(*) Jorge Luiz Souto Maior
O que o suposto assaltante amarrado no poste, a âncora de jornal, os operários mortos em obras da copa, o jogador de futebol enxotado para a China, os donos do esporte, o manifestante atingido por policial militar, o policial militar, o cinegrafista morto por rojão atirado por um manifestante, o manifestante que acendeu o rojão, o prefeito de São Paulo, o “rolezeiro”, o comerciante, o advogado e a professora de letras, que estão em maior evidência nos noticiários nos últimos dias, devido a atos, fatos ou declarações, na qualidade de algozes ou vítimas, têm em comum? São todos seres humanos. E o que todos nós, que passamos os últimos dias discutindo os fatos que envolveram essas pessoas, temos em comum com elas? Também somos seres humanos.
Então, eles não são os outros e
só! Eles são, em pequena escala, o que são os seres humanos no conjunto. Em
outras palavras, são o “produto” do que conseguimos acumular de racionalidade e
de conhecimento ao longo da nossa existência, vista a humanidade como uma
entidade histórica, na busca da construção do significado da condição humana.
São, igualmente, o resultado do nível de coesão social que conseguimos atingir
ao longo desses mesmos anos.
O trágico é verificar que todos
esses fatos, vistos de forma interligada, conferem a evidência de que
vivenciamos um grande déficit na formulação de compreensões e na proposição de
um efetivo projeto de sociedade. E, em um barco à deriva, a irracionalidade
provoca a barbárie, filha da intolerância.
É urgente compreender que
passamos por um momento bastante delicado, no qual a falta de vontade de buscar
o conhecimento por intermédio de interlocuções descomprometidas está nos
conduzindo aos mesmos dilemas históricos que antecederam o desmantelamento das
bases democráticas e “legitimaram” a instauração de governos autoritários,
ditatoriais, cujo papel foi “restabelecer a ordem” mediante a imposição do
silêncio e do medo. Outro dia, um colega falou-me orgulhoso que havia mandado
riscar dos autos uma manifestação do advogado que criticava a postura
insensível dos juízes. Restabeleceu-se a ordem. Fez-se o silêncio. Mas, os
juízes são insensíveis, ou não? A pergunta ficou sem resposta...
Em uma passagem do belíssimo
filme, As Neves do Quilimanjaro, a protagonista diz que não lhe importa saber qual
e a intensidade da pena que será dada ao rapaz que lhe atacou. O que ela quer é
compreender o fato ocorrido.
O filme tem o grande poder de nos
fazer mais humanos e atinge esse propósito quando nos impulsiona a buscar o
conhecimento, despindo-nos de verdades pré-concebidas e conceitos
pré-estabelecidos, além de nos integrar ao contexto da trama, não nos privando,
portanto, de uma inserção no próprio problema. Fato é que o problema não se
resolve, como no exemplo dito, riscando dos autos as críticas feitas ou
simplesmente desconsiderando as falas que eventualmente agridem a nossa
consciência.
Mas, ao ouvir pessoas que tenho
como paradigmas de seres humanos sugerirem que o problema da sociedade
brasileira são os Direitos Humanos, fico com a impressão de que atingimos um
ponto de urgência, afinal se somos seres humanos não há lógica que sejamos
contra os nossos direitos, que possuem razões históricas largamente conhecidas,
bastando lembrar, por exemplo, das atrocidades das guerras mundiais. Parece-me,
assim, extremamente importante que paremos um pouco; que descansemos a mente e
o corpo; que nos disponhamos a um diálogo honesto e aberto, que tenha por
objetivo a busca de um conhecimento cujo fim seja a elevação da condição humana
e a efetivação de uma sociedade mais justa e igualitária.
Há de se acreditar que a
racionalidade humana possa compreender a gravidade do momento e o quanto nos é
caro preservar o regime democrático, a alteridade, a solidariedade e a
tolerância, respeitando a quem se dispõe a lutar pela efetivação de direitos
que estão consagrados interna e internacionalmente.
Antes de tudo, é a nossa
capacidade de sermos humanos que está em jogo. E que ninguém se iluda: não há
capitalismo ou socialismo, por mais bem estruturados que estejam em lindas
teorias, que sobreviva sem seres humanos racionais e que se completem no outro,
que é um ser tão imperfeito como cada um de nós.
(*) Jorge Luiz Souto Maior é Professor
livre-docente da Faculdade de Direito da USP. Membro da Associação Juízes para
a Democracia – AJD.
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