Terceirização: o risco de a Constituição não valer
para os trabalhadores
(*) Grijalbo Fernandes Coutinho
Tem sido enorme a pressão empresarial para o Estado
autorizar a terceirização generalizada em todas as atividades econômicas. Não
raro, até mesmo integrantes dos poderes proclamam que o tema deve ser objeto de
rápida decisão porque assim esperam os agentes econômicos.
Passam a enganosa impressão, com as suas falas
oficiais, que a medida é necessária para proteger os empregados.
Ora, a terceirização encontra-se interpretada ou
regulamentada desde 1993, ao menos sob a configuração jurídica que agora se
pretende alterar no âmbito do Parlamento e STF, com reduzidas modificações ao longo
dos anos no conteúdo da Súmula no 331, do TST. Com a celeridade almejada buscasse evitar a ampliação do debate público na sociedade brasileira sobre os efeitos
da terceirização para o conjunto das relações de trabalho. Quanto menor for a
mobilização popular, maiores serão as chances da aprovação do trabalho
terceirizado sem estardalhaço sindical.
Inegavelmente, o trabalho e todas as suas
instituições protetivas padecerão, na hipótese de a terceirização ser liberada
de forma generalizada.
O PL4.330/04, previsto para ser votado nos
próximos dias, autoriza a terceirização sem freios, em contraposição aos
limites impostos pela interpretação contida na Súmula no 331 do TST, que hoje a
admite apenas na atividade-meio. A referida iniciativa parlamentar apoiada por representações
empresariais tem, como princípio nuclear, a liberação da terceirização na atividade-fim,
acompanhada da responsabilidade subsidiária das empresas tomadoras.
Os demais dispositivos
da proposta expressam apenas o desejo de escamotear a essência do duro golpe desferido
contra o Direito do Trabalho. São disposições aparentemente protetoras da
execução do contrato de prestação de serviços firmado entre empresas,
responsáveis, contudo, pela legitimação do fenômeno em sua vertente mais
predatória, de modo que não apenas sejam intensificadas as condições de
trabalho degradantes hoje oferecidas aos trabalhadores terceirizados, como
também reste viabilizada a extensão das perversas condições ao grande grupo
obreiro que irá fatalmente compor o rol dos terceirizados, aumentando,
portanto, os níveis de proletariedade social.
A lógica do tudo terceirizável, no âmbito das relações
de trabalho, legitimará o funcionamento das grandes empresas e dos conglomerados
econômicos praticamente sem empregados formais em seus respectivos quadros de
pessoal. O modelo, com certeza, não interessa aos trabalhadores, que passam a
negociar exclusivamente com intermediários os quais atuam como mera correia de
transmissão do sistema, do ponto de vista mais geral.
Diferentemente do discurso dominante, sem qualquer hesitação,
a proposta em debate legitima o modo de gestão patronal terceirizante em sua
vertente mais perversa contra os trabalhadores.
Não poderia ser pior, tanto
para a classe trabalhadora, quanto para a sociedade brasileira comprometida com
a Justiça Social.
Tanto é assim que temas básicos capazes de, em
tese, minimizar os efeitos danosos de ação inexoravelmente redutora de direitos
sociais sequer são cogitados na discussão legislativa, tais como, restrição do trabalho subcontratado às
atividades de natureza transitória, responsabilidade solidária de todas as
empresas integrantes do processo produtivo, isonomia absoluta entre trabalhadores centrais e
terceirizados e enquadramento sindical obreiro com base na atividade da
tomadora de serviços.
As condições laborais, a partir de eventual
terceirização generalizada, serão muito mais degradantes, tudo em nome da
competividade e do consequente aumento das taxas de lucro.
A terceirização existe não para modernizar o
processo produtivo senão para arrancar até o limite extremo o potencial
criativo, combativo e gerador de riquezas da força de trabalho, que passará a ser
remunerada nos níveis mais baixos possíveis no âmago dessa nova marchandage comercializada
midiaticamente como solução para o mundo do trabalho infernal criado pelo próprio
modo de intermediação e subcontratação de mão de obra, a ser inexoravelmente aprofundado,
caso vingue o sonho de consumo atual das forças hegemônicas da economia.
Em vez de banir o mal maior das relações de trabalho,
perseguese, concretamente, transformá-lo na regra geral, pouco importando o
destino das pessoas que sofrem intensamente com o impacto da terceirização em
variadas dimensões de suas vidas, bem como de outros milhões de serem humanos
trabalhadores que também pegarão brevemente a fila do corredor da morte,
opressão, humilhação, do decepamento de partes do corpo, das doenças laborais e
da precariedade absoluta do ambiente de trabalho permeado por contundente
intolerância social com os sujeitos construtores da riqueza nacional.
Junto ao STF, as entidades empresariais desenvolvem
duas teses centrais para alcançar a escancarada terceirização, quais sejam,
liberdade de contratação e ausência de lei vedando o trabalho subcontratado na
atividade fim (art. 5o, II, da CRFB, “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”).
Invocar a liberdade de contratação para autorizar a
terceirização generalizada ou qualquer outra forma de precarização das
condições de trabalho seria extremamente adequado a partir do prisma jurídico
vigente durante o auge do liberalismo econômico, nos séculos XVIII e XIX, na Europa.
Com base em tal paradigma, crianças foram submetidas ao terror das condições degradantes
geradoras de suicídios, acidentes graves e mortes ao lado das máquinas. Mulheres e homens trabalhadores sofreram maus
tratos diversos no ambiente laboral como vítimas de crimes praticados em nome
do lucro máximo, embora pouco pudessem fazer, do ponto de vista jurídico, porque
a liberdade de contratação assegurava aos patrões arrancarlhes até a última
gota de sangue, em contraste com a opulência dos donos das máquinas.
Entre o século XIX e os dias atuais mudou substancialmente
o panorama econômico, político e jurídico no mundo inteiro. Eclodiram duas guerras
mundiais ocasionadas pelo liberalismo, revoluções sociais foram feitas para
assentar no poder a classe trabalhadora e explodiram grandes crises econômicas
e financeiras, tudo resultando no reconhecimento público, por parte de um
capital envergonhado pela herança deixada, do completo fracasso da veia
liberal, em todos os campos do conhecimento humano, nos dois séculos de
existência de modelo fincado na absoluta liberdade de contratação.
Em outros termos, o pressuposto da livre
contratação morreu juridicamente há quase um século. Nada é mais arcaico ou
ultrapassado do que o seu ressurgimento para emprestar fantasmagórico conteúdo
jurídico às novas formas de exploração da mão de obra humana, quando a essência
do Direito do Trabalho reside exatamente na superação da antiga teoria
civilista da liberdade contratual, sobretudo na perspectiva da efetividade de
seus princípios orientadores protetivos do hipossuficiente.
Relativamente a outra matriz jurídica invocada,
cabe dizer que, caso pudesse a terceirização ser implementada em razão do
inciso II do artigo 5º da Constituição, cujo conteúdo próprio das aspirações de
uma época histórica tem integrado há muito tempo textos constitucionais
anteriores, qual seria o motivo de termos leis cuidando da autorização do
trabalho terceirizado em atividades específicas, no Brasil e no mundo?
A terceirização é conduta absolutamente
excepcional, estranha e repudiada historicamente pelo Direito do Trabalho. A
sua existência jurídica depende, em primeiro lugar, de regulação da matéria
pelo Poder Legislativo, sem prejuízo, contudo, do debate posterior acerca de
sua compatibilidade ou não com o conjunto harmônico do ordenamento.
Para além e também em respeito às perspectivas
jurídico-laborais frontalmente contrárias à subcontratação de trabalhadores,
uma vez que o conhecimento jurídico jamais deve ignorar as tragédias sociais
causadas por variados fenômenos, pesquisas acadêmicas realizadas nas últimas décadas,
bem como a atuação da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério
Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, revelam que a terceirização, por
força da sua razão primordial de ser ancorada na drástica redução de custos,
está umbilicalmente associada ao caos no ambiente de trabalho. Adoecimentos,
graves acidentes com mortes e mutilações, salários baixíssimos, jornadas
intensas e extenuantes, trabalho análogo ao de escravo, direitos imateriais
intensamente violados, invisibilidade social, esfacelamento sindical e degradação
geral das condições de trabalho simbolizam tragicamente o que significa de fato
a crueldade da terceirização.
Na hipótese de chancela da terceirização na atividade-fim, o trabalho será tratado como o lixo das relações sociais por
parte de quem lucra muito com o seu resultado, dado o desprezo a ser conferido
a esse direito humano fundamental próprio da parte numérica mais expressiva da sociedade
brasileira, a classe trabalhadora.
Detendo 25% do mercado de trabalho (Dieese, 2011),
caso reste autorizada na atividade-fim, a terceirização ocupará espaço muito mais
expressivo rapidamente, aumentando, sem dúvida, a tragédia social assim
constada a partir de sua prática no Brasil.
Humilhações, mortes, adoecimentos, salários
irrisórios, jornadas intensas e extenuantes, desemprego, violação de direitos
imateriais, segregação, trabalho precário e degradante, trabalho análogo ao de
escravo e outros graves problemas sociais serão intensificados em grau
exagerado, a ponto de os integrantes das instituições públicas da regulação e proteção
do trabalho, incluindo os auditores-fiscais, procuradores e juízes do trabalho,
logo constatarem a sua absoluta inutilidade para fazer valer a justiça social
inscrita como compromisso fundamental da Constituição de 1988.
Valorização do trabalho como princípio fundante da República,
respeito à dignidade humana do trabalhador, necessidade da existência de
ambiente saudável do trabalho, combate a qualquer tipo de trabalho degradante,
função social da propriedade, livre iniciativa respeitando o primado do
trabalho, entre tantos outros princípios e dispositivos previstos na
Constituição Federal e 1988, far-se-ão tão eficazes quanto os direitos humanos
civis clássicos durante a ditadura civil militar de 1964-1985.
Liberada a terceirização na atividade-fim e em
todos os setores econômicos, a Constituição de 1988 será de um vazio estrondoso
e monumental em termos de Direitos Humanos. O risco é de o texto constitucional
não valer para os trabalhadores, porquanto os direitos sociais ali previstos
terão nenhuma efetividade.
O Estado Democrático de Direito perderá
completamente o seu cunho social e a sua face cidadã em relação à classe
trabalhadora. Nascerá, em contrapartida, o Estado Democrático de Direito do
Capital, cujo seu primeiro direito fundamental consagrará a terceirização sem
limites como mecanismo de avassalador aniquilamento de direitos dos personagens
antes considerados humanos trabalhadores.
[*] Grijalbo Fernandes Coutinho, juiz do do
trabalho de segunda instância no DF e Tocantins(TRT 10), mestre em Direito e
Justiça pela UFMG, autor da pesquisa e do livro “T”(LTR, 2015), expresidente
da Anamatra e da ALJT – Associação Latino-Americana de Magistrados do Trabalho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário