O
negociado sobre o legislado
(*) Valdete
Souto Severo
Um
dos tantos reflexos da modernidade é justamente a centralidade do indivíduo. O
homem passa a buscar as verdades em si mesmo. E como perde suas referências
incontestáveis, pois não está mais atrelado à vontade de Deus e da natureza,
precisa ser um sujeito autorreferente. Daí toda a construção teórica moderna
acerca da autonomia como capacidade para negociação. Aliás, é esse conceito de
autonomia, denunciado como falacioso por autores como Marx, Nietzsche ou Freud,
que confere ao homem a liberdade para exercer sua vontade sobre o outro, sobre
o mundo e sobre a natureza. É também ele que permite a mágica pela qual um ser
humano consegue, pretensamente preservando sua autonomia, ser ao mesmo tempo
sujeito e objeto de um contrato. É o que ocorre na relação de emprego: quem
trabalha é sujeito, porque contrata “livremente”, mas também é objeto, porque a
troca se dá justamente entre remuneração e força de trabalho (que não se
desgruda do trabalhador). Essa é a autonomia moderna: liberdade para vender
tempo de vida e saúde (basta pensar nas hipóteses de trabalho insalubre);
liberdade para assumir as consequências do próprio fracasso.
O que
tudo isso tem a ver com a expressão que ganhou espaço no discurso trabalhista
da década de 1990, no mesmo período em que se pretendeu a extinção da Justiça
do Trabalho, e que retorna agora com vigor e dá título a esse breve ensaio?
O
“negociado sobre o legislado” representa a tentativa neoliberal de eliminar a
proteção das normas fundamentais trabalhistas. Esteve em alta no governo FHC,
com a proposta de alteração do art. 618 da CLT, que acabou arquivado por
pressão social. Agora, retorna à cena em um “enxerto” inserido na MP 680, que
institui o Plano de Proteção ao Emprego. O artigo, incorporado ao projeto que
pretende converter em lei essa famigerada MP, altera a redação do 611 da CLT,
para acrescentar parágrafos que autorizam a prevalência de condições
estabelecidas em normas coletivas, em detrimento dos direitos mínimos contidos
na CLT. Trata-se de nova e idêntica tentativa de afastar a aplicação da CLT aos
trabalhadores. Agora, porém, diante de um cenário político hostil e predatório,
que não tem hesitado em aprovar retrocessos sociais.
O
discurso de reforço à autonomia coletiva das vontades não é novo, nem
necessariamente falso. Tem servido, porém, para desviar o foco e,
concretamente, suprimir qualquer possibilidade de pressão do trabalho sobre o
capital. A própria denominação incorporada ao vocabulário trabalhista, de
“negociação” coletiva, conduz à ideia de troca recíproca, quando em realidade
as normas coletivas são fruto da organização e da pressão dos trabalhadores por
condições de trabalho melhores do que as que possuem. Trata-se de um fato
social incorporado pelo Estado, que o precede e supera. Capital e trabalho não negociam,
travam embates para fixar limites a essa troca objetivamente desigual. E nesse
embate, o trabalho está em desvantagem, razão da necessidade de organização
coletiva. Sem essa organização, dificilmente há melhoria real das condições de
vida dos trabalhadores. Basta olhar a história. Daí porque é indiscutível a
importância de valorizar e garantir condições reais de pressão aos sindicatos.
Para isso, porém, não é necessário dar às normas coletivas força maior do que
detém a legislação social. Ao contrário, ter a CLT, ao lado da Constituição e
das normas internacionais de proteção ao trabalho, como parâmetro mínimo
civilizatório, é a condição para que os sindicatos não sofram pressão inversa e
acabem por chancelar a perda de direitos. Então, se o objetivo realmente é o de
valorizar a autonomia coletiva, basta reconhecer eficácia ao inciso I do artigo
7º da Constituição, que garante proteção contra a despedida. Algo, aliás, já
reconhecido em Convenções como a 87 e a 98 da OIT, em relação a todos aqueles
que exercem atividade sindical e que tem sido sistematicamente desrespeitado no
Brasil. Se o objetivo é valorizar a autonomia coletiva, basta reconhecer (de verdade)
ultratividade às normas mais benéficas, incorporando-as aos contratos de
trabalho. Mas é aí que a ideologia da autonomia moderna entra em ação. A ideia
de que somos livres para negociar, especialmente quando representados por um
sindicato, anestesia a realidade de que em um contexto capitalista essa
liberdade, quando efetivamente exercida, enfrenta severas restrições.
A sedução
do discurso da autonomia coletiva das vontades não resiste, pois, a qualquer
exame concreto. Recentemente, os servidores públicos federais, detentores de
garantia de emprego e devidamente representados pelo sindicato, foram
compelidos a dar fim ao movimento paredista, após a notícia de que teriam seus
salários cortados. Em Porto Alegre, trabalhadores militantes da CARRIS, foram
despedidos sob alegação de falta grave após intensa atuação sindical em defesa
da categoria. Pois bem, se mesmo a garantia contra a despedida não impede a
pressão do capital sobre o trabalho, será mesmo coerente crer que a autonomia
coletiva possa ser exercida em uma realidade ainda mais precária, pela ausência
dessa garantia, como é a da grande maioria das categorias de trabalhadores
brasileiros? Será mesmo razoável entender que colocar a norma coletiva acima
dos direitos mínimos previstos na CLT poderá constituir, sob qualquer
perspectiva, algo benéfico aos trabalhadores?
O que se
pretende então, sob o discurso de fortalecer os sindicatos dando-lhes
autonomia, é retirar dos trabalhadores os direitos mínimos que foram arduamente
conquistados ao longo de mais de um século. E, com isso, retirar dos sindicatos
os parâmetros de luta, submetendo-os a uma “negociação” sem limites com o
capital.
É preciso
perceber com clareza: nada na atuação dos entes coletivos se perde ou minimiza,
em razão da proteção legal. Ao contrário, o parâmetro mínimo estabelecido na
legislação trabalhista é o ponto de partida para qualquer espécie de
“negociação”. A proposta, portanto, é de desmanche da legislação social. Nada
de novo, em um quadro de franco e agressivo retrocesso, como o que estamos
enfrentando neste ano de 2015.
Hoje é um
dia de luto para o direito do trabalho. O projeto que pretende a instauração do
“negociado sobre o legislado” foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos
Deputados. Segue agora para o plenário. É preciso mobilização, sobretudo das
entidades de classe que representam os trabalhadores brasileiros, para que o
projeto seja definitivamente rejeitado. Estamos, uma vez mais, a um passo da
institucionalização da barbárie.
(*) Valdete Souto Severo é
juíza do Trabalho do TRT da 4ª Região, Mestre em Direitos Fundamentais, pela
Pontifícia Universidade Católica - PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho
pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e
RENAPEDTS - Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e
Previdência Social. Diretora da FEMARGS - Fundação Escola da Magistratura do Trabalho
do RS.
RESISTÊNCIA
Negociado sobre Legislado, NÃO.
Entidades se mobilizam contra projeto aprovado na Câmara e se reúnem no Senado Federal, em 5 de outubro de 2015, no plenário da CDH, 09:00. Todos estão convidados.
RESISTÊNCIA
Negociado sobre Legislado, NÃO.
Entidades se mobilizam contra projeto aprovado na Câmara e se reúnem no Senado Federal, em 5 de outubro de 2015, no plenário da CDH, 09:00. Todos estão convidados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário