Caminhoneiro:
Profissão que mais mata pode ficar ainda mais perigosa
Leonardo
Sakamoto
Com
nova lei entrando em vigor, caminhoneiros passarão a dirigir por mais horas,
aumentando riscos nas rodovias para si mesmos e os outros. A mudança é
resultado do movimento que parou as estradas e da pressão do agronegócio. Vale
a pena a leitura para entender as reivindicações dos caminhoneiros envolvidos
nos protestos e a situação crítica dos trabalhadores que transportam
cargas pelo país. A matéria é de Piero Locatelli, para a Repórter Brasil:
Aos
62 anos, o caminhoneiro José Pedro Carneiro passava noites acordado dirigindo
seu caminhão. Para cumprir a jornada de trabalho necessária para pagar as
contas, ele abusava do uso de rebite, comprimido de anfetamina tomado para não
dormir ao volante. Em 5 de janeiro deste ano, sofreu seu terceiro infarto e
faleceu.
Seu
filho, Alessandro Carneiro, de 38 anos, estava acordado há trinta horas quando
contou a história de seu pai. Em um posto de gasolina na rodovia Dutra, em
Guarulhos, admitiu que seu trabalho no volante de um caminhão é mantido graças
ao uso do mesmo remédio que matou José Pedro. “Se não toma [rebite], não
aguenta. Não existe isso de dirigir tanto sem tomar,” explica.
Longas
jornadas, como a de Alessandro e José Pedro, explicam por que a profissão de
caminhoneiro é a que mais mata no país. Foram 2.579 mortes entre 2005 e 2013,
segundo dados do Ministério da Previdência Social, mais que profissões ligadas
à construção civil e à energia elétrica. Em 2013, 291 caminhoneiros morreram
atrás do volante, mais de dez por cento dos acidentes fatais no trabalho em
todas os setores.
Esses
riscos devem aumentar no dia 17 de abril, quando entra em vigor a nova Lei do
Caminhoneiro. A legislação foi uma resposta ao movimento que trancou rodovias
em janeiro e fevereiro deste ano. O grupo representava parte dos 2,2 milhões de
caminhoneiros no país e tinha o apoio do setor agropecuário. Uma de suas
principais reivindicações era trabalhar mais horas por dia.
Um
movimento de trabalhadores que protesta pela extensão de sua jornada pode
parecer uma contradição. A origem desse desejo é o pagamento de comissões. O
profissional ganha por viagens ou pelo cumprimento de metas, como a entrega de
uma carga antes de um horário estabelecido. Quanto mais rápido rodar pelas
estradas, quanto mais viagens fizer, mais ele recebe.
O
salário de Alessandro, por exemplo, é de R$ 1.700 por mês, mas grande parte é
recebida “por fora”. Ele ganha 5% do valor de cada frete pago ao seu patrão,
dono de seis caminhões. Trabalhar sem dormir, diz Alessandro, significa “dois
ou três mil reais” no final do mês.
Mais trabalho, menos descanso, mais risco – Caminhoneiros
se dividem sobre o aumento da jornada de trabalho. Parte deles, organizados em
sindicatos, reclamam que a nova lei diminui a sua segurança. Do outro lado,
caminhoneiros donos do seu próprio caminhão, os autônomos, foram a principal
força favorável ao aumento, apoiados por empresários de logística e do
agronegócio.
A
Lei do Caminhoneiro, como é chamada a nova legislação, tira direitos adquiridos
da Lei do Descanso, como é conhecida a lei anterior. A nova regra permite que o
motorista dirija 12 horas em um único dia, contra dez da anterior. Além disso,
o caminhoneiro só será obrigado a parar na estrada e descansar a cada cinco
horas e meia. Antes, ele deveria ter intervalos de quatro em quatro horas.
A
legislação antiga também obrigava o trabalhador a descansar onze horas seguidas
após cada dia de trabalho. Com a nova lei, essas onze horas podem ser
distribuídas em períodos menores. Um motorista poderá dirigir, por exemplo,
após dormir somente duas ou três horas.
A
segurança do trabalhador regrediu em relação à legislação anterior, segundo
Renata Namekata, coordenadora do Grupo de Fiscalização do Trabalho em
Transportes do Ministério do Trabalho (Getrac). “O excesso de horas na estrada
aumenta a fadiga e a dificuldade de se concentrar, colocando em risco a vida do
trabalhador e de outros que passam pela rodovia.”
A
distância é outro fator que agrava a situação dos motoristas. Jeferson Souza
Monteiro, de 38 anos, diz que a desorganização do seu trabalho o levou a se
afastar da esposa e filhos, que moravam em São Paulo. “Eu fazia uma viagem para
o nordeste e ficava dois, três meses rodando. Chegava em Recife, ligava para o
supervisor e ele me mandava ir para Fortaleza. De lá ia até o Mato Grosso e
subia para Brasília. Não voltava nunca,” lembra o motorista. “Eu pedia ao
supervisor para vir embora para casa, pois queria ver minha família, meus dois
filhos pequenos. Só que era difícil. Tinha que arrumar uma carga para poder
levar para São Paulo.”
Dívidas e anfetaminas: autônomos sob pressão – A
pressão para dirigir o máximo e mais rápido possível é ainda maior sobre os
trabalhadores autônomos, donos de seu próprio caminhão que são subcontratados
por transportadoras maiores em terceirizações muitas vezes ilegais. Como
recebem o frete diretamente, a relação entre pisar mais no acelerador e receber
mais dinheiro é ainda mais clara.
José
Pedro era um destes caminhoneiros autônomos. Alessandro lembra que a pressão
para fazer viagens e pagar o financiamento do caminhão prejudicou a saúde do
seu pai. “Meu pai tomava rebite para pagar o caminhão,” diz Alessandro. “Eu
dizia para ele parar de fazer tanto isso, mas não tem jeito, ele tinha que
pagar.”
Autônomos
são cerca de 40% do total dos profissionais no país, uma frota de 861 mil
caminhoneiros segundo dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres.
Estes trabalhadores, junto aos seus sindicatos, foram os mais ativos nas greves
do mês de fevereiro. Desta forma, o governo atendeu outras duas das suas
reivindicações: a diminuição do pedágio para caminhões vazios e a suspensão por
um ano do pagamento do financiamento de caminhões junto ao BNDES.
O
setor agropecuário também pressionou pela mudança da lei, que contou com o
apoio de entidades do setor, como a Confederação da Agricultura e Pecuária
(CNA). O maior interesse do setor é de abaixar os preços do frete, responsável
por escoar mais de dois terços da produção do país. Para a entidade, a lei
“pode reduzir os custos de frete e o preço final dos alimentos” e fixa regras
mais “compatíveis com a realidade do país.”
No
Congresso Nacional, o projeto foi elaborado por deputados ligados ao setor. A
relatoria era de Valdir Colatto (PMDB-SC), ex-líder da Frente Parlamentar
Agropecuária, a bancada ruralista. O setor já pressionava contra a aprovação da
Lei do Descanso, e o novo projeto teve apoio unânime da bancada de 169
congressistas.
Empresas
logísticas, organizadas em sindicatos patronais, também pressionaram pela
aprovação da lei. A Federação das Empresas de Transportes de Carga do Estado de
Minas Gerais, por exemplo, comemorou a aprovação da lei em seu site. “A Lei
atende todos os pleitos solicitados pelos caminhoneiros e transportadores. Isso
comprova que com a união de forças dos sindicatos e entidades, podemos alcançar
ainda mais benefícios para o setor.”
Caminhoneiros
ouvidos pela reportagem tinham argumentos semelhantes aos do agronegócio e das
transportadoras. “Oito horas com caminhão carregado não roda nem 400
quilômetros. Trabalhar só isso aí não tem como, é mito. E eu duvido que isso vá
acontecer um dia. Se acontecer, para o Brasil, a logística não suporta,” diz o
caminhoneiro autônomo Leonardo Teixeira, de 33 anos.
O
discurso homogêneo entre patrões e empregados acontece devido à forma como o
setor está organizado, segundo o auditor-fiscal do trabalho Ademar Fragoso Jr.
“Se a remuneração é em termos de produtividade, o próprio caminhoneiro fica do
lado do empregador. Ele enxerga que quanto mais ele trabalha, mais dinheiro vai
ter. Então, quer dirigir, não quer ficar parado,” diz Fragoso.
“Lei da escravidão do caminhoneiro” – Entidades
e órgãos públicos se mobilizam para derrubar a nova lei, que consideram um
grande retrocesso. “Esta lei é uma das maiores violações de direitos humanos já
praticada pelo Congresso Nacional, e com o apoio da presidência da República” ,
diz o procurador do trabalho André Melatti. “O pior é ver na mídia que a lei
vai beneficiar os caminhoneiros, os manifestantes nas estradas. É a lei da
escravidão do caminhoneiro.”
A
Federação dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado de São Paulo
acredita que a mudança não atende à maioria dos caminhoneiros. Valdir Pestana,
presidente da Federação, define a greve como um “locaute” para atender aos
interesses dos donos de caminhões e do agronegócio.
Diante
da derrota no Congresso Nacional, o Ministério Público do Trabalho e sindicatos
se mobilizam para derrubar a lei no Supremo Tribunal Federal (STF). A federação
promete entrar com uma ação alegando a incompatibilidade da nova lei aos
direitos presentes na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Já o procurador
Melatti pretende argumentar no STF que o Brasil não poderia retroceder em
direitos sociais, conforme tratados assinados pelo país.
Alheio
a essa disputa jurídica e trabalhando acima do permitido em todas as leis,
Alessandro diz que a legislação “não faz diferença” na sua vida. Ele entrou na
profissão influenciado pelo pai, há 12 anos. Agora, busca outro emprego.
“Não quero ir até o fim.”
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