Noticia
Análise / Luiz
Gonzaga Belluzzo
Em um mundo de inevitáveis colisões
Não vai ser fácil para os Estado
Unidos partilharem a liderança monetária com a China
O arranjo de cooperação financeira e monetária feito pelos Brics colide
com os interesses americanos
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul firmaram em Fortaleza um
acordo de cooperação financeira e monetária. Esse arranjo está consubstanciado
na criação do Novo Banco de Desenvolvimento e no Fundo Contingente de
Estabilização. O banco conta com capital de 50 bilhões de dólares e o fundo,
com 100 bilhões, poderá mobilizar recursos para defender as moedas daqueles
países em caso de situações de crise de balanço de pagamentos. O banco tem
capacidade de alavancar recursos de outras instituições financeiras.
Os chamados BRICS anunciam o banco e o fundo no ano do 70º aniversário
da concertação internacional que levou à constituição das instituições
monetárias e financeiras internacionais de Bretton Woods.
Nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de
Bretton Woods em 1944, John Maynard Keynes formulou a proposta mais avançada e
internacionalista de gestão da moeda internacional. Baseado nas regras de
administração da moeda bancária, o Plano Keynes previa a constituição de uma
entidade pública e supranacional encarregada de controlar o sistema
internacional de pagamentos e de provimento de liquidez aos países
deficitários. Tratava-se não só de contornar o inconveniente de submeter o
dinheiro universal às políticas econômicas do país emissor, como observamos
agora, mas de evitar que a moeda internacional assumisse a função de um
perigoso agente da “fuga para a liquidez”.
As transações comerciais e financeiras seriam denominadas em bancor
e liquidadas nos livros da instituição monetária internacional, a Clearing
Union. Os déficits e superávits seriam registrados em uma conta corrente que os
países manteriam na Clearing Union. No novo arranjo institucional, tanto os
países superavitários quanto os deficitários estariam obrigados, mediante
condicionalidades, a reequilibrar suas posições, o que distribuiria o ônus do
ajustamento de forma mais equânime entre os participantes do comércio
internacional. No Plano Keynes, não haveria lugar para a livre movimentação de
capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos.
Em 1944, nos salões do hotel Mount Wash-
ington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar, ancorado no ouro, como moeda universal.
ington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar, ancorado no ouro, como moeda universal.
Essas características do arranjo monetário realmente adotado em Bretton
Woods sobreviveram ao gesto de 1971 (a desvinculação do dólar em relação ao
ouro) e à posterior flutuação das moedas em 1973. Na esteira da desvalorização
continuada dos anos 70, a elevação brutal do juro básico americano em 1979
derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na “desinflação
competitiva” e culminou na crise japonesa dos anos 90. Na posteridade dos
episódios críticos, o dólar fortaleceu-se, agora em obediência ao papel dos
Estados Unidos como “demandantes e devedores de última instância”.
A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos
aflige, nasceu e se desenvolveu nos mercados financeiros dos Estados Unidos. Na
contramão do senso comum, os investidores globais empreenderam uma fuga
desesperada para os títulos do governo americano.
A pretendida e nunca executada reforma do sistema monetário
internacional, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar as conturbações geradas
pela decadência dos EUA. Vai sim acertar contas com os desafios engendrados
pelas assimetrias de ajustamento provocadas pelo desarranjo da economia
sino-americana, ancorada na força do dólar e no poder dos mercados financeiros
dos Estados Unidos.
Impulsionada pela “deslocalização” da grande empresa dos EUA e ancorada
na generosidade da finança privada do país, o processo de integração produtiva
e financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem
precedentes das famílias “consumistas” americanas, a migração da indústria
manufatureira para a Ásia “produtivista” e os desregramentos do endividamento
público nos países desenvolvidos.
A interdependência sino-americana não esgota seus efeitos no
desequilíbrio comercial entre os dois países, mas avança suas consequências
para dentro da Ásia manufatureira e estende sua influência à África e à América
Latina, não só como como fontes provedoras de matérias-primas, mas como espaço
de expansão de empresas chinesas que iniciam um forte movimento de
internacionalização. Está claro que os chineses ensaiam cautelosa, mas
firmemente a internacionalização do yuan ao ampliar a conversibilidade
financeira e multiplicar rapidamente os acordos de troca de moedas (swaps)
com seus parceiros comerciais mais importantes.
Não vai ser fácil para os americanos partilharem a liderança monetária
com a China. Muitos argumentam que a política de inundação de liquidez
destinada a adquirir, sobretudo, títulos de dívida de longo prazo (quantitative
easing) em nada afetou sua utilização como moeda de denominação das
transações comerciais e financeiras, a despeito do avanço do yuan nos negócios
entre os países asiáticos e, provavelmente, agora, nas transações entre os
BRICS.
Seja como for, a crise demonstrou que a almejada correção dos chamados
desequilíbrios globais vai exigir regras de ajustamento não compatíveis com o
sistema monetário internacional em sua forma atual, aí incluído o papel do
dólar como moeda reserva. Isso não significa prognosticar a substituição da
moeda americana por outra moeda, seja o euro, seja o yuan, mas constatar que o
futuro promete solavancos e colisões nas relações comerciais e financeiras
entre as nações.
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