dos entes administrativos. Violência está que só tem feito aumentar
nos últimos anos, tanto que agora o ente público sequer quer ser responsável
subsidiário pelas agressões de direitos sofridas por essas pessoas dentro de
seus estabelecimentos e na execução dos serviços que o Estado é obrigado a
prestar aos cidadãos.
5. O Momento: grito e efeito
Como o povo nas ruas pede eficiência do
Estado Social no que se refere à efetividade dos direitos sociais, é momento,
primeiro, de compreender que as estruturas jurídicas, no modo como têm
funcionado, são parte do problema. E, segundo, até como consequência, é crucial
entender o papel que cumpre aos homens do Direito neste contexto, dando
respostas concretas aos anseios da população.
Não cabe mais negar benefícios por rigor
excessivo nas provas e para a concessão de tutelas antecipadas. É preciso
compreender, também, que há uma doença social, fruto da grande desigualdade
vivida, que muitas vezes reflete de forma não muito precisa sobre o
trabalhador, como, ademais, se demonstrou nas mobilizações, onde o corpo da
sociedade não sabia expressar precisamente o local da dor, mas que doía, doía,
e ainda dói. Conforme enuncia recente
decisão do STJ, a doença do ser humano é antes de tudo um “fenômeno social”.
Do ponto de vista específico dos acidentes
do trabalho, para fins de reparação pela via da responsabilidade civil, é
preciso afastar, com urgência, a violência da consideração teórica da
responsabilidade subjetiva, que atrai, inclusive, uma violência ainda maior que
é a avaliação da culpa da vítima, vista sob os pontos de vista da negligência,
imperícia ou imprudência. Ora, como dizia Joaquim Pimenta, analisado a questão
sob a égide da lei de 1919:
Nos acidentes de trabalho não se leva mais em conta a
imprudência ou a negligência da vítima; uma e outra resultam de fatores
psicológicos que as tornam frequentes e inevitáveis, como a fadiga, o
automatismo psíquico pela continuidade de execução do serviço, até mesmo a
capacidade técnica do trabalhador, que o familiariza e o faz cada vez mais
desatento com o perigo.(7)
É extremante agressivo, em audiência,
diante de um trabalhador que perdeu parte do braço em uma prensa, investigar o
que ele fez de errado para que o fato ocorresse, como forma, inclusive, de
excluir qualquer responsabilidade da empresa e concluir que ele foi o único
responsável pela perda sofrida.
Num contexto mais amplo, cumpre eliminar
as vantagens econômicas de quem se vale da prática de agressões reincidentes
aos direitos sociais, coibindo-se, sobretudo, as táticas de não recolhimento
das contribuições sociais. Além disso, é essencial que se permita aos
trabalhadores o exercício pleno do direito de greve, livre da opressão
conservadora do interdito proibitório, que não tem qualquer relação com o
antagonismo entre trabalho e capital. Sobretudo, é essencial não permitir a
sonegação das contribuições sociais, que integram o patrimônio da classe
trabalhadora, e das obrigações tributárias, vez que ambas compõem a fonte
necessária para a efetivação dos direitos sociais.
Tudo isso é importante, mas, talvez, o efeito
mais relevante da situação vivida no país para o Direito seja o da necessidade
de assumir que se atingiu, enfim, o limiar da superação do Direito Liberal,
passando-se à consagração e à efetivação do Direito Social. A ordem jurídica
brasileira – e internacional – já estava, é verdade, pautada pela lógica do
Direito Social, mas as mudanças necessárias neste momento são: o reconhecimento
expresso disso e a compreensão do que representa uma ordem jurídica social.
O fato é que visualizar o Direito dentro da
lógica social é muito diverso de entender o Direito no contexto de uma
concepção liberal. A mudança se dá, sobretudo, no método que fornece a
racionalidade para a compreensão dos problemas sociais, refletindo na
formulação das estruturas do Direito e na forma da aplicação de suas normas.
Os postulados básicos de um direito na ordem
liberal (8) [2]
são: a) a preocupação com o próximo decorre de um dever moral: tornar esse
dever em uma obrigação jurídica elimina a moral que deve existir como essência
da coesão social; b) todo direito obrigacional emana de um contrato: a
sociedade não deve obrigação a seus membros; só se reclama um direito em face
de outro com quem se vincule pela via de um contrato; c) a desigualdade social
é conseqüência da economia (e a igualdade, também): quando o direito procura
diminuir a desigualdade, acaba acirrando a guerra entre ricos e pobres (ricos,
obrigados à benevolência, buscam eliminar o peso do custo de tal obrigação;
pobres, com direitos, tornam-se violentos); d) a fraternidade é um conceito
vago que não pode ser definido em termos obrigacionais; e) o direito só tem
sentido para constituir a liberdade nas relações intersubjetivas, pressupondo a
igualdade (a ordem jurídica tem a função de impedir os obstáculos à liberdade);
f) o direito não pode obrigar alguém a fazer o bem a outra pessoa; g) “em uma
sociedade constituída segundo o princípio da liberdade, a pobreza não fornece
direitos, ela confere deveres” (9) [3].
O Direito Social, que resulta da busca de uma
nova racionalidade para os problemas do mundo, verificados no período de
formação do capitalismo, enquanto regido pelo Direito Liberal e mais
recentemente pela influência neoliberal, consagra os objetivos da justiça
social, da efetivação da democracia, e da internacionalização das normas, que
são vistos como condições para a paz mundial. No Direito Social impera a
concepção de um regramento que tem por conseqüência a melhoria da posição
econômica e social de todos e a preservação da dignidade do sentido da elevação
da condição humana.
A racionalidade imposta pelo Direito Social
permite visualizar as angústias, as dificuldades e as restrições que atingem
todas as pessoas que integram a sociedade, sobretudo, as que são mais
vulneráveis economicamente, e assumir uma postura para efetivar uma defesa
concreta dos valores humanos.
O Direito Social, que tem por base a visualização
do outro, buscando pelo espírito de solidariedade, a elevação da condição
humana, integrando o homem, sem distinções, ao todo social, está mais afeito
aos dilemas postos pela efetivação dos denominados direitos fundamentais (vida,
saúde, trabalho, lazer, intimidade, privacidade, liberdade de expressão, de
crença religiosa etc.), que o Direito Liberal, voltado para a individualidade
egoísta desvinculada de qualquer interesse social.
Não há como não extrair da raiz do Direito Social, portanto, a
compreensão de que o seu significado concreto está vinculado ao propósito de
construir, continuamente, de forma evolutiva, a justiça social, para que a
atração do sentido do justo para o direito não represente, meramente, a
legitimação de situações injustas.
O Direito Social estabelece um limite ao
interesse econômico, tomando como postulado a necessária proteção do ser
humano. Não se trata de uma proteção submetida a uma condição imposta pelo
modelo econômico. Trata-se de uma proteção que expõe o sistema econômico a um
teste de validade.
É neste sentido, aliás, que o Direito Social
depende da vivência concreta da democracia política para que as pessoas
excluídas do sistema econômico, ou incluídas numa lógica de exploração, possam
se organizar para questionar, criticamente, a realidade, expondo publicamente
os seus problemas, e reivindicando as soluções necessárias. É assim, por
conseguinte, que os movimentos sociais são acolhidos pelo Direito de forma a
tornar juridicamente válida e, portanto, legítima, a sua manifestação e o seu
inconformismo diante da injustiça identificada, sendo, portanto, um método apenas
do Direito Liberal, já superado, a “criminalização” dos movimentos sociais.
O Direito Social, de forma muito clara, confere
valor jurídico ao “grito dos excluídos” ou para utilizar expressão de nosso
mestre, Anníbal Fernandes, o Direito Social apresenta-se como o “guia dos
aflitos”.
Essa mudança metodológica no Direito é primordial
até para lhe preservar a legitimidade, afinal, como dito, a partir da
verificação do conteúdo das manifestações de junho, os titulares de direitos
sociais já possuem a percepção das violências que vêm sofrendo ao longo dos
anos e querem respostas efetivas. Trazem como lema, inclusive, a fala
esclarecedora de Bertold Brecht: "Dizem violentas as águas dos rios que
tudo arrastam, mas não dizem violentas as margens que as oprimem."
Carlos Drummond de Andrade, em momento marcado
pelas guerras mundiais, reconhecendo sua limitação, mas, ao mesmo tempo,
compreendendo o seu papel como escritor, decretou: “Tenho apenas duas mãos e o
sentimento do mundo”. O jurista, tendo ciência da história que deu ensejo ao
Direito Social e verificando a realidade que bate à porta, talvez tenha, enfim,
que assumir: “tenho em minhas mãos as armas contra o sofrimento do mundo”.
As pessoas estão nas ruas – sabe-se lá por mais
quanto tempo e até que limite –, expressando sua reivindicação por direitos
sociais, como forma de tentar uma saída para uma sociedade à beira do caos. O
que mais será preciso acontecer, para que os homens do Direito as escutem?
A resposta, meu amigo, como diria Bob Dylan “está
soprando no vento”...
São Paulo, 26 de junho de 2013.
CITAÇÕES:
(2)- Apud Cesarino Jr, Direito Social, 1970, p. 88.
(3)- Direito Social, 1970, p. 88.
(4)- Fonte: http://www.trf3.jus.br/trf3r/index.php?id=1107.
(5)-
http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1109360&tit=INSS-e-reu-em-58-milhoes-de-acoes
(6)-http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21877:orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica
(7)-PIMENTA, Joaquim. Sociologia jurídica do trabalho
(estudos). Coleção de Direito do Trabalho, organizada por Dorval de Lacerda e
Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Max Limonad, 1944, p. 158.
(8)- EWALD, François. Histoire de l’Etat Providence: les
origines de la solidarité. Paris: Grasset, 1996, pp. 23 e ss.
(9)- EWALD, François. Ob. cit., p. 35.
(*) Jorge Souto Maior é Juiz do Trabalho e Professor livre-docente da Faculdade de
Direito USP, texto extraído da Conferência de encerramento do 32º. Congresso
Brasileiro de Direito Previdenciário, promovido pela LTr, realizado em São
Paulo, nos dias 24 a 26 de junho/2013.
[2]. EWALD, François. Histoire de l’Etat Providence: les
origines de la solidarité. Paris: Grasset, 1996, pp. 23 e ss.
[3]. EWALD, François. Ob. cit., p. 35.
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