Sebastião Salgado
Recriando a vida no rio Doce
A velocidade da ação
humana na exploração dos recursos naturais provocou grande desequilíbrio
ambiental no vale do rio Doce. Um quadro agora agravado pela tragédia promovida
pelo rompimento da barragem da Samarco em Mariana, com sério comprometimento na
vida do rio Doce e da população que vive em seu entorno.
É um desastre
ambiental sem precedentes, que revolta e nos deixa perplexos. A lama que
escorre pelo leito do rio já soterrou vidas, histórias, e esteriliza a
diversidade ecológica. Sabemos que muitas perdas serão irreparáveis, mas não
podemos deixar a tragédia nos imobilizar.
Evitar que os danos
se multipliquem, responsabilizar todos os envolvidos e acelerar as medidas
compensatórias são apenas os primeiros passos. É necessário ir além, com a
estruturação de um plano que permita a reconstrução do vale, de forma
responsável e comprometida, para assegurar a dignidade na vida de mais de 4
milhões de pessoas que ali residem.
Há quase duas décadas
atuando no vale do rio Doce, com um trabalho de resgate da natureza em uma área
profundamente afetada pela destruição da mata atlântica, o Instituto Terra
defende a proposta de criação de um fundo com volume financeiro significativo,
subsidiado pelos responsáveis pela tragédia, em um modelo que permita gerar recursos
contínuos para projetos ambientais, sociais, econômicos e de geração de emprego
e renda em toda a região da bacia.
O fundo deverá
custear todas as ações compensatórias, exigindo grande comprometimento dos
governos federal, estaduais e municipais envolvidos.
Exigirá também
importante atuação do Ministério Público Federal e dos estaduais de Minas
Gerais e Espírito Santo. Diante do cenário desafiador da recuperação ambiental
exigida, vai ser preciso também um grande compartilhamento de conhecimento e de
tecnologias, ouvindo principalmente a sociedade, universidades, centros de
pesquisa.
Um grande esforço
coletivo pode ser capaz de transformar uma região já deteriorada ambientalmente
em um modelo de reconstrução ecossistêmica, produção de água e desenvolvimento
sustentável.
A constituição, o
controle e a destinação desse fundo também devem ser um trabalho coletivo,
transparente, para evitar desvios em sua função ou mesmo o emprego inadequado
frente às reais necessidades de reabilitação do vale do rio Doce.
Os valores da
compensação necessitam primeiro ser mensurados a partir do levantamento
minucioso e técnico dos danos envolvidos, evitando tanto a aplicação de multas
aleatórias que não tenham como destinação específica a recuperação do vale
quanto a tentação de utilizar esses recursos em programas ou ações que já eram
devidos à população antes da catástrofe.
Precisamos evitar o
varejo desse fundo, pois se trata mais de questão de interesse social e
coletivo do que de políticas de governo. Muito importante é o depósito desses
valores em uma entidade bancária responsável, nos moldes do já existente fundo
especial para a Amazônia, sob custódia do BNDES.
O Instituto Terra
pode somar nesse processo com um programa de recuperação de nascentes, com
técnicas já testadas e reconhecidas pela ANA (Agência Nacional de Águas) e a
ONU-Água. Mais do que nunca precisamos produzir água para reimplantar a vida no
rio Doce.
O processo de
reconstrução ambiental do vale será de longo prazo, e deve estar associado a
outras inúmeras intervenções de resgate social e econômico, feitas por
diferentes atores. Momentos como este devem ser encarados com uma visão mais
ampla, pois permitem a reflexão profunda sobre o modo de vida atual e as saídas
possíveis para um futuro de reconexão com a natureza.
SEBASTIÃO SALGADO, 72, fotógrafo, é
cofundador e vice-presidente do Instituto Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário