“Terceirizações devem acelerar a expansão do
precariado no Brasil”
Data:05/05/2015
em: Brasil
Fotografia:
Arquivo/Carta Capital
Economista com
Ph.D. pela Universidade de Cambridge e professor de Desenvolvimento na Escola
de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, Guy Standing há
tempos alerta para o fenômeno da emergência do precariado, uma nova classe
trabalhadora em formação, caracterizada pela trajetória de perda de direitos
que os reduz à condição de suplicantes, em um mundo marcado pela
“flexibilização” das relações trabalhistas.
Autor do livro O Precariado: A Nova Classe Perigosa (Editora Autêntica,
2013), ele é entusiasta de programas de renda básica, entendido como uma
garantia incondicional e universal, uma vez que os antigos instrumentos de
proteção da socialdemocracia trabalhista acabaram solapados pela onda
neoliberal.
“Se tivéssemos um
novo sistema de distribuição de renda do século 21, não haveria grandes
problemas com a instabilidade do trabalho. Poderíamos inclusive absorvê-la sem
transtornos”, diz, em entrevista por escrito a CartaCapital.
CartaCapital:
Para muitos analistas, o trabalho desempenhado pelo precariado é, por sua
natureza, frágil e instável. Ele costuma estar associado à sazonalidade, à
informalização, ao regime de tempo parcial, ao falso autoemprego, entre outras
formas de trabalho “flexível”. O que distingue o precariado dos demais grupos
sociais?
Guy Standing: A falta de
segurança no trabalho sempre existiu. Isso não é o que define o precariado. Os
integrantes desse grupo estão sujeitos a pressões que os habituaram à instabilidade
em seus empregos e suas vidas. Mas, de forma ainda mais significativa, os
trabalhadores do precariado não possuem qualquer identidade ocupacional ou uma
narrativa de desenvolvimento profissional para suas vidas. E, ao contrário do
antigo proletariado, ou dos assalariados que estão acima no ranking
socioeconômico, o precariado está sujeito à exploração e diversas formas de
opressão por estarem fora do mercado de trabalho formalmente remunerado. Ainda
assim, o que distingue o precariado é a sua trajetória de perda de direitos
civis, culturais, políticos, sociais e econômicos. Eles não possuem os direitos
integrais dos cidadãos que os cercam. Estão reduzidos à condição de
suplicantes, próximos da mendicância, pois são dependentes das decisões de burocratas,
instituições de caridade e outros que detém poder econômico.
CC: Caso o
Parlamento brasileiro aprove a liberação das terceirizações de forma
indiscriminada, que impactos sociais essa medida poderia ter?
GS: O precariado
cresce no Brasil há alguns anos. Acredito que a nova legislação e a
continuidade da terceirização e da subcontratação pelas empresas devem acelerar
este processo, o que pode levar à piora na desigualdade dentro do mercado de
trabalho e intensificar a insegurança social e econômica. Tenho defendido há
algum tempo que, do ponto de vista analítico e político, precisamos fazer
distinções entre as sete formas de insegurança apresentadas em meu livro sobre
o precariado. A insegurança empregatícia refere-se à probabilidade da perda de
uma relação de emprego com um contratante específico. Isso deve ser distinguido
da insegurança no trabalho ou ocupacional. Na verdade, a última é a mais séria.
Se alguém vive uma situação de emprego terrível, ter uma estabilidade de longo
prazo não é atraente.
O problema é,
principalmente, o da insegurança na remuneração. Se houvesse políticas
sensíveis para garantir a segurança da remuneração, como por meio de uma renda
mínima, poderíamos aceitar a insegurança no emprego. A insegurança ocupacional
é de outra natureza, já que buscamos desenvolver uma identidade ocupacional, e
muitos gostariam de fazer o mesmo. A realidade, no Brasil e no mundo, é que
medidas como a nova legislação das terceirizações no País intensificarão todas
as formas de insegurança social e econômica. Esta é a tragédia da
socialdemocracia trabalhista no século 20. Mas o precariado está evoluindo, e
nos levará a novas opções políticas no futuro.
CC: Em seu
livro, o senhor observa que o precariado não é uma classe organizada que luta
pelos próprios interesses. Ao contrário, o grupo parece estar em guerra consigo
mesmo. Um trabalhador temporário e com baixo salário pode ser induzido a pensar
que um trabalhador com direitos é um “parasita de benefícios sociais”. Isso não
favorece a emergência de radicalismos?
GS: Em O
Precariado: A Nova Classe Perigosa, e mais sistematicamente em meu novo
livro, A Precariat Charter (recém-lançado no Reino Unido, sem tradução
para o português), argumento que o precariado até o momento representou uma
classe-em-formação. A maioria de seus integrantes sabe o que não quer, antes de
saber o que quer. Isso está mudando de forma impressionantemente rápida, muito
mais veloz do que durante a emergência do proletariado no século XIX e começo
do século XX. Sim, inicialmente o precariado é dividido internamente, em três
partes que identifico em meu livro: reacionários, nostálgicos e progressistas.
Mas a terceira facção tem crescido de forma relativa e absoluta, e este setor
começa a definir uma nova política progressista, particularmente em países como
Espanha, Portugal, Itália, Grécia e partes da Escandinávia.
Claro, devemos nos
preocupar com os reacionários, aqueles que caíram no precariado depois de
fazerem parte de famílias e comunidades de trabalhadores tradicionais. Eles
tendem a ter pouca instrução, e dão ouvidos ao que chamo de “sirenes do
populismo neofascista”. Eles estão se tornando a infantaria de partidos
populistas de direita, como a Aurora Dourada na Grécia e a Frente Nacional na
França. Mas acredito que muitos dos atraídos para esta direção só o fazem
porque a parte nostálgica do precariado ainda não definiu uma alternativa, uma
perspectiva para o futuro. Meu novo livro trata disto.
CC: Diante da
globalização e da hegemonia do ideário neoliberal, existe alternativa a esse
constante processo de precarização?
GS: Defendo que usemos
o termo trabalho instável ou inseguro, e reservemos a ideia de precariedade
apenas para os suplicantes. Isto é o que define o precariado. Se tivéssemos
instituições e um novo sistema de distribuição de renda do século 21, não
haveria grandes problemas com a instabilidade do trabalho. Poderíamos inclusive
absorvê-la sem transtornos. Devíamos nos distanciar da romantização do trabalho
estável, integral e de longo-prazo. É uma forma real de falsa conscientização.
Para muitas pessoas, certamente é pouco saudável e atraente enfrentar uma vida
de trabalho tediosa e alienante em um emprego, que se aceita apenas por
necessidade. O que é desejável é um conjunto de políticas que permitam a troca
de emprego, diversas combinações de tipos de atividades e de trabalho, e assim
sucessivamente. Sim, há alternativa. Eu a apresento no meu novo livro. O
sistema de distribuição de renda do século 20 quebrou. Precisamos construir um
novo sistema de distribuição de renda e recuperar a Grande Trindade –
Igualdade, Liberdade e Fraternidade – sob a perspectiva do precariado. Esta
luta está apenas começando, mas já começou.
CC: O Brasil
ainda vive um processo de crescimento demográfico. Após 2030, a população
brasileira envelhecerá, porém, de forma bastante rápida. A Europa testemunhou
essas mudanças demográficas há mais de 30 anos. O Brasil pode resistir às
pressões neoliberais de reduzir seus gastos com seguridade social após 2030?
GS: Sim, é claro que o
Brasil pode resistir à lógica neoliberal, se o precariado puder se transformar
em uma força para liderar a oposição ao neoliberalismo. Mas as instituições e
ideologias políticas no País têm de evoluir. Um dos dilemas políticos na Europa
é que os idosos têm sido contemplados com uma parte desproporcional dos gastos
sociais. O Brasil também sofreu um pouco com este problema. Mas na Europa a
situação é pior, pois os idosos têm uma alta tendência de votar nas eleições.
Logo, os políticos não enfrentam as desigualdades etárias dos gastos sociais
por motivos eleitorais. No Brasil, isso é menos provável por causa do
voto obrigatório. Mas o oportunismo político não está ausente.
Acredito que
devíamos dar muito mais atenção para a necessidade de cortar subsídios públicos
para grandes empresas, para os ricos e para a parte mais desenvolvida dos
assalariados. Precisamos fazer uma campanha por uma “fogueira dos subsídios”.
Eles são enormes, distorcidos, encorajam a ineficiência econômica, muitas vezes
são corrompidos e, acima de tudo, são regressivos. Na busca de uma nova
estratégia para a renda mínima, o que é essencial para o precariado, reduzir
subsídios é essencial. Temos de ter em mente que nenhuma outra base de proteção
social seria apropriada para o precariado. A partir daí, os envolvidos poderiam
tolerar toda a insegurança empregatícia, uma caraterística central da
globalização e da revolução tecnológica que estamos vivendo. A abordagem mais
estúpida seria tentar frear as várias formas de relação trabalhista que estão
em desenvolvimento. O precariado poderia aceitar a insegurança no trabalho se
tivesse segurança de renda. Esse deveria ser o acordo.
Fonte: Carta Capital
Texto: Miguel Martins e Rodrigo Martins
Data original da publicação: 05/05/2015
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