
Ricardo
Tadeu Marques da Fonseca em Tornou-se
desembargador do TRT-PR em 2009.
A
superação do 1.º juiz cego do Brasil
Ricardo Tadeu Marques da Fonseca venceu as próprias limitações e hoje é desembargador
do TRT-PR
Texto publicado na edição impressa
de 07 de abril de 2015
As
vistas de Ricardo Tadeu Marques da Fonseca se escureceram definitivamente
quando ele tinha 23 anos. Cursava, então, o terceiro ano de Direito na
tradicional Faculdade do Largo São Francisco, na Universidade de São Paulo
(USP). Com o apoio de colegas – que gravavam em fitas cassete a leitura dos
livros, para que ele pudesse estudar –, Fonseca se formou com louvor. Seria
apenas mais um capítulo da história de superação, estoicismo e trabalho. Pouco
mais de duas décadas depois, ele se tornava o primeiro juiz cego do Brasil.
Ricardo
Tadeu Marques da Fonseca ocupa uma vaga de juiz federal destinada ao quinto
constitucional, reservado a membros do Ministério Público. Fonseca foi escolhido
a partir de uma lista previamente aprovada pelo Conselho Superior da Justiça do
Trabalho.
Fonseca
foi nomeado desembargador do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná (TRT-PR)
em 2009, indicado pelo então presidente Lula (PT). Com perfil sério e decidido
de quem teve que brigar para vencer as adversidades, imprimiu seu ritmo de
trabalho à equipe. Em quatro anos, zerou a fila de mais de mil processos que
aguardavam julgamento. Analisa, em média, 400 casos por mês. “Aqui, o trabalho
se impôs”, ressalta.
Nas paredes
da sala, um quadro estilizado de São Francisco de Assis ganha destaque. Imagens
e gravuras do santo também estão em outros cantos. Apesar de ser espírita,
Ricardo Tadeu Marques da Fonseca gosta do exemplo do frade italiano que viveu
no século 12. “Me agrada essa ideia de ser um ‘instrumento de Deus’. Toda vez
que vou fazer algo importante, rezo a oração do Pai Nosso”, confessa.
Longe dos
tribunais, o desembargador tem outra paixão: a música. Passa noites ouvindo
programas de música clássica, mas não deixa de estar atento à MPB (aos velhos e
novos nomes). Ele próprio canta e toca violão – jura que o faz muito bem.
Chegou a se apresentar duas vezes na TV Educativa, cantando ao vivo “Cordas de
Aço” (de Cartola) e “Apaga o fogo, Mané”, (de Adoniran Barbosa). “Este lado é
importantíssimo. Direito é técnica; Justiça é arte”, filosofa.
Fonseca
veio a Curitiba em 2002, para cursar doutorado na Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Nesta época, contratou duas “ledoras”, que liam os livros para
ele. “Nesta época, vi tudo que queria: [Max] Webber, [Karl] Marx,
Montesquieu...”. Ele só lamenta não haver variedade de áudio-books de
literatura brasileira.
Com duas
filhas, Fonseca diz que um dos pontos altos de sua vida foi a posse como
desembargador, da qual o então presidente Lula fez questão de participar. Nunca
um presidente havia participado de um evento oficial como este, em um tribunal.
“Foi uma grande honra, porque o Lula veio aqui para sacramentar a quebra de um
tabu”, destaca.
Para
suprir a falta da visão, teve de se adaptar e criar um método próprio. Em sala,
uma assessora lê os autos em voz alta. A partir de então, Fonseca memoriza o
caso, destacando palavras-chave. No tribunal, a servidora menciona as
palavras-chave e pronto: o processo brota na mente do desembargador que, então,
pode dar andamento ao julgamento. “Ela é meu olho nas sessões”, sintetiza.
Desta
forma, o desembargador se consolidou avesso a qualquer sentimento de pena ou de
incapacidade. “Eu sempre quis ser juiz e nunca acreditei que não iria
conseguir”, diz. Menciona outros grandes que superaram deficiências – como Beethoven
(que compôs a nona sinfonia depois de surdo), o escultor Aleijadinho e o físico
Stephen Hawking. “Não existe o ‘não pode’. Tudo é método. É questão de se
encontrar o método adequado para fazer o que se quer.”
As
dificuldades, no entanto, começaram já nos primeiros instantes de vida. Fonseca
veio ao mundo prematuramente – aos 6 meses de gestação. Por isso, nasceu com
retinopatia da prematuridade, doença que lhe deixou com baixíssima visão.
Enxergava apenas borrões coloridos, sem contornos nem detalhes. “Eu não
distinguia rostos ou flores. Tinha uma visão impressionista”, define.
Filho de um
executivo de multinacional e de dona-de-casa, Fonseca teve as primeiras lições
ainda em casa. Em meio a brincadeiras, a mãe o ensinou a ler e a fazer as
primeiras contas, grafando grandes letras e números em uma lousa. Quando veio a
idade escolar, a família optou por matriculá-lo em um colégio normal, e não em
escola especial.
Como não
conseguia ler os livros, as professoras copiavam a matéria em letras maiores.
“Foi um esforço maravilhoso da minha mãe, que nunca me deixou pensar que eu era
incapaz, que eu não podia. Eu sempre pude”, observa.
Da
rejeição à carreira no MPT do Paraná
Em 1990,
Ricardo Tadeu Marques da Fonseca foi aprovado em um concurso para ocupar uma vaga
de juiz no Tribunal Regional de São Paulo (TRT-SP), então presidido por Nicolau
dos Santos Neto, o “Lalau”. Foi desclassificado por não enxergar. “Alegavam que
um cego não poderia ser juiz. Aquilo me bateu forte, porque eu não esperava
algo semelhante da Justiça”, disse.
Depois de
uma semana sem dormir, deu o caso por sepultado. Voltou aos estudos e, no ano
seguinte, foi aprovado em sexto lugar em um concurso para o Ministério Público
do Trabalho (MPT) – do qual participaram mais de 4,5 mil candidatos. Em 18 anos
na instituição, trilhou uma carreira destacada, primeiro como promotor, depois
como procurador.
Deu de
ombros à sua condição e foi à campo. Participou de vistorias, fiscalizações e
investigações. Em uma delas, ele e sua equipe fizeram campana em uma fazenda
que mantinha 37 mil trabalhadores, no interior paulista. Descobriram que os
lavradores eram pulverizados com agrotóxicos antes de entrarem nos pomares de
laranja.
“Eu mesmo
tomei banho de veneno para comprovar que aquilo afetava a pele dos trabalhadores”,
conta. “Eu nem lembrava que era cego. Eu era só um procurador atuante, querendo
fazer meu trabalho da melhor forma possível”, acrescenta.
Fonseca
promoveu incontáveis audiência públicas na região de Campinas, São Paulo,
orientando empresas quanto aos menores-aprendizes. “Eu consegui fazer com que
se registrassem dez mil ‘guardinhas mirins’, em contratos formais de
aprendizagem”, aponta. Esta atuação virou referência para a lei federal 10.097,
a lei da aprendizagem.
Em 2006,
foi convidado a integrar o grupo que redigiu a convenção internacional sobre o
direito da pessoa com deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU), em
Nova Iorque. Refuta o rótulo de “defensor dos deficientes”. Diz defender todas
as minorias. “Ser cego é um atributo, não uma incapacidade. A deficiência não
está na pessoa. Está na sociedade que não dá condições a essa pessoa de fruir
seus direitos”, afirma.
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