“O que está em disputa é quem
vai pagar a conta: o pobre ou o rico”
Para economista,
solução para crise não é "destruir direitos", mas tornar tributo mais
justo
Não é momento para ajuste
fiscal no Brasil, defende o economista Pedro Paulo Zahluth Bastos,
professor da Universidade de Campinas (Unicamp) e signatário de manifestos
tanto a favor da candidatura à reeleição da presidenta Dilma Rousseff,
em novembro do ano passado, quanto contra a guinada do Governo em direção à
austeridade, em março. Em meio aos esforços do Governo para acertar as contas e
a pressões de todos os lados para mudanças nas garantias sociais da Constituição
de 1988, Bastos enxerga a crise como um momento para definir a nação: "vai
ser cada um por si e os ricos não terão nenhum tipo de responsabilidade com os
mais pobres ou eles serão forçados, por conta das pressões democráticas, a
assumir e arcar com as responsabilidade e financiamento da infraestrutura que
eles também utilizam?".
Na
entrevista abaixo, o autor do ensaio Austeridade para quem?
diz que, no momento, "o que está em disputa é quem vai pagar a conta.
Pergunta. Qual a
parcela de culpa da Constituição de 1988 na atual crise do Brasil?
Resposta. É
extremamente injusto eliminar ou reduzir direitos sociais que foram consagrados
no momento da democratização, quando se pretendia fundar uma nova República,
que tinha por objetivo ampliar a oferta e a qualidade dos serviços públicos, de
maneira a construir um Estado de bem-estar social e uma sociedade mais
civilizada no Brasil. Dizer que esse projeto não cabe no tamanho da economia
brasileira não é verdade, pois esse projeto surgiu nos países desenvolvidos num
momento em que eles tinham uma renda muito semelhante ao que o Brasil tem hoje,
na década de 1950. O que não cabe na economia brasileira é a estrutura
tributária do país.
P. Se a
Constituição não faz parte do problema, por que tantos economistas apontam
necessidade de mudanças?
R. A
Constituição sempre recebeu um conjunto de críticas, sobretudo de empresários e
de representantes políticos de empresários. Ela consagra um conjunto de
direitos sociais e protege aposentadorias e pensões, assim como direitos
trabalhistas. O argumento dos empresários é que isso é muito custoso, tanto a
mão-de-obra quanto os custos de contratação. Na verdade, temos no país uma
estrutura tributária extremamente regressiva. Um estudo recente da Receita
Federal avalia o pagamento dos impostos por faixa de renda à luz do que o
[economista francês] Thomas
Piketty tinha solicitado quando estava preparando o livro [O Capital no século XXI]. E
esses dados mostram que os mais ricos pagam proporcionalmente muito menos
impostos que os mais pobres. Além disso, entre 14.000 e 147.000 famílias
controlam o grosso da dívida pública brasileira, o que implica uma
transferência de 8% do PIB
para essas famílias. Os argumentos relativos à Constituição são de cunho
distributivo e envolvem a tentativa de baratear os custos do trabalho e dos
impostos de maneira a aumentar a renda disponível daqueles que já são mais
ricos. Sendo que a maior parte deles recebe mais do Estado na forma de
pagamento de juros do que pagam na forma de impostos.
É extremamente injusto eliminar ou reduzir
direitos sociais que foram consagrados no momento da democratização
P. Basta
alterar a dinâmica tributária para essa estrutura prevista na Constituição
funcionar?
R. Isso
depende do crescimento econômico também. Em 2012, quando a economia ainda
estava crescendo em torno de 3%, muitos economistas diziam que o Brasil tinha
um superávit fiscal estrutural. E desde 2004 o Governo brasileiro reduz
impostos, com um conjunto de renúncias tributárias e de alíquotas. O volume de
impostos aumenta por causa do crescimento econômico — a carga tributária
brasileira é muito elástica ao ciclo econômico, por ser concentrada em impostos
indiretos [embutidos em produtos, como tevê ou geladeira]. O problema fiscal
ocorre no Brasil em momentos de desaceleração cíclica. Num momento como este, o
ideal seria usar a crise não para destruir os direitos sociais, mas usá-la para
mudar a estrutura tributária para torná-la mais progressiva e justa.
P. É
possível fazer isso no atual momento político do país?
R. Se não
for possível, que pelo menos se elimine o conjunto de renúncias fiscais que
foram ampliadas nos últimos 12 anos, até a economia crescer. A aposentadoria
para o servidor público já foi operada de acordo com a totalidade do salário.
Como os servidores públicos recebiam menos que os privados para uma mesma
qualificação, o Governo, numa tentativa de atrair pessoas mais qualificadas,
compensava com a garantia de uma aposentadoria [no valor] perto do último
salário. Mas isso já acabou. Houve uma reforma em 2003 e a regulamentação em
2012. Agora as pessoas querem aumentar a aposentadoria para 75 anos, mas o
conjunto dos mais pobres no Brasil não vive 75 anos. Se são eles que pagam a
maior parte da proporção de sua renda com impostos, ainda por cima vão perder o
direito da aposentadoria? Se tem um problema fiscal, vamos resolver com
justiça, eliminando injustiças que são claras. Não estou falando em forçar os
ricos a pagarem mais do que já pagam — ou não pagam, porque pagam muito pouco,
considerando o recebimento de juros da dívida pública. É criar uma estrutura
tributário progressiva.
P. De forma
prática, quais seriam as alternativas para tornar o sistema tributário mais
justo?
R. Por
exemplo: uma alíquota de imposto de renda maior para faixas acima, digamos, de
5.000 reais ou 10.000 reais. Só que isso não vai ajudar muita coisa se não for
regulamentado o imposto sobre pessoa jurídica, porque ele permite que o sujeito
crie uma empresa e não pague imposto, que pague ISS [Imposto Sobre Serviços],
muito pouco. O fundamental seria reinstituir a cobrança de pagamentos de lucros
e dividendos para os impostos distribuídos nas empresas para seus acionistas.
Outras medidas que são comuns nos países desenvolvidos: uma alíquota maior para
a herança, para não carregar de uma geração para a outra, excessivamente, as
diferenças econômicas constituídas nas gerações anteriores, de maneira a não
criar castas. Outra coisa que nunca foi realizada no Brasil: impostos mais
progressivos para o patrimônio rural em larga escala, porque latifundiário não
paga imposto no Brasil. O mesmo vale para o grande patrimônio urbano ou grandes
fortunas. Inclusive, é projeto do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso. Há um conjunto de alterações na estrutura
tributária que implicam simplesmente em torná-la justa.
P. Não há
nada que demande atualização na Constituição?
R. É
possível mudar a Constituição no sentido de torná-la mais justa, não mais
injusta. O argumento conservador diz que uma estrutura mais desigual é mais
eficiente. Mas isso não é verdade. Em todos os países onde um conjunto de
reformas tornou a estrutura tributária e o gasto público mais desigual a partir
da década de 1980 coincidiu com uma redução do crescimento econômico e com
grande ampliação de fortunas entesouradas [acumuladas], mas não necessariamente
investidas. Porque os mais pobres e o Estado costumam gastar tudo que recebem.
Então, o fluxo de renda que vai para eles acaba reestimulando a economia, num
fluxo circular, e se multiplica por outros gastos. Se o grosso dessa riqueza
vai para os ricos, que já satisfizeram suas necessidades essenciais há muito
tempo, uma parte importante vai para o entesouramento, e isso tende a implicar
um aumento da poupança financeira, sem o investimento. As economias passam a
crescer menos. Sempre que os Estados têm problema de realização de gastos
porque os ricos não pagam tanto quanto podem ou acumulam muitos recursos,
normalmente há baixo crescimento. Porque o Estado é subfinanciado. A estrutura
tributária estimula a desigualdade, e isso não gera mais crescimento.
P. Você é
crítico da aposta do Governo Dilma na austeridade, personalizada pelo ministro da Fazenda,
Joaquim Levy. Mas a mudança de rumo do Governo Dilma no segundo mandato
teria ocorrido para corrigir erros do primeiro mandato. Dilma não errou nos
primeiros quatro anos?
R. O Governo
Dilma errou ao reduzir a parcela do investimento público no PIB. Fez isso para
aumentar os subsídios ao setor privado, considerando que era necessário apoiar
esse setor num momento de grande aumento da concorrência internacional e
deterioração da competitividade, particularmente da indústria. [Tomou a
decisão] Considerando que, ao realizar essa transferência de subsídios, as
empresas iam investir mais. Então o Governo trocou gasto direto na veia da
economia por expectativa de gasto privado apoiado por subsídios públicos.
Acontece que só isso não foi suficiente para levar os empresários a investir,
por causa do ciclo econômico. Essa mudança de mix entre investimento público e subsídio para o
setor privado foi o grande erro do Governo Dilma.
P. Isso foi
o bastante para que o Governo chegasse ao ponto de apresentar
ao Congresso Nacional uma proposta de orçamento deficitária?
R. Há outros
erros: uma excessiva preocupação, que coloco na conta das boas intenções da
presidenta, em reduzir o custo das concessões públicas para a população,
reduzindo a taxa de retorno das concessionárias privadas, principalmente em
portos, saneamento e ferrovias. Muitos dos leilões foram atrasados por causa da
boa intenção da presidenta. Me parece que o Governo não teve tanta agilidade e
isso atrasou a realização de alguns investimentos no momento propício. E o
Governo poderia ter investido ele mesmo. Com a taxa de juros relativamente
baixa que tínhamos, o custo do investimento público não seria tão elevado. Mas
o Governo fez essa opção de substituir o investimento público pelas concessões
privadas. E a maneira como isso foi realizado não foi ideal.
P. Quais dos
componentes da crise
econômica não podem ser atribuídos ao Governo Dilma?
R. O
problema principal foi o excesso de apreciação cambial permitido pelo [então
presidente do Banco Central Henrique] Meirelles durante o Governo Lula.
Quando houve a crise de 2008, o real caiu para 2,50 [dólares]. E o Meirelles
permitiu a apreciação, para 1,60. Por isso, temos uma avalanche de importações
no momento da crise internacional, o que inviabiliza o investimento local. Isso
não é culpa da Dilma, mas do Meirelles. O Governo Dilma tentou desvalorizar o
câmbio, para resolver esse problema. Mas isso traz vários outros problemas,
como o inflacionário. Neste momento, esse processo de ajuste da taxa de câmbio
está concluído, mas olha o tamanho
do problema para o qual ele contribuiu: aumento da inflação e incerteza dos
agentes privados. Não se podia ter tanta volatilidade.
P. E o
ajuste do Governo, está sendo bem feito?
R. O ajuste
tinha de envolver justiça social. Não dá para mandar os mais pobres pagarem. A
CPMF, apesar de ser um imposto regressivo, é boa para avaliar a sonegação
fiscal — por isso, apesar de ter um custo baixo [a alíquota proposta é de
0,2%], os empresários e políticos não querem. Mas não é o melhor momento para
fazer ajuste. Com forte desaceleração cíclica, se o Governo tenta poupar, ele
já não consegue. Os agentes econômicos também estão poupando. Se o Governo diz
que vai ocorrer um ajuste forte, o medo dos agentes de gastar aumenta. Isso
gera um ciclo vicioso.
P. Mas o
ministro Joaquim Levy
disse que o dinheiro acabou.
R. O
dinheiro não acabou. O ajuste que foi feito está levando ao aumento da dívida
pública. Eles jogaram a economia num escorregador liso. As receitas estão
caindo muito, então o ajuste é contraproducente. Como não tem dinheiro se o
Governo está aumentando a dívida? O gasto público e o Estado não podem ser
encarados como uma casa, como um orçamento doméstico, em que a redução do gasto
público necessariamente vai gerar um aumento da poupança pública. Isso depende
da conjuntura. Se a tentativa de o Governo poupar levar o setor privado a
tentar poupar ainda mais, o Governo vai arrecadar menos, porque ele tem impacto
sobre o ciclo. O ajuste fiscal geralmente é feito em momento de expansão.
P. Mas optar
por seguir gastando da mesma forma não implicaria em déficit?
R. Num
momento de desaceleração, o Governo tem de ter déficit, senão a desaceleração
vira crise. Claro que se cria um espaço para aumentar o endividamento tendo
reduzido a dívida antes. A dívida líquida caiu muito ao longo dos 12 anos [do
Governo PT], 30 pontos percentuais do PIB. Então havia condições de aumentar a
dívida líquida. Não tem de ter sempre superávit, pode variar, desde que se
pense num superávit estrutural, que compense as flutuações cíclicas. Essa é a
diferença entre os economistas pós e antes de [o economista John Maynard]
Keynes. Ele mostrou que a grande depressão, na década de 1930, resultou do fato
que os Estados tentavam executar o orçamento público como se fosse um orçamento
doméstico. Isso provocou um forte aguçamento da recessão mundial. É algo que
sempre havia ocorrido, mas, graças à integração financeira internacional,
ocorreu simultaneamente pela primeira vez. Daí surgiu a ideia da política
anticíclica.
P. Ainda é
possível mudar o rumo adotado pelo Governo Dilma?
R. Não é
impossível. O problema é que a decisão de ter começado foi errada. O estrago
feito pelo ajuste fiscal já é muito grande. A economia no ano passado ficou
estagnada, mas cresceu 0,1%. Neste ano, a gente vai decrescer perto de 3%.
Tirar a economia desse fundo do poço é muito mais difícil. A opção conservadora
é não fazer nada. Continuar cortando gasto, a receita continua caindo e
mandamos os mais pobres pagarem. É o cenário contra o qual quero lutar. O que
está em disputa é quem vai pagar a conta: o pobre ou o rico. Mas também pode
acontecer o cenário alternativo que o Bresser-Pereira vem dizendo: daqui a seis
meses, como a taxa de câmbio ficou muito favorável para a exportação, a
economia vai voltar a crescer puxada pela substituição de importações e pela
expansão das exportações, num “milagre exportador”, algo que não depende do
gasto público. O que vai acontecer depende da capacidade de fazer um acordo que
não jogue todo o custo do ajuste nos pobres e da possibilidade de a gente sair
da crise com expansão de exportação.
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