13 de junho de 2014,
08:00h
Foto:
Edward
Snowden
Entrevista concedida pelo ex-agente da NSA Edward
Snowden , que dilvulgou documentos sobre a espionagem feita
pelo governo americano, à jornalista
Sonia Bridi , para o programa Milênio , da GloboNews. O Milênio é um programa de
entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às
23h30 de segunda-feira com repetições às terças-feiras (11h30 e 17h30),
quartas-feiras (5h30), quintas-feiras (6h30 e 19h30) e domingos (7h05).
O reencontro, um ano depois de
chacoalharem o planeta com revelações que expuseram os maiores segredos do
sistema de espionagem dos americanos e seus aliados. Desta vez num quarto de
hotel em Moscou a milhares de quilômetros de Hong Kong, onde o ex agente na NSA
(Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos), Edward Snowden, entregou
ainda não se sabe quantos documentos ultra secretos para o jornalista Glenn
Greenwald, americano radicado no Brasil e para documentarista, também americana
Laura Poitras. Os
documentos publicados principalmente pelo jornal inglês The Guardian ,
pela TV Globo e pelo americano The Washington Post,
revelaram que os americanos monitoram bilhões de pessoas no planeta,
registrando a chamada metadata. Quem falou com quem? Quando? Por quanto tempo? Também
registra todo o conteúdo de comunicações por e-mail, telefone ou redes sociais
de vários países. Espionam empresas, a chinesa Huawei de tecnologia de
comunicação, a Gazprom estatal russa de gás e petróleo e a brasileira
Petrobras. Até o Ministério das Minas e de Energia do Brasil foi raqueado com a
ajuda da espionagem do Canadá. Chefes de estado tem suas conversas telefônicas
e até mensagens de texto interceptadas. A presidente Dilma Rousseff foi um dos
alvos. A chanceler alemã Angela Merkel, também descobriu que suas ligações eram
ouvidas, reagiu forte, o assunto foi parar na ONU, embaraçou autoridades
americanas, pegas no flagra espionando aliados. Snowden que de Hong Kong
tentava fugir para a América do Sul, foi parado no meio do caminho, o governo
americano revogou o seu passaporte, Snowden ficou quase 3 meses no limbo, na
área de trânsito do aeroporto internacional de Moscou, sem poder entrar no
país, nem sair. Em agosto do ano passado, conseguiu asilo na Rússia, Edward
Snowden se apresentou como responsável pelo vazamento, logo dos primeiros
documentos que foram publicados, segundo ele para evitar que inocentes fossem
perseguidos, mais desde então se afastou dos holofotes. Na semana passada, após
indicar em que hotel deveríamos nos hospedar em Moscou, ele apareceu a nossa
porta, pronto para falar.
Sonia Bridi — Você não
concedeu nenhuma entrevista durante um ano, com as exceções do Washington Post ,
uma entrevista por e-mail conosco. Por que decidiu dar esta entrevista agora?
Edward Snowden — Para
mim, quando a notícia foi revelada, eu não queria ser uma distração, não queria
que as pessoas pensassem em mim em vez de pensarem nas revelações. O problema
foi que a imprensa de vários países ficou tão fascinada pelas pessoas
envolvidas que não me deixava em paz. Continuava falando de mim, e eu me
afastei, mas não funcionou. No entanto, o mais impressionante foi que, ao longo
do último ano, apesar da distração da imprensa, que me perseguia, o debate
continuou crescendo. Por causa disso, estou confiante de que, hoje, quase um
ano depois das revelações iniciais, posso falar sobre como me sinto que não vai
atrapalhar o debate, não é mais uma distração. O debate se estabeleceu. Então
acho que é seguro falar dos meus sentimentos.
Sonia Bridi — Quais são as suas influências?
Edward Snowden — Tive
tantas influências na vida que não gosto de destacar uma. Se eu for escolher
uma só, tirando os livros, as influências acadêmicas, eu diria que é a
internet. Eu sou uma cria da internet.
Sonia Bridi — E quanto
a pessoas? Parentes, amigos que o influenciaram?
Edward Snowden — Acho
que todo mundo. Qualquer pessoa com laços familiares fortes não tem como fugir
da influência da família. Não gosto de falar da minha família porque é um
assunto privado. Ela não pediu para fazer parte disso e não quero arrastá-la
para a minha história. Mas fui inspirado pela integridade das pessoas à minha
volta. Pessoas que enfrentaram escolhas difíceis e desagradáveis, mas, de
alguma forma, encontraram força para fazer o correto.
Sonia Bridi — Como
aprendeu sobre computadores?
Edward Snowden — Foi
muito natural, orgânico. Fui autodidata. Eu era fascinado pela tecnologia.
Quando meu pai levou um computador para casa pela 1° vez ou quando ele me
levava ao escritório dele e eu usava o computador lá, eu queria entendê-lo, até
que me tornei aquela criança que vive desmontando coisas, como a torradeira. E
depois não conseguia remontar, mas eu tive a sorte de ter uma família
inteligente o bastante para decidir que, se eu fosse desmontar alguma coisa,
devia ser algo que eu gostasse de usar, não a torradeira. Então, quando
desmontasse meu videogame, ou qualquer coisa que interesse uma criança, eu só
poderia usá-lo se descobrisse como remontá-lo. E isso me ajudou muito, me ajudou
a começar a compreender as coisas de uma forma sistemática.
Sonia Bridi — Depois do
11 de setembro, você decidiu entrar para as Forças Armadas e ir para o Iraque.
O que aconteceu?
Edward Snowden — Eu
não cheguei a ir ao Iraque. Eu me alistei porque acreditava no que o governo
dizia, que era que o governo do Iraque estava criando armas de destruição em
massa e queria aterrorizar o mundo com armas químicas, nucleares e biológicas.
E que o líder do Iraque era um ditador e o povo de lá estava desesperado por
liberdade. Eu achava que era uma coisa nobre tentar ajudar a libertar aquele
povo oprimido e fazer o bem para o mundo. Quando cheguei no Exército, adquiri
uma consciência política interessante, porque vi que muita gente lá não estava
interessada em fazer o bem para o mundo, eles não estavam interessados em
contribuir. Ou queriam os benefícios do serviço ou queriam corresponder a uma
certa imagem de macho. O que posso dizer é que havia muitas pessoas legais no
Exército que eu respeitava, e elas eram mais aptas fisicamente do que eu, que
sofri uma lesão e não completei o treinamento.
Sonia Bridi — E como
foi que você começou a trabalhar para a comunidade de espionagem?
Edward Snowden — Foi
logo depois que eu deixei o Exército. Eu me candidatei a um emprego na
comunidade nacional de segurança como técnico em segurança. Tive a vida toda
investigada, e depois comecei a usar minha capacidade técnica num nível muito
alto. Isso sem diploma e sem nunca ter desenvolvido esse tipo de atividade. E
foi muito valioso, porque me deu a chance de conhecer o mundo e contribuir em
alto nível.
Sonia Bridi — Em que
ponto você começou a se sentir pouco à vontade com as coisas que via no
trabalho?
Edward Snowden — Foi
um despertar gradual, porque eu sempre acreditei piamente no valor e na
decência dos Estados Unidos e em suas tradições: nossa constituição, nossa
declaração de direitos, a proteção à liberdade de expressão, a liberdade de
associação, o direito a um julgamento justo, a um processo legal, a se defender
das acusações, à autodefesa, em todas essas coisas que existem há centenas de
anos. Foi muito difícil para mim aceitar que havia autoridades no governo que
não estavam interessadas em nossas tradições e nossos valores, que só estavam
interessadas em poder. Então foram muitos anos de exposição a muitas coisas
para que eu me perguntasse: “Estamos mesmo, enquanto governo, tentando fazer as
coisas da forma menos invasiva e mais responsável?” Não é que estivessem
tentando fazer maldades, não há um império do mal nos Estados Unidos. Essas
autoridades estão tão blindadas do público por níveis de acesso, sigilo e por
não precisarem prestar contas que podem cometer um erro ou algum crime e nunca
ter que responder por isso. Ou seja, elas podem agir sem pensar. Quando você é
a organização mais poderosa do mundo, isso é muito perigoso. Mas uma decisão
ruim da autoridade mais poderosa do mundo pode afetar milhões de vidas. Até
bilhões. Por isso é preciso haver controles rigorosos e um alto padrão de
responsabilidade entre as autoridades do governo.
Sonia Bridi — Em que
altura decidiu reunir os documentos e divulgá-los?
Edward Snowden — A
gota d’água, para mim, foi quando vi James Clapper, diante do Congresso
americano — o diretor da Inteligência Nacional, uma espécie de
comandante geral dos espiões dos Estados Unidos, o meu chefe, por assim
dizer —, levantar a mão e jurar dizer a verdade ao Congresso, na TV,
diante do povo americano, e perguntaram a ele: “Os Estados Unidos reuniram
qualquer tipo de registros de centenas de milhões de americanos?” E ele disse
que não. Mas eu sabia que era mentira, porque eu tinha acesso aos sistemas que
faziam exatamente isso. O mais incrível foi que o congressista que fez a
pergunta também sabia que era mentira, e todos os membros da comissão que o estava
interrogando também sabiam que era mentira. Mas não corrigiram o registro nem
pediram que ele retificasse sua declaração. Só deixaram passar. E esse é o
ponto central. Se as autoridades mais graduadas não têm que se justificar, se
podem mentir e abusar de seu poder sem enfrentar consequências, isso incentiva
esse tipo de comportamento e temos um governo cada vez mais perigoso, não só
para os indivíduos e para a privacidade, mas para o conceito de liberdade.
Quando pensamos nas revelações do ano passado, não é uma questão de
privacidade, é uma questão de liberdade. Até que ponto os indivíduos devem ter
liberdade? Até que ponto podemos ligar para amigos, conversar com nossa
namorada ou namorado, andar de ônibus, comprar um livro, ir à biblioteca,
assistir a um filme, sem que isso seja gravado? Eu acho que — e
tradicionalmente era o que fazíamos —, se o governo vai se intrometer na
vida privada de alguém, ele tem de ter algum motivo. Tem de provar no tribunal
que tal pessoa pode estar envolvida em atividades criminosas. Se vigiarmos todo
mundo o tempo todo, todo homem, mulher e criança do nascimento à morte, e
criarmos registros de suas atividades, eles são livres? Isso afeta o
comportamento humano, pois quando sabemos que somos vigiados mudamos nosso
comportamento.
Sonia
Bridi — Brasileiros são reconhecidos no mundo inteiro como
aficionados de videogames, o que poucos sabem é que jogando on-line podem ser
espionados. Até os videogames são espionados pela NSA?
Edward Snowden — Sim.
Aliás, os videogames são especificamente espionados pela NSA, pela agência de
Inteligência britânica e por outras agências de Inteligência do mundo. Nos
Estados Unidos, eles alegam que videogames seriam usados como um método de
comunicação por terroristas ou espiões, mas é uma loucura, porque videogames
são métodos inseguros de comunicação. Não há criptografia, não há proteção. E
as empresas de videogames gravam as conversas para ver se as pessoas estão
difamando alguém ou cometendo alguma fraude. Então por que terroristas ou espiões
os usariam? Não faz sentido. Mas, sim, a NSA continua monitorando. Há matérias
nos jornais sobre isso.
Sonia
Bridi — Alguns dizem que reunir metadados não é tão grave porque eles
não assistem ao conteúdo, o que agora sabemos não ser verdade, que parte do conteúdo
é coletado e armazenado. Por que é tão importante coletar metadados? O que há
de tão perigoso neles?
Edward Snowden — O
problema é que mandar um detetive seguir alguém é custoso, invasivo, você viola
a sensação de privacidade da pessoa. Então, por ser muito caro, só é usado
quando é absolutamente necessário, quando o governo tem um bom motivo para
fazer isso. Com os metadados, fica praticamente de graça. O custo é baixíssimo.
Então o que eles fazem? O monitoramento de metadados acontece em escala maciça
e, hoje, monitoramos metadados em todo o mundo. É uma forma de vigilância
universal. É como se o governo dos EUA e outras agências de inteligência
contratassem detetives para seguirem todos nós, todos os cidadãos, em todas as
nossas atividades, para registrar essas atividades e guardá-las. Só para o caso
de quererem saber o que alguém fez certo dia.
Sonia
Bridi — Uma coisa que as pessoas perguntam muito é como um rapaz de
29 anos teve acesso a todos aqueles documentos confidenciais? Como teve acesso a
eles?
Edward Snowden — Uma
informação errada foi divulgada pela imprensa americana e depois reproduzida
pela imprensa internacional, a de que eu era um funcionário de baixo escalão e
que não entendia aquele material. Na verdade eu operava num nível muito alto,
eu redigia diretrizes em nome do governo americano, participei de reuniões com
altos funcionários técnicos na NSA e na CIA. Conheci o chefe de tecnologia da
CIA e o meu papel em algumas dessas funções era: quando a CIA, por exemplo,
tinha um problema técnico que não conseguia resolver, precisava de
especialistas técnicos de indústrias privadas com vasta experiência para
tentarem resolver o problema, para acharem uma solução. Esse era o meu
trabalho. Eu era um administrador de sistemas, ou um superusuário, o que
significa que eu tinha mais acesso do que quase todos os outros funcionários de
Inteligência, porque, quando o diretor da NSA ou da CIA quer ver um documento
ou entender um programa, precisa pedir que alguém explique, que resuma. Como
administrador de sistemas, você é a pessoa que pode ver tudo isso, porque é
você que controla todas as informações.
Sonia
Bridi — Por que você não divulgou todos os documentos num site, por
exemplo, ou entregou ao WikiLeaks, que teria publicado todos eles?
Edward Snowden — Em
primeiro lugar, acho que o WikiLeaks é muito importante e tem um papel na
imprensa. Eles são muito corajosos e correm riscos dos quais outras
organizações fogem. Ao mesmo tempo, a minha intenção era divulgar os documentos
à minha maneira. Eu poderia ter publicado todo o material on-line, jogado-o na
rede para qualquer um consultar. Mas não fiz isso, porque achei que a forma de
minimizar minhas opiniões políticas, meu próprio julgamento e de manter o
interesse público em primeiro lugar seria me associando a jornalistas
responsáveis, grandes instituições e grandes jornais confiáveis. Eu queria
submeter o material a um sistema de inspeção de organizações como The Guardian ,
The
Washington Post , The New York Times ,
Globo ,
Der
Spiegel , todas essas. Seus editores poderiam dizer:
“Achamos melhor minimizar isso, porque pode representar um risco para alguém.”
E depois poderiam perguntar ao governo: “Isso é perigoso? Tem alguma coisa que
ignoramos nisso? Devemos evitar ou remover algo por segurança?” Fazendo assim,
eu me tirava da equação, eu não estaria tomando decisões por um país, por um
governo nem nada assim. E assim deixaria a imprensa livre fazer o que faz
melhor: ajudar os cidadãos a se tornarem eleitores informados e refletirem
sobre o tipo de sociedade que querem.
Sonia
Bridi — Você leu todos aqueles documentos? Sabe exatamente o que há
em cada um deles?
Edward Snowden — Sim.
Acho que Glenn mencionou numa entrevista que todos os documentos que ele
recebeu estavam organizados e tinham sido classificados. Sim, eu avaliei todos
os documentos que foram entregues aos jornalistas de uma forma ou de outra.
Sonia
Bridi — Não passou uma semana no último ano sem um novo documento,
uma nova revelação sobre as atividades da NSA e dos “Five Eyes”. Ainda vem mais
por ai?
Edward Snowden — Deixo
esta para o jornalista.
Glenn Greenwald — Sim,
com certeza ainda tem muita coisa. Esse sistema é incrivelmente vasto.
Sonia
Bridi — Me perdoe pelo português. Ainda tem mais revelações sobre o
Brasil?
Glenn Greenwald — Com
certeza, tem mais documentos que vão mostrar aos brasileiros e ao mundo que os
Estados Unidos está fazendo diante do Brasil e também a Inglaterra e outros
países também.
Sonia
Bridi — Acha que chegará o dia em que poderá voltar aos Estados
Unidos sem ser processado por traição, que é o que enfrentaria hoje se
voltasse?
Edward Snowden — Eu
adoraria pensar que sim, mas não posso responder a essa pergunta. Depende do
meu governo. Se eu pudesse escolher qualquer lugar do mundo para estar, eu
estaria em casa, nos EUA, com a minha família, trabalhando para o meu governo e
fazendo o possível para continuar contribuindo para a sociedade que tanto amo.
Mas a realidade é que há muita resistência em algumas áreas do governo dos EUA
e em algumas agências do governo. Se uma autoridade passa vergonha quando as
diretrizes que ela apoiou e tentava esconder do público são reveladas, ela pode
usar seu poder para complicar muito a vida da pessoa. Jornalistas já
perguntaram várias vezes ao governo: “Alguém foi ferido? Alguém foi morto?
Vidas foram perdidas? Essas revelações causaram algum risco?” E ele nunca
mostrou um único exemplo, apesar da insistência. Mas a situação política em
relação a mim não mudou. E eu quero poder ter a esperança de que haverá a
chance para uma discussão pública melhor sobre como proteger autores de
denúncias da retaliação do governo nos Estados Unidos e em outros países. Mas
até lá terei que esperar.
Sonia
Bridi — Em que condições você voltaria agora? Tem um advogado
tentando negociar um acordo com o governo americano para poder voltar para
casa? Quais seriam as condições para você voltar agora?
Edward Snowden — Os
meus advogados têm um contato no governo para discutirmos. Se o governo achar
que podemos ajudá-lo a proteger algum material, se achar que podemos contribuir
de alguma forma, ou se estiver interessado em chegar a uma solução que sirva ao
interesse nacional e seja justa para todos os envolvidos... O que está claro,
não acho que o governo americano ganhe nada me encurralando na Rússia, e não
quero ficar encurralado num país estrangeiro, mas, em relação às condições,
isso é com o governo.
Sonia
Bridi — Ainda tem documentos com você?
Edward Snowden — Não.
Como eu sabia que passaria pela Rússia, que tem um serviço de inteligência
sofisticado, profissional e agressivo, não quis correr o risco de ser espionado
ou que alguém me pedisse informações, então destruí os documentos antes de
entrar na Rússia.
Sonia
Bridi — Algumas pessoas nos EUA, e isso foi publicado por jornais
importantes, sugeriram que os chineses teriam drenado seu laptop antes de você
sair da China.
Edward Snowden — Pois
é. Essa foi uma acusação famosa feita por congressistas que foram expostos como
os responsáveis pelas diretrizes reveladas. E precisavam de algum tipo de
ataque, uma reação. Então disseram que eu não sabia o que estavam fazendo, que
eu era um cara com laptops cheios de informações, informações vazando desses
computadores, e que entrei na China e eles drenaram os segredos. Mas é uma
loucura, porque eu era perito em segurança cibernética. Eu ensinei autoridades
da CIA, da DIA e da NSA a se protegerem em lugares como a China contra esse
tipo de coisa.
Sonia
Bridi — Alguns congressistas dizem que você é um desertor. Como você
se encara?
Edward Snowden — Esse
é mais um desses ataques, e eles usam a mesma tática. O governo chamar alguém
de desertor é normal, é como se estivesse lendo um roteiro. A questão é que
você só é desertor se passa a ser leal a um inimigo de Estado. E a minha
lealdade não mudou. Eu trabalho para o governo dos EUA até hoje, trabalho para
o povo do meu país. Não trabalho contra ele, não quero derrubar o governo nem
destruir a NSA. Quero torná-los melhores.
Sonia
Bridi — Estaria disposto a enfrentar um processo nos EUA?
Edward Snowden — Eu
adoraria enfrentar um processo nos EUA se reformassem a lei da espionagem para
permitir que os réus tivessem uma defesa real. Hoje, a lei da espionagem é uma
lei muito incomum. Ela proíbe que o réu defenda certas coisas. Eu não posso me
defender no tribunal dizendo que estava a serviço do interesse público. Eles
não veem diferença entre alguém que vende uma lista com nomes de agentes a
serem executados para um país inimigo durante uma guerra e alguém que passa
informações sobre abusos do governo para que a imprensa divulgue de forma
responsável. Mas, do jeito que é hoje, eu não tenho como apresentar essa
defesa, não teria um julgamento justo.
Sonia
Bridi — Por que a China e a Rússia?
Edward Snowden — Eu
não escolhi vir para a Rússia. Não era meu destino final. Eu estava a caminho
da América Latina. Eu tinha uma passagem comprada. Todo mundo sabe disso.
Sonia
Bridi — Onde na América Latina?
Edward Snowden — Para
o Equador. Foram publicadas fotos de jornalistas no avião de Moscou para Havana
vigiando o meu assento. Mas o problema foi que, quando fui embarcar no avião,
os Estados Unidos tinham cancelado meu passaporte. Eles o revogaram e me
impediram de viajar, porque queriam me paralisar. Na época, não tinham nada de
concreto contra mim, não tinham como atingir minha reputação. Acho que foi uma
decisão política: se me segurassem na Rússia, poderiam dizer que eu era um
espião russo sem precisar provar. Acho que a motivação foi política.
Sonia
Bridi — Do momento em que você desapareceu pelas mãos de dois
advogados chineses de Hong Kong até o momento em que pôde deixar o aeroporto
aqui. Como foi isso? Como suportou esse período?
Edward Snowden — Foi
incrivelmente tenso. Era muita incerteza. Eu não sabia o que ia acontecer
naquela noite, quando ia dormir. Não sabia se iam bater na porta ou se iam
arrombar a porta. A única coisa que você pode fazer é confiar que está se
esforçando ao máximo para fazer o que é certo. Você pode cometer algum erro e
não fazer tudo perfeitamente, mas se estiver motivado para fazer o bem e for
cuidadoso e responsável, certificando-se de que mesmo se não conseguir criar um
imenso benefício público, se pelo menos não causar o mal, pode saber que, não
importa o que acontecer, mesmo que seja preso ou morto, vai se sentir bem com a
decisão que tomou, e foi assim que me senti.
David Miranda — Fiquei
numa sala, tiveram seis agentes diferentes que eles estavam entrando e saindo.
Sonia
Bridi — Em agosto do ano passado, o brasileiro David Miranda companheiro
de Glenn Greenwald, foi detido por nove horas no aeroporto de Londres, acusado
de terrorismo, ele trazia documentos vazados por Edward Snowden da Alemanha
para o Brasil. Como se sentiu quando soube que David Miranda tinha sido
detido no aeroporto de Heathrow?
Edward Snowden — Eu
fiquei chocado. Não digo aos jornalistas como trabalhar, então não sei bem como
a coisa funciona, mas pelo que entendi David Miranda estava a serviço do Guardian .
O jornal pagara a passagem dele e ele trabalhava como correspondente para eles.
E o governo britânico acusar alguém na função de jornalista de associação com o
terrorismo é algo chocante.
Sonia
Bridi — Depois de ficar preso num aeroporto com toda essa pressão,
você entendeu o que ele sofreu, certo?
Edward Snowden — Acho
que ele sofreu muito mais que eu, mas... não saber o que vai acontecer com
você, perder sua capacidade de iniciativa e a capacidade de definir o próprio
futuro é algo profundamente assustador. E o fato de que ele se manteve tão fiel
a seus princípios numa situação daquela diz muito sobre ele.
Sonia
Bridi — Foi assim que você se sentiu?
Edward Snowden — Foi.
Eu... Em relação a ele?
Sonia
Bridi — Em relação a si mesmo. De perder a capacidade de definir o
próprio futuro, de ser o agente de...
Edward Snowden — Com
certeza. Quando fui a público em Hong Kong, eu disse que a minha intenção era
pedir justiça ao mundo, e foi por isso que pedi asilo. É assustador pôr seu
futuro nas mãos de alguém assim. Você... precisa acreditar na bondade das
pessoas todos os dias, em todas as decisões difíceis, em todas as questões.
Sonia
Bridi — Como é a sua vida aqui na Rússia?
Edward Snowden — Não
é tão ruim quanto dizem. Nenhum país é perfeito e a Rússia tem algumas posições
políticas das quais eu discordo fortemente. Eles monitoram a Internet de formas
inadequadas, regulam a imprensa de uma forma que nenhum governo deve fazer, mas
o meu dia a dia é muito melhor do que a prisão.
Sonia
Bridi — Você pode sair?
Edward Snowden — Claro.
Por que não?
Sonia
Bridi — Não fica isolado?
Edward Snowden — Bem,
eu sou naturalmente isolado, afinal, sou cria da Internet.
Sonia
Bridi — Então a sua vida é on-line?
Edward Snowden — É.
Algumas pessoas gostam de ver marcos históricos e visitar pontos turísticos. Eu
prefiro ler, escrever, me comunicar e discutir questões com amigos e pessoas em
quem confio e tentar construir coisas, montar coisas, criar soluções e melhorar
o mundo à minha volta da melhor forma possível.
Sonia
Bridi — Tem algum tipo de segurança? Os russos o vigiam?
Edward Snowden — Tenho
certeza de que a inteligência russa faz algum tipo de vigilância, mas eu não
vejo nada. Para mim...
Sonia
Bridi — Não é ostensiva.
Edward Snowden — Não.
Para mim, se eu precisar de segurança, eu contrato, mas prefiro ser o mais
independente possível. Por questões de segurança, não posso dizer onde moro e
como viajo, mas eu vivo uma vida surpreendentemente aberta.
Sonia
Bridi — As pessoas não o reconhecem na rua?
Edward Snowden — Reconhecem
quando entro em lojas de computadores. Quando vou ao mercado ou estou lendo
revistas, ninguém me reconhece.
Sonia
Bridi — Você se mistura.
Edward Snowden — Pois
é.
Sonia
Bridi — Você usa disfarces ou sai com sua cara de Edward Snowden?
Edward Snowden — É
melhor eu não responder.
Sonia
Bridi — Do que sente mais falta?
Edward Snowden — Da
minha família, é claro.
Sonia
Bridi — A maioria dos jornalistas passa meses insistindo até
conseguir uma fonte que se abra, que forneça documentos e uma boa matéria.
Neste caso, você teve que passar meses insistindo para que Glenn Greenwald
instalasse um programa de criptografia para que ele pudesse receber os
documentos. E você quase perdeu a oportunidade de ter o furo de uma vida!
Glenn
Greenwald — Eu gosto de contar essa
história, apesar de alguns acharem constrangedor para mim, porque há algumas
questões importantes. Ele não entrou em contato comigo e disse: “Oi, sou Edward
Snowden, trabalho na NSA e tenho milhares de documentos ultrassecretos para lhe
dar” e eu o ignorei. O que aconteceu foi que ele tinha muito medo – por motivos
que hoje todos nós sabemos que eram muito válidos – que, se ele falasse com um
jornalista sem que essa comunicação fosse criptografada, havia uma grande
chance de o governo americano descobrir o que ele estava prestes a fazer, então
ele tinha muito medo e não podia me contar nada sobre o que pretendia fazer.
Ele só falava coisas vagas, como: “Quero conversar com você sobre umas coisas.”
E enquanto não me contasse algo sobre ele e o que tinha, eu não o transformaria
numa prioridade, e enquanto eu não fizesse isso, ele não me contaria nada,
então isso mostra que a vigilância que ele ajudou a divulgar não é uma ameaça
apenas à privacidade e à democracia, mas uma ameaça ao jornalismo. Mas deu
certo no fim. Ele foi muito persistente, procurou Laura Poitras, que tinha
criptografia, e ela me envolveu, mas eu conto essa história para incentivar
jornalistas a usarem a criptografia e também para mostrar como é perigoso o
governo saber quem conversa com quem.
Edward Snowden — Se
eu pudesse completar, diria que uma das coisas mais importantes que aprendi com
essa situação foi que ela prova que a criptografia é muito importante e também
muito difícil de usar. Ninguém terá segurança em suas comunicações, seja no
Brasil, nos EUA ou em qualquer outro lugar, a menos que tenhamos acesso a essas
ferramentas, que são invisíveis. Não é preciso instalar nada nem aprender nada,
mas acontece por default, sem nenhuma etapa especial, porque, naturalmente, não
nos damos ao trabalho.
Sonia
Bridi — Ficou frustrado quando ele não instalou o programa de
criptografia?
Edward Snowden — Acho
que posso dizer que sim. Tentei muitas vezes, de várias formas, mas eu já
esperava essa possibilidade. Era um pedido complicado, e todo mundo sabe que
jornalistas têm prioridades, são muito ocupados, e se você é um desconhecido
dizendo que tem um furo mas que precisa que você faça uma coisa muito complexa,
é compreensível.
Sonia
Bridi — Documentos vazados por Snowden, e mostrados pelo TV Globo,
tiveram grande impacto no Brasil. Conseguiu acompanhar os desdobramentos
daqui?
Edward Snowden — Consegui.
E fiquei fascinado por eles e pela reação a eles. É incrível. Em todos os
países do mundo as pessoas valorizam muito a privacidade. Ninguém quer ser
espionado, nos sentimos violados. E, pensando objetivamente, perguntamos: “O
que esperava encontrar?” Não há explicação nem justificativa para os EUA
espionarem empresas de petróleo brasileiras. Por que o presidente americano
quer ler os e-mails de Dilma Rousseff? Qual é o benefício, o que se ganha com
isso? O presidente dos Estados Unidos alegou que não sabia da existência desses
programas, e até certo ponto pode ser verdade. Ele também concordou comigo que
esses programas não são úteis, não têm valor, não salvaram vidas nem promoveram
os interesses americanos e acabou com eles. Disse: “Por que estamos espionando
essa gente? Parem. Não adianta.”
Sonia
Bridi — Você chegou a assistir ao discurso da presidente Dilma na
ONU?
Edward Snowden — Fiquei
inspirado por aquele discurso. Foi incrível, porque a presidente brasileira foi
a primeira presidente, acho, a assumir um papel forte de liderança, dizendo:
“Nós temos o direito de sermos deixados em paz, de nos comunicarmos, de nos
associarmos livremente sem monitoramento, sem vigilância. E esses direitos não
são cívicos nem nacionais, são direitos humanos.” Os progressos que o Brasil
tem feito, como a aprovação de leis como o Marco Civil, são extraordinários,
mas são só o começo. Não vão longe o bastante. Não bastam discursos, aprovação de
leis e pequenas mudanças. É preciso criar um padrão internacional que garanta o
respeito aos nossos direitos, que esteja previsto em lei e tenha o apoio dos
padrões tecnológicos adequados.
Sonia
Bridi — Como acha que nós, enquanto indivíduos e sociedade, como uma
comunidade, podemos nos proteger contra isso?
Edward Snowden — Uma
das principais soluções é técnica. Precisamos que os governos invistam na
educação e na pesquisa matemática e tecnológica que permita proteger as
comunicações não só numa cidade ou para algum serviço, mas no mundo inteiro. E
faremos isso através de avanços tecnológicos e dos padrões que usamos para nos
comunicarmos. Porque o Brasil pode aprovar a melhor lei do mundo para proteger
a privacidade de seus cidadãos, mas assim que os e-mails dos brasileiros deixam
as fronteiras do Brasil e entram em outro país, aquele país pode ou não seguir
a lei. Ninguém vai saber. Se impusermos os nossos valores através da
tecnologia, esse problema é resolvido.
Sonia
Bridi — De vez em quando, a imprensa americana diz que você
ofereceria informações ao Brasil em troca de asilo. Você fez essa oferta?
Edward Snowden — Definitivamente
não. De jeito nenhum. Em primeiro lugar, não tenho nenhum documento a oferecer.
Em segundo lugar, mesmo se eu tivesse, jamais ofereceria informações secretas
ou colaboraria com um governo em troca de asilo. O asilo tem que ser concedido
por motivos humanitários, deve ser concedido para proteger direitos políticos e
o direito à segurança. Essa história de negociação de asilo é imprópria. Se o
Brasil quiser me oferecer asilo, se quiser proteger os direitos dos autores de
denúncias, acho muito bom e vou apoiar, seja no meu caso ou no de outra pessoa.
Mas eu jamais me envolveria em qualquer negociação desse tipo.
Sonia
Bridi — A primeira revelação foi feita há um ano e logo completará um
ano que seu asilo foi concedido. Qual será seu próximo passo quando o prazo
expirar?
Edward Snowden — O
meu asilo tem prazo para acabar, acho que no início de agosto, e ainda não
recebi asilo permanente. Se o Brasil e os esforços que estão fazendo lá levarem
o governo a me oferecer asilo ou outro tipo de status permanente, aceitarei com
muito prazer.
Sonia
Bridi — Mais de 1,2 milhão de pessoas assinaram a petição pedindo à
presidente Dilma para lhe dar asilo. Você gostaria de morar no Brasil?
Edward Snowden — Eu
adoraria morar no Brasil. O Brasil tem ótima reputação. É um país em
crescimento que está se desenvolvendo rapidamente, não só economicamente mas de
muitas novas formas: em ciência, tecnologia e cultura. Até sua cultura de jogos
on-line... Os gamers brasileiros na internet são mundialmente reconhecidos. Até
suas piadas, suas expressões... O Brasil é um país que eu adoraria conhecer. Eu
adoraria morar no Brasil, e... se 1,2 milhão de brasileiros estão me
convidando, eu certamente aceitaria convite, seria um prazer. E eu já enviei um
pedido de asilo ao governo brasileiro. Se ele resolver me oferecer, certamente
aceitarei.
Sonia
Bridi — Então você enviou o pedido?
Edward Snowden — Enviei.
Quando eu estava no aeroporto, enviei pedidos a vários países, e o Brasil foi
um deles. Foi um pedido formal.
Sonia
Bridi — Mas a diplomacia brasileira disse que não recebeu o pedido.
Edward Snowden — Isso
é novidade para mim. Talvez algum procedimento não tenha sido seguido. Muitos
países disseram que é preciso estar em seu território nacional para pedir
asilo. Talvez tenha sido isso. Talvez seja bom as pessoas ficarem atentas a
isso.
Sonia
Bridi — Existem dezenas de milhares de funcionários da NSA, pessoas
que trabalham na segurança nacional e para agências de espionagem nos EUA. Você
se acha um divergente?
Edward Snowden — Não.
Na verdade, eu acho que as pessoas que trabalham para a NSA e para todas essas
organizações são boas pessoas tentando fazer coisas boas numa época difícil,
com escolhas moralmente duvidosas. O problema não são as pessoas em níveis
inferiores, o problema não são os funcionários, são os funcionários graduados,
que criam diretrizes e tomam decisões ruins, criam diretrizes ruins e programas
ilegais que sabem que não podem ser defendidos, portanto usam o sigilo para se
proteger contra a exposição e a responsabilidade em vez de proteger a nação
contra ameaças reais. E isso é um problema crítico que precisa de reforma, mas
eu sei que há outros funcionários na comunidade de Inteligência dos EUA muito
inquietos e preocupados com os mesmos programas que eu, porque qualquer pessoa
que os visse, fosse funcionário da NSA ou da NBC, veria que eles vão longe
demais. Há um limite entre o que é necessário e apropriado e o que estamos
fazendo simplesmente porque podemos. E o próprio presidente já disse que a
época de fazermos as coisas porque podemos chegou ao fim. Não devemos fazer
algo só porque podemos, e eu concordo.
Sonia
Bridi — Acha que a forma como a NSA opera realmente ajuda a combater
o terrorismo?
Edward Snowden — Não
ajuda.
Sonia
Bridi — É eficiente?
Edward Snowden — Definitivamente
não é eficiente nem eficaz, e você não precisa confiar em mim. O primeiro
tribunal a avaliar esses programas às claras descobriu que eles nunca impediram
um ataque nem salvaram uma vida nos EUA de um ataque terrorista iminente.
Também disse que ele era orwelliano e violava os direitos dos cidadãos do país.
O presidente encomendou duas investigações independentes com acesso irrestrito
a informações confidenciais para analisar tudo que a NSA tinha feito com os
programas e ver se havia algum valor que justificasse a manutenção dos
programas e a conclusão foi que não, que eles deveriam ser suspensos. Uma das
investigações concluiu que o programa não tinha nenhuma base legal e não
deveria ter sido lançado. E o Congresso americano agora está dizendo que esses
programas devem ser reformados, suspensos e que proteções têm de ser criadas
para que isso nunca volte a acontecer. Essa é uma declaração incrível que
rejeita a ideia de que os programas são necessários e próprios para combater o
terrorismo, porque, se fossem, os três poderes do governo americano estariam
querendo eliminá-los?
Sonia
Bridi — Você está feliz?
Edward Snowden — Estou. Foi... um
desafio incrível. Foi um ano dificílimo. Trabalhei mais do que jamais trabalhei
antes e é difícil para mim estar longe da minha família, não poder voltar para
casa, não poder participar do meu governo e sociedade como eu gostaria. Mas, ao
mesmo tempo, vou dormir toda noite confiante de que as escolhas que fiz, mesmo
as mais difíceis, foram as que julguei corretas. E, por causa disso, acordo
satisfeito todo dia.
Link: http://www.conjur.com.br/2014-jun-13/edward-snowden-ainda-revelacoes-serem-feitas-brasil
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