Terceirização e neodesenvolvimentismo no Brasil
Por Giovanni Alves.
Na era do
neodesenvolvimentismo (2003-2013), sob os governos Lula e Dilma, aumentaram as
modalidades flexíveis de contratação laboral no Brasil. Na década de 2000, sob
o choque de capitalismo, disseminaram-se novas formas atípicas de contratação
salarial como, por exemplo, o contrato por prazo determinado, contrato por
prazo parcial, suspensão de contrato; e principalmente, as relações de emprego
disfarçada tais como contratação como pessoa jurídica (PJ), cooperativas de
contratação de trabalho, trabalho-estágio, autônomos, trabalho em domicílio,
teletrabalho e a terceirização. Interessa-nos tratar aqui da terceirização,
que se manifesta de múltiplas formas, incluindo, por exemplo, algumas dessas
formas de contratação atípicas (subcontratação por meio de agência de emprego,
a PJ, o autônomo proletarizado, o trabalho em domicílio e a cooperativa para
empresa). Entretanto, a terceirização não se reduz a elas, tendo em vista que
abarca todo o processo de externalização de atividades para outras empresas
ou pessoas.
A partir da década de
1990, a terceirização se constituiu na principal forma de flexibilização da
contratação no Brasil. Desde que passou a ser admitida em atividades-meio de
acordo com o Enunciado 363 do TST (Tribunal Superior do Trabalho), a terceirização
tornou-se a forma mais evidente de flexibilização da legislação trabalhista. Na
década de 1990, as políticas neoliberais promoveram a reestruturação
do capitalismo no Brasil, com impactos diruptivos no mundo do trabalho,
principalmente com o crescimento abrupto do desemprego aberto nas metrópoles
brasileiras. Na década de 2000, com o neodesenvolvimentismo, ocorreu a reorganização
do capitalismo brasileiro na base da acumulação flexível. Constituiu-se
efetivamente o que denominei de “toyotismo sistêmico” (vide o livro O novo (e precário)
mundo do trabalho). Na
verdade, apesar da queda do desemprego aberto, a partir de 2003, ampliou-se a mancha
de precariedade laboral. O “choque de capitalismo” promovido pelos governos
Lula e Dilma contribuiu para a expansão da lógica do capital no plano da
produção e reprodução social. Incapazes (ou indispostos) de romper o cerco do
Estado neoliberal, os governos neodesenvolvimentistas (2003-2014) adequaram-se,
em nome da governabilidade, à lógica do capitalismo flexível. Um dos traços do lulismo
foi não confrontar o capital, buscando, deste modo, garantir os investimentos
necessários para o crescimento da economia brasileira. Por isso, apesar do
aumento do gasto público com as políticas sociais de transferência de renda
(Bolsa-Familia, Minha Casa Minha Vida, etc) e a política de valorização do
salário mínimo, que contribuiram para a redistribuição de renda e a diminuição
da desigualdade social no Brasil, manteve-se e incrementou-se na era do
neodesenvolvimentismo a nova dinâmica de acumulação capitalista baseada na
acumulação flexível.
A expansão da
terceirização na década do neodesenvolvimentismo é o traço candente (e
irremediável) da nova ofensiva do capital na produção nas condições históricas
do capitalismo flexível. Nesse período, instaurou-se o que denominamos de “nova
precariedade salarial” no País, o novo modo de organizar o processo de trabalho
e a produção do capital a partir da lógica do trabalho flexível, sendo ela
caracterizada pela adoção das novas tecnologias informacionais, gestão
toyotista e relações de trabalho flexíveis (contrato salarial, jornada de
trabalho e remuneração flexível). É claro que a terceirização não é um
fenômeno novo na produção capitalista). Entretanto, dentro do contexto da nova
ofensiva do capital na produção, com a vigência do capitalismo flexível, a
terceirização tornou-se moda da administração empresarial, sendo importante
elemento compositivo da nova precariedade salarial e das novas formas de gestão
da produção capitalista inspirada no toyotismo. Foi a “nova precariedade
salarial” que deu novas roupagens à terceirização. A “nova precariedade
salarial” – e com ela, a terceirização – disseminou-se, não apenas pelo setor
privado – indústria, comércio e serviços – mas também pelo setor público,
incluindo a administração pública, alterando não apenas a morfologia social do
trabalho, mas o sociometabolismo laboral no Brasil. A “nova precariedade
salarial” constituiu novas dimensões da precarização do trabalho, como, por
exemplo, o que denominamos “precarização do homem-que-trabalha”, que se
manifesta, por exemplo, pelo aumento dos casos de adoecimento laboral nos
locais de trabalho reestruturados.
A terceirização, como
elemento compositivo da “nova precariedade salarial” no plano da contratação
salarial flexível, se manifestou de forma bastante distinta em diversos
segmentos econômicos: desde a subcontratação de uma rede de fornecedores com
produção independente, passando pela contratação de empresas especializadas de
prestação de serviços de apoio e pela alocação de trabalho temporário via
agência de emprego; até a contratação de pessoa jurídica ou do autônomo nas
áreas produtivas e essenciais da empresa; o trabalho domiciliar (que na maioria
das vezes é informal); a organização de cooperativas de trabalho, o
deslocamento de parte da produção ou setores para ex-empregados etc.
Deve-se observar ainda
que o fenômeno da terceirização tornou-se tão complexo que se estabeleceu a
“terceirização da terceirização”, onde a empresa terceirizada sub-contrata
parte do processo para outras empresas; e em alguns casos há o processo chamado
de “quarteirização”, que refere-se: ora à empresa intermediadora, aquela que se
coloca entre a “empresa-mãe” e a empresa terceirizada, ou seja, aquela que
gerencia os contratos com as prestadoras de serviços; ora trata de um
desdobramento da terceirização, representada pelo momento em que a prestadora
de serviços contratada pela “empresa-mãe” repassa para outra empresa,
“cooperativa de trabalho” (trabalhadores “autônomos”) ou prestador de serviços
individual (Pessoa Jurídica- PJ), as atividades a serem realizadas.
A terceirização aparece
também como relação de emprego triangular, isto é, a locação de
mão-de-obra por meio de empresa aluguel. Nesse caso, o contrato temporário é
prestado por meio de empresa interposta (fornecedora de mão-de-obra, geralmente
via agência de emprego), que seleciona e remunera trabalhadores com a
finalidade de prestar serviços provisórios junto a empresas clientes. Por isso,
estabelece uma relação triangular, em que o local de trabalho não tem
relação direta com o empregador, mas com a agência de emprego. Teoricamente, o
contrato temporário, que pode ser de até 6 meses, seria uma prestação de
serviços para atender necessidade transitória de substituição de pessoal ou
permanência da situação que gerou aumento de serviço e conseqüente realização
de contrato temporário. Mas, na prática, existem hoje milhares de empresas no
Brasil que sublocam força de trabalho por meio de contratos temporários e
trabalho-estágio. Elas têm, um cadastro informatizado que permite mover os
trabalhadores de uma tarefa ou empresa para outra, sem que estes estabeleçam
qualquer vínculo de relações profissionais ou sociabilidade com o local em que
executam a atividade. Os trabalhadores são simplesmente empurrados de um casulo
de atividades para outro e perdem aos poucos todo o interesse pelo ambiente em
que efetivamente atuam. Seu vínculo é apenas com o cadastro da empresa de
aluguel. Nesse caso, a terceirização reforça a corrosão da relação entre o
trabalhador e a sua atividade profissional, que se torna cada vez mais diluída,
fazendo com que a sua identidade com o trabalho fique secundarizada, o que
dificulta a formação do caráter do trabalho. Finalmente, uma outra questão é
que a relação triangular permite às empresas estabelecerem uma estratégia de
preservar os trabalhadores mais qualificados e realizarem um turn over
nos com menor qualificação, pagando-lhes menor salário e menos benefícios.
As empresas são
motivadas a terceirizar não devido à especialização técnica, busca do
crescimento da produtividade, desenvolvimento de produtos com maior valor
agregado, ou maior tecnologia; ou ainda devido à especialização dos serviços ou
produção, mas sim, visando a otimização dos seus lucros, em especial, através
de baixíssimos salários, altas jornadas e pouco ou nenhum investimento em
melhoria das condições de trabalho. Por isso, terceirização no Brasil implica
desrespeito dos direitos dos trabalhadores, criando, deste modo, uma clivagem
no mundo do trabalho formal, com o surgimento da figura do “cidadão de segunda
classe”, vivendo com uma espada de Damôcles, à merce dos golpes das empresas,
que fecham do dia para a noite, e não pagam as verbas rescisórias aos seus
trabalhadores empregados e às altas e extenuantes jornadas de trabalho.
Portanto, as empresas
terceirizadas abrigam as populações mais vulneráveis do mercado de trabalho:
mulheres, negros, jovens, migrantes e imigrantes. Esse “abrigo” não tem caráter
social, mas é justamente porque esses trabalhadores se encontram em situação
mais desfavorável, e por falta de opção, submetem-se a esse emprego.
Entretanto, não podemos
esquecer que as empresas terceiras são produtos do modo de organização
da grande empresa capitalista, verdadeiros demiurgos da terceirização.
Perguntemos: por que a grande empresa capitalista – como a Petrobrás, por
exemplo – terceiriza para uma empresa terceira os serviços necessários à
produção de suas atividades? Este é “x” da questão. No caso do Brasil, a grande
empresa capitalista, imersa na voraz concorrência do mercado global,
incorpora, por um lado, a lógica organizacional da empresa-rede e o
espírito do toyotismo, a ideologia orgânica da produção do capital nas
condições do capitalismo global (vide o meu livro Trabalho e
subjetividade); e por outro
lado, assume como modo cultural de consumo da força de trabalho no Brasil, a superexploração
da força de trabalho, traço ontogenético do ethos capitalismo no
Brasil,– articulando o historicamente novo (novas tecnologias e
modernos métodos de gestão) e o historicamente arcaico (relações de
trabalho espúrias com rebaixamento de salário e espoliação de benefícios
trabalhistas).
Portanto, a
externalização das atividades para empresas ou pessoas – a terceirização –
representa a afirmação da lógica organizacional da empresa-rede, a
grande empresa capitalista nas condições históricas do capitalismo global. A empresa
terceira gera trabalho precário; e pior, com jornadas maiores e ritmo de
trabalho exaustivo. A intensificação do trabalho, observada nas empresas
privadas e públicas na década de 2000, decorre dos novos métodos de gestão
acoplado às novas tecnologias informacionais, um dos traços candentes da
“nova precariedade salarial” sob o espírito do toyotismo, sendo também traço
compositivo da síndrome da superexploração da força de trabalho no
Brasil. Sob pressão da grande empresa capitalista, a empresa terceira incorpora
os novos métodos de gestão toyotista, reduzindo, deste modo, postos de
trabalho, e produzindo, mais com menos pessoal.
Deste modo, combater a
terceirização no Brasil significa combater a lógica organizacional do capitalismo
em rede. No caso do setor privado, a rede funciona como circuito de
valorização operando a transferência de valor das empresas terceiras para
a grande empresa tomadora. No caso do setor público, quando a União, Estados e
municípios terceirizam suas atividades para empresas e pessoas, a rede
funciona como veículo de contenção do gasto público nas condições
históricas do capitalismo predominantemente financeirizado e do Estado
neoliberal (na era do neoliberalismo, União, Estados e municípios encontram-se
constrangidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal sob a espada de Damôcles da
divida pública).
Portanto, tanto a rede
como circuito de transferência de valor da empresa terceira para a grande
empresa; quanto a rede como contenção do gasto público, articulam
o regime de acumulação flexível com o regime de acumulação por espoliação.
Deste modo, temos, por um lado, a predação de direitos dos trabalhadores e
benefícios trabalhistas; e por outro lado, a corrupção da coisa pública que
prolifera nos contratos de terceirização do setor público no Brasil. No limite,
a sociedade em rede, organizada em torno da grande empresa (pública e privada),
externaliza suas atividades para empresas e pessoas, aumentando os custos para
a sociedade – não apenas devido a espoliação de direitos e benefícios
trabalhistas, empobrecendo trabalhadores e reforçando a concentração de renda
no País; e com o desvio de dinheiro do fundo público, as fraudes em licitações,
evasão fiscal, focos de corrupção, aumento das demandas trabalhistas e
previdenciárias, entre outros custos como a tão propagada competitividade, mas
com a perda da qualidade de serviços e produtos.
Pouco mais que ¼ do
mercado de trabalho formal no Brasil está terceirizado. Segundos dados do
DIEESE, os trabalhadores terceirizados no Brasil perfazem hoje cerca de 25,5%
do mercado formal de trabalho. Entretanto, deve-se salientar que esse
número está subestimado, tendo em vista que, parte considerável dos
trabalhadores terceiros estão alocados na informalidade – além disso, não estão
contidos os setores da agricultura. Portanto, a mancha da precariedade salarial
é imensa.
A terceirização
contribui para a persistência da informalidade. O processo de terceirização
baseado na redução de custos fortalece as relações de trabalho mais
heterogêneas, incluindo o trabalho por conta própria sem proteção social e a
contratação de trabalhadores sem registro como forma de obter competitividade
para sobreviver no mercado.
Os impactos da
terceirização sobre o mundo do trabalho são indiscutíveis, demonstrando a
péssima qualidade do emprego nas empresas terceiras no Brasil. Por exemplo, no
tocante a remuneração salarial, ela é menos 27,1% para os
trabalhadores terceirizados. Em relação à jornada de trabalho contratada,
os terceirizados realizam uma jornada de 3 horas a mais semanalmente, isso sem
considerar as horas extras ou banco de horas realizadas. O tempo de emprego
demonstra uma diferença ainda maior entre trabalhadores diretos e terceiros.
Enquanto a permanência no trabalho é de 5,8 anos para os trabalhadores diretos,
em média, para os terceiros é de 2,6 anos. Desse fato decorre a alta
rotatividade dos terceirizados – 44,9% contra 22% dos diretamente
contratados. Esse fato tem uma série de conseqüências para o trabalhador
terceirizado, que alterna períodos de trabalho e períodos de desemprego,
resultando na falta de condições para organizar e planejar sua vida, inclusive
para projetos pessoais como formação profissional, mas tem também um
rebatimento sobre o FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador) uma vez que essa alta rotatividade
pressiona para cima os custos com o seguro desemprego. Deste modo, a
terceirização não se configura como dano existencial, na medida em que
as relações de trabalho acima descritas submetem os empregados a jornadas
excessivas de trabalho, causando abalo físico e psicológico, impedindo-o da
fruição do direito ao lazer e ao convívio social? (os dados acima são
encontrados na pesquisa da CUT/DIEESE
publicada em 2011).
Quanto à distribuição
dos trabalhadores subcontratados por setores de atividade observa-se uma
concentração grande e crescente dos terceirizados no setor de serviços ao longo
da década (o que se explica também pelo crescimento deste setor na década de 2000).
Destaca-se que, apesar de executar tarefas, predominantemente, em outros
setores de atividade, as empresas buscam classificar suas atividades no
segmento de serviços, dado o caráter de prestação de serviços, desconsiderando
sua atividade final, tendo como um dos benefícios, menores salários do que, por
exemplo, no setor industrial, que teve o número de terceirizados reduzido em 4
pontos percentuais, mas isso não se reflete no número de trabalhadores que
continuam exercendo atividades nas unidades industriais.
Existem argumentos que
afirmam que os baixos salários dos terceirizados ocorrem em função de estarem
alocados em pequenas empresas, e que estas, não tem possibilidade de pagar
melhores salários. Entretanto, pelo que diz a pesquisa CUT/DIEESE indicada
acima, 53,4% dos trabalhadores terceirizados trabalham em empresas com mais de
100 empregados contra 56,1% dos trabalhadores diretos, percentuais bastante
próximos.
Outro argumento
comumente difundido é que os trabalhadores terceirizados recebem menos porque
possuem menor escolaridade. De fato, os terceiros possuem uma escolaridade
menor, mas não é um hiato gigante: 61,1% dos trabalhadores em setores
tipicamente terceirizados possuem ensino médio ou formação superior, enquanto
entre os trabalhadores dos setores tipicamente contratantes esse percentual é
de 75,7%.
Finalmente, deve-se
observar que tornou-se corriqueiro na era do neodesenvolvimentismo, calotes das
empresas terceirizadas aos direitos dos trabalhadores terceirizados e o
crescimento de acidentes de trabalho nas empresas terceiras. Inclusive, estudos
constam o vínculo entre terceirização com o trabalho análogo à escravidão (por
exemplo, 90% dos 40 maiores resgates em todo o Brasil nos últimos 4 anos terem
trabalhadores terceirizados, conforme destaca a reportagem do REPÓRTER BRASIL,
intitulada “Terceirização e trabalho análogo ao
escravo: coincidência?”).
Enfim, a expansão
invisível da terceirização é apenas a “ponta do iceberg” da reorganização
capitalista ocorrida no Brasil na perspectiva da afirmação do capitalismo
flexível. Cada vez mais, criticar a terceirização é criticar o capitalismo como
modo de organização social. Existe um vínculo orgânico entre terceirização e
nova dinâmica do capitalismo global baseada no regime de acumulação flexível.
No caso do Brasil, existe, como salientamos acima, a simbiose entre
terceirização e superexploração da força de trabalho, traço ontogenético do
capitalismo brasileiro. Nesse caso, o conceito de capitalismo significa não
apenas modo de produção de mercadorias, mas significa também um ethos
particular – no caso do Brasil – de valorização do capital e exploração da força
de trabalho. É importante lembrar que o capitalismo brasileiro constituiu-se
historicamente como um capitalismo hipertardio, dependente, de extração
colonial-escravista e via prussiana, onde historicamente, o moderno se
articulou com o arcaico; e o primado da iniciativa privada se impôs
sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais dos trabalhadores.
Portanto, está inscrito
como traço ontogenético do capitalismo brasileiro, o modo
oligárquico-patrimonialista de organização da exploração da força de trabalho,
com a “Casa Grande” continuando sendo movida insaciavelmente pela busca
desenfreada de lucros (o que explica a ânsia da terceirização como estratégia
de rebaixamento salarial e espoliação de benefícios trabalhistas). Ao mesmo
tempo, a nova etapa histórica do capitalismo flexível, no plano do mercado
mundial, reforça – afirma e valida – o traço estrutural do capitalismo
brasileiro salientado acima.
No decorrer da década
de 2000, tivemos em torno do tema terceirização, uma candente luta politica e
ideológica, com propostas em disputas, inclusive dentro da Direito do Trabalho,
entre aqueles que querem regulamentar; e aqueles que querem abolir a
terceirização. Apesar disso, o avanço da terceirização no Brasil foi quase
irremediável por conta da correlação de forças sociais e politicas; e também
devido – como salientamos acima – a adequação estrutural da
terceirização com a nova lógica do capitalismo global na qual o Brasil se
inseriu com vigor na década do neodesenvolvimentismo. Na verdade, a terceirização
tornou-se o Zeitgeist do capitalismo flexível. Combater a prática da
terceirização significa ir contra natureza do capitalismo brasileiro e ir
contra o espírito do regime de acumulação flexível imposto pela mundialização
do capital. Terceirização e capitalismo no Brasil representam um “par
perfeito”.
Portanto, a
terceirização no Brasil não é traço meramente contingencial por conta
da lei ou inescrupulosidade de juristas liberais ou maus capitalistas. Ela é um
traço orgânico do capitalismo brasileiro. A terceirização é um modo de
reafirmar a forma de ser de entificação do capitalismo brasileiro baseado na superexploração
da força de trabalho (exploração da força de trabalho que articula
intensificação do trabalho, alongamento da jornada laboral e rebaixamento
salarial). Ao mesmo tempo, a vigência do capitalismo flexível e a constituição
da “nova precariedade salarial” contribuiu para a re-afirmação do modo de
entificação do capitalismo no Brasil – hipertardio, dependente, extração
escravista-colonial de via prussiana – aprofundando, deste modo, os traços
históricos da miséria do trabalho no Brasil no interior do próprio núcleo da
modernidade salarial. Portanto, a terceirização não é a afirmação do arcaico
nas relações de trabalho no Brasil mas sim a reposição histórica da dialética
entre o moderno e o arcaico, característica ontogenética do
desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
A persistência do
Estado neoliberal no Brasil sob os governos neodesenvolvimentistas contribui
não apenas para a expansão da terceirização como modo de organização
empresarial, mas também para seu reconhecimento jurídico-institucional pela
alta corte constitucional do País. As condições de combate contra a terceirização
são bastante adversas: por um lado, temos uma sociedade política hegemonizada
pelos interesses empresariais; e por outro lado, uma sociedade civil manipulada
midiáticamente e hegemonizada pelos princípios liberais da livre iniciativa,
mantendo-se, deste modo, apática e alienada do desmonte da cidadania salarial
decorrente da legalização da terceirização como estratégia de flexibilização
das relações de trabalho no Brasil.
Foi a hegemonia
liberal, de extração oligárquico-politica, presente na institucionalidade
juridico-politica brasileira, que contribuiu para que se aceitasse a
terceirização como principio da livre iniciativa. Reduzir o combate à
terceirização a discussão sobre atividade-fim e atividade-meio significa
permanecer no campo do inimigo de classe, tendo em vista que, a discussão sobre
atividade-fim e atividade-meio não se trata de procedimento técnico,
mas sim, afirmação politica. Deste modo, o problema é quem tem a prerrogativa
de definir o que é, ou não, “atividade-meio” e “atividade-fim”, num contexto de
complexificação da externalização da atividade econômica. As fronteiras do que
‘pode ou não pode’ estão indefinidas. O que será considerado estratégico
dependerá do observador, de seus objetivos, que estão para além da disputa
sob os termos jurídicos. No caso brasileiro, com a fragilidade da
organização dos trabalhadores no local de trabalho, as empresas têm grande
poder para definir o processo de produção e de trabalho. No fundo, o debate
sobre “atividade-meio” versus “atividade-fim” reflete uma disputa
política acerca dos direitos trabalhistas e sociais. Na verdade, a controvérsia
tem relação com o disposto no Enunciado 331 do TST, que, cedendo aos interesses
da grande empresa capitalista, num cenário de ofensiva neoliberal, legitimou a
terceirização para inúmeras atividades “tipicamente terceirizáveis” e abriu a
brecha para atividades de especialização favorecendo, deste modo, a redução de
custos salariais e de benefícios conferidos pelas conquistas sindicais do
segmento mais estruturado.
Portanto, a repercussão geral
que obriga hoje o STF (Supremo Tribunal Federal) a discutir o conceito de
atividade-fim, é a síntese concreta da disputa politica – ou luta de classes –
que ocorre hoje na sociedade brasileira nas condições históricas dos limites do
neodesenvolvimentismo. A crise do capitalismo global e a pressão do mercado
mundial exigem efetivamente uma Reforma Trabalhista no Brasil que reduza o
custo do trabalho. Entramos numa nova conjuntura geopolítica de ofensiva do
capital no plano internacional. Não se trata de discussão técnica, muito menos
de disputa sob os termos jurídicos. O deslocamento da discussão da
terceirização do Congresso Nacional – onde se debatia, por exemplo, o Projeto
de Lei 4330/04 – para o STF, corte constitucional de feição historicamente
liberal-conservadora na discussão trabalhista, é um “golpe politico” não apenas
contra a Justiça do Trabalho, mas contra a democracia brasileira, tendo em
vista tema de tal relevância social deveria ser discutido com a sociedade e com
o parlamento brasileiro. Na medida em que se legitima a terceirização de modo
irrestrita contribuiu-se para ampliar mais ainda o precário mundo do trabalho
no Brasil, corroendo, deste modo, as perspectivas de inserção digna das
gerações futuras no mercado de trabalho.
Finalmente, é
importante esclarecer o seguinte: a expansão da terceirização no Brasil
vincula-se à fase histórica de desenvolvimento do capitalismo global imerso na crise
estrutural do capital. Por “crise estrutural do capital” entendemos a
incapacidade candente do sistema de controle do metabolismo social realizar
suas promessas civilizatórias. O desmonte do Estado de bem-estar social no pólo
mais desenvolvido da civilização do capital – União Européia, por exemplo – é o
exemplo-mor da mutação estrutural do sistema produtor de mercadoria incapaz de
afirmar e ampliar direitos dos trabalhadores.
A partir de 1990, o
Brasil integrou-se no processo de mudança histórica maciça da organização do
capitalismo num plano mundial (a dita “globalização”). Na presente
temporalidade histórica do capital, existe uma tendência de precarização
estrutural do trabalho que faz parte da nova dinâmica do sistema do
capital global, articulando, por um lado, acumulação flexível; e, por
outro lado, acumulação por espoliação. Com o neoliberalismo, a lógica
auto-expansionista do capital imprimiu sua marca nas instituições
jurídico-politicas da ordem burguesa, tornando-as insensíveis aos argumentos
humanísticos e valores sociais. Os Sumos Sacerdotes do mercado clamam pelo
principio da iniciativa privada. Predomina no discurso das personificações do
capital, o pragmatismo de ocasião, que reitera, como destino irremediável, a
adaptação à nova ordem global. A palavra de ordem é flexibilizar as
relações de trabalho.
O desenvolvimento da
acumulação flexível/acumulação por espoliação nos “trinta anos perversos” de
capitalismo global(1980-2010), ocorre no bojo das pressões estruturais para a
redução de custos das grandes empresas capitalistas. Está ocorrendo aquilo que
István Mészáros denominou no livro Para além do capital, de tendência à equalização descendente da
taxa diferencial de exploração.
Nos países capitalistas
do Ocidente, as classes trabalhadoras puderam por muito tempo gozar dos
benefícios da “taxa diferencial de exploração”, inclusive construirão um Estado
social democrático de direitos trabalhistas e cidadania salarial para ampla
maioria da população trabalhadora. Suas condições de vida e de trabalho eram
incomensuravelmente melhores do que as encontradas nos “países
subdesenvolvidos” (como o Brasil, por exemplo). Os países capitalista do
Ocidente eram modelo social de regulação do trabalho e muitos juristas e
estudiosos do mundo do trabalho tomam como exemplo os países do capitalismo
social-democrata. Entretanto, com o desenvolvimento do capitalismo global,
percebemos no plano mundial, a deterioração dos direitos trabalhistas – e do
próprio Direito do Trabalho – sob a ameaça da flexibilização laboral.
No Brasil, como vimos,
a “nova precariedade salarial” é efetivamente um elemento das condições de
deterioração do trabalho, expressando aqui, a “equalização descendente” da taxa
de exploração (por exemplo, o fenômeno do “precariado”, salientado por Guy Standing
é o resultado social, no plano da estrutura de classes, da “equalização
descendente da taxa de exploração” nos países capitalistas europeus).
Percebe-se no plano mundial, que os trabalhadores estão ameaçados em suas mais
básicas condições de existência, não apenas devido o desemprego, mas, como
vimos no caso do Brasil da era do neodesenvolvimentismo, a vigência da “nova
precariedade salarial”, caracterizada pela expansão de relações de trabalho
flexíveis. Os investidores lamentam o Custo Brasil e clamam pela Reforma
Trabalhista. Como personificações do capital, expressam em si e para si,
tão-somente a tendência de equalização descendente do diferencial das taxas de
exploração. O ideal para eles seria aproximar as taxas de exploração do Brasil
das taxas de exploração da China.
Na verdade, o
acirramento da concorrência mundial por conta da entrada da China no mercado
mundial, fez com que o capital social total, nas condições históricas da crise
estrutural de valorização se impusesse sobre a totalidade do trabalho,
obrigando, deste modo, o capital global a promover em cada país, nas últimas
décadas, processos intensos de reestruturação produtiva visando desvalorizar a
força de trabalho e impulsionar a ofensiva contra direitos do trabalhadores
buscando, em ultima instancia, equalizar as taxas diferenciais de exploração. A
fragilização do Estado-nação diante do capital global e a correlação de forças
sociais e políticas, com a crise do sindicalismo e a corrupção dos partidos de
esquerda – principalmente da esquerda social-democrata, que incorporou a agenda
neoliberal, colocam definitivamente o trabalho organizado, na defensiva.
A tendência de equalização
descendente da taxa diferencial de exploração leva ao rebaixamento
civilizatório. Para um país capitalista como o Brasil, isto assume
dimensões de perversidade social, tendo em vista o cenário histórico de
desigualdades social no País. Enfim, na era da terceirização, aprofunda-se, por
um lado, a crise do Direito do Trabalho e o declínio da instituição Justiça
do Trabalho e das cortes constitucionais (como o TST). Caso o STF libere a
terceirização como almeja o empresariado, a Justiça do Trabalho receberá um
golpe histórico. A expansão das relações de trabalho flexíveis como ocorreu na
década de 2000, torna mais opaca a luta de classes com a invisibilização das personas
do capital. O disfarce da relação de emprego oculta a subalternidade estrutural
do trabalho ao capital e reforça a concorrência entre os próprios
trabalhadores. Portanto, a terceirização não se restringe a ser um mecanismo
de rebaixamento salarial, mas é um mecanismo de ocultação ideológica,
descaracterizando o conflito antagônico capital versus trabalho.
Nas condições
históricas de equalização descendente da taxa diferencial de exploração,
inaugurou-se a era do declive civilizatório do capital, que contém em
si e para si, não apenas a corrosão de direitos dos trabalhadores, mas a
degradação da consciência de classe. É por isso que, hoje mais do que nunca, a luta
de classe se impõe – no plano ideológico – como elemento de resistência
estratégica visando desmontar no plano do pensamento, as ilusões liberais ou
social-democratas, que imaginam ser possível um capitalismo humanizado.
Pelo contrário, na era da crise estrutural de civilização do capital, urge
afirmar os valores do socialismo e resgatar a tarefa politica de democratização
radical da sociedade capaz de resgatar efetivamente a dignidade da pessoa
humana que trabalha.
(*) Giovanni Alves é doutor em
ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da
Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em
pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela
Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros
e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário)
mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e
subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).
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