Não acabou!
(*) Jorge Luiz Souto Maior
A manifestação de sexta-feira, no centro da cidade de
São Paulo, organizada pelo MPL e contando com a integração de diversos
coletivos cada vez mais atuantes, ao contrário da anterior, realizada no bairro
do Tatuapé, não chegou ao final[1], mas nem
por isso foi menos bonita e empolgante. Aliás, a água tão em falta em São Paulo
em razão de reiteradas irresponsabilidades administrativas, deu o ar de sua
graça em forma de chuva, expondo o espetáculo das contradições.
Com efeito, em cena digna de filme de Fellini, parecia
que só chovia nos manifestantes, mas não como punição e sim como um prêmio pela
realização do ato, já que a água se tornou esse bem extremamente raro e caro em
nossa realidade. Assim, quanto mais chovia mais eram regadas as esperanças dos
manifestantes e mais animados e fortes eram os gritos que expressavam.
Em volta, as pessoas que olhavam a manifestação passar,
escondendo-se da chuva, pareciam esturricadas e tristes. Quanto aos policiais
não integrados à tropa de choque, que acompanhavam os manifestantes lado a lado
sem ar de muita coisa, por mais que chovesse não se molhavam, talvez porque só
chovesse mesmo sobre os manifestantes, talvez porque estivessem em outra
dimensão, quem sabe acumulando a visualização dos “bicos” que ainda teriam que
fazer, saindo dali, para compensar os baixos salários.
Depois de quase duas horas de manifestação, um tumulto,
provocado por uma bomba cuja autoria do lançamento ninguém ainda conseguiu
esclarecer, foi o suficiente para que a tropa de choque resolvesse finalizar o
ato: saiu atirando bombas de gás em todo mundo e para todo lado.
Com a dispersão, andando pelas ruas e no metrô, foi
interessante ver a separação muito nítida que se estabeleceu entre quem tinha
participado do ato, que estava encharcado, e quem estava, digamos assim,
vivendo a sua vida normal, sem muito contato recente com a água, carregando
certa desesperança.
A diferença do estado físico refletia claramente uma
distinção no estado de espírito. Uma hipótese para isso é que a falta d’água,
aliada às premências da sobrevivência, anestesia a mente e mentes anestesiadas
sequer são capazes de se indignar contra a falta d’água, que dirá, então, lutar
por direitos alheios, como fazem os integrantes do MPL e dos demais grupos que
participam das manifestações, notadamente no que se refere às causas da classe
trabalhadora.
Nesse quadro sobressai ainda mais a importância das
manifestações, que acabam se apresentando como um rio entrecortando a cidade de
concreto, seca e ao mesmo tempo quente e fria, irrigando as consciências e os
necessários sentimentos de indignação e de solidariedade.
São Paulo, 24 de janeiro de 2015.
(*) Jorge Souto Maior, Magistrado do Trabalho e
Professor Universitário (USP)
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