Profissão juiz: Do exercício do poder estatal e da a
garantia da independência funcional
(*) Jorge Luiz Souto Maior
Nas últimas duas manifestações contra o aumento da
tarifa do transporte público em São Paulo (uma que foi da Paulista à
Prefeitura, e outra que ocorreu no bairro do Tatuapé), muitos fatos me chamaram
a atenção, mas alguns, particularmente, me atingiram mais de perto.
No primeiro deles, algumas pessoas se chegaram a
mim, quando o ato estava se arrumando para iniciar a caminhada, e disseram:
“vamos ficar perto de você, pois você é juiz e se a polícia vier nos bater você
nos protege!” No segundo, o interlocutor foi direto: “Se me prenderem, você me
solta?” E, finalmente, o terceiro, indagou o que eu achava que ia acontecer
durante o percurso, já que eu, sendo juiz, teria conhecimento de como a polícia
agiria…
Essas falas refletem bastante o sentimento que impera
entre os manifestantes, que é o de medo da polícia, considerando que ela está
lá, de fato, pronta para atacá-los. Na visão dos manifestantes, a polícia fica
apenas esperando uma oportunidade qualquer para agredi-los, quando não está em
concreto preparando a situação para tanto. Mas não é bem disso que pretendo
falar…
De fato, as falas referidas conferem-me a
oportunidade para um importante esclarecimento: juiz é apenas o nome que se dá
ao profissional que exerce o poder de dizer o direito (e fazer aplicá-lo),
dentro dos limites institucionais de sua atuação. Bem verdade que o exercício
do poder estatal e a garantia da independência funcional são características
próprias da profissão do juiz, mas elas se limitam ao ato da prestação
jurisdicional, dentro da lógica de prestação de serviços à sociedade (e de
forma mais ampliada à humanidade, para não se submeter às influências de
fatores econômicos e políticos locais), que se concretiza na atuação
processual.
O poder e as garantias conferidas ao juiz não são
pessoais, mas institucionais, e, portanto, fora da atuação profissional, o juiz
não as detém. Aliás, não sendo pessoais, não conferem ao juiz uma cidadania
diversa das demais pessoas, mesmo quando está no exercício da profissão. O
juiz, portanto, é um cidadão como outro qualquer, dentro e fora da jurisdição,
ainda que alguns juízes imaginem que as garantias da jurisdição lhe confiram
alguma superioridade, que lhe integra como um atributo pessoal, considerando,
inclusive, que as possam exercer nas relações sociais, para, por exemplo, não
pegarem fila, não pagarem multa de trânsito, não perderem o vôo etc.
Participando de uma manifestação, jogando futebol,
sentado à mesa de um bar, no trânsito, utilizando-se de transporte público, no
cinema, na fila do banco, torcendo para o Corinthians (o que “é de lei”), o
juiz não é juiz, sendo correto identificá-lo se não pelo nome ao menos pela
forma generalizante de manifestante, motorista, passageiro, torcedor, jogador
(craque, esforçado ou perna de pau) etc., jamais como juiz.
Assim, o juiz, participando de uma manifestação,
fora de sua jurisdição, não pode “soltar” manifestante ou intervir na atuação
das instituições que, na situação, detenham, de fato e de direito, autoridade.
Certo que como qualquer cidadão, o juiz, naquele instante da vida civil, um
manifestante, pode (e deve) denunciar os abusos das autoridades, mas no geral,
na emergência de eventual tumulto gerado em uma manifestação, será mais humano
que tente se proteger, para não ser pisoteado ou atingido por balas de
borracha.
Durante quase 22 anos de magistratura sempre
separei de forma bastante nítida o cidadão que exerce a profissão de juiz,
atuando no processo, do cidadão que participa das demais relações sociais.
Tenho, portanto, a plena convicção de que devo me submeter às situações que
atingem a todas as pessoas nas mesmas circunstâncias, enfrentando fila,
esperando no trânsito, andando de ônibus (ou metrô), jogando bola etc. Abomino,
por conseguinte, qualquer prática de “carteirada” ainda que se a entenda por
uma “boa causa”, até porque essa postura não representa o efeito de mera
compreensão pessoal, sendo, isto sim, uma imposição da ordem jurídica.
O outro lado dessa moeda é que é exatamente essa
separação que me permite, como cidadão, participar de atos da vida social,
sobretudo daqueles que me auxiliem a perceber a realidade a partir do olhar do
oprimido, o que, ademais, se reflete em benefício da atuação profissional,
notadamente para um juiz que lida com causas sociais, em especial, trabalhistas.
Fato é que se o juiz não pode atuar como juiz fora do processo, isto é, na
realidade social, por consequência não é possível lhe negar a cidadania para a
prática de atos que se permitam a todos os demais cidadãos.
Em conclusão, o que espero dos valorosos
companheiros manifestantes e demais lutadores sociais é que me vejam como um
igual e como alguém que, acreditando na causa, estará sempre disposto a
engrossar a multidão, para vibrar com as vitórias e sofrer junto nas derrotas.
São Paulo, 23 de janeiro de 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário