GESTÃO POR METAS & RESOLUÇÃO
PREJUDICIAL
A prescrição trabalhista e a
justiça do trabalho
(*) Valdete Severo
A prescrição visa a paz social.
Essa afirmação afigura-se um dogma no ambiente jurídico. Entretanto, não
reflete a realidade. Os reais objetivos dessa restrição dizem com a necessidade
de manutenção do sistema, que é totalmente direcionado a evitar, ao máximo, que
o patrimônio “troque de mãos”. Ocorre que mesmo sob a perspectiva do sistema,
sendo detentor do monopólio da jurisdição, pode até ser razoável que o Estado
permita-se pronunciar a prescrição, mas evidentemente apenas quando o tempo
outorgado ao suposto credor seja adequado, de modo a não impedir o efetivo
exercício do direito. Do contrário, a regra da prescrição implicaria boicote à
própria finalidade do Estado, que ao estabelecer normas de conduta social, deve
pretender obviamente vê-las respeitadas. Se a relação débito-crédito tem logos
privilegiado em um ambiente capitalista, fazer valer as normas que regulam essa
relação deve (para a própria sobrevivência do sistema) ser prioridade do
Estado.
No âmbito dos direitos
fundamentais sociais, essa inversão da própria razão de ser do Estado tem
consequências que podem comprometer a continuidade do sistema. Na medida em que
reconhecemos alguns direitos como fundamentos do Estado, admitimos que a sua
não-realização implicará, ainda que a médio prazo, a ruína desse projeto de
sociedade.
No que tange à prescrição
trabalhista, é interessante observar que a redação original do texto
constitucional não fazia referência alguma a ela. Entretanto, uma emenda
popular apresentada ao “Substitutivo da Comissão de Sistematização às emendas
de Plenário, referente ao Preâmbulo, Título I, Título II e Título III” propôs a
seguinte redação para o artigo 7º: “XXVI - não incidência da prescrição no
curso do contrato de trabalho e até dois anos de sua cessação”. A referida emenda
foi apresentada “com mais de 1 milhão de assinaturas”, “apoiada por todas as
Centrais Sindicais, apoiada pela Contag, e por mais de 100 sindicalistas” e
defendida pelo constituinte Paulo Paim, durante o processo constituinte.
A redação é clara: veda a
prescrição no curso do vínculo de emprego e até dois anos após seu término.
Trata, portanto, de um direito do trabalhador. O objetivo é salvaguardar as
pretensões durante o período de vigência da relação de emprego, em razão da
evidente impossibilidade fática do exercício do direito constitucional de
acesso à justiça. O tiro, porém, saiu pela culatra. O constituinte Virgílio
Galassi, do PDS, manifestou-se sobre a emenda apresentada, referindo que a
possibilidade de arguir a qualquer tempo a lesão perpetrada pelo empregador
“geraria um verdadeiro desencontro no âmbito dos conflitos trabalhistas e
provocaria tumulto na vida das empresas”. Na Comissão de Sistematização, o
Constituinte Gerson Camata, do PMDB, propôs emenda aditiva ao artigo 7º, com a
seguinte redação: “prazo prescricional de cinco anos ...”.
A inversão na lógica inicialmente
proposta por iniciativa popular é evidente. O direito fundamental de não sofrer
prescrição no curso da relação de emprego foi transmutado em restrição ao
direito de petição. A ampliação do prazo, de dois para cinco anos durante a
vigência do vínculo, foi um prêmio consolação, que não alterou o caráter
precarizante e destrutivo da previsão normativa.
Todos sabemos qual foi a redação
finalmente aprovada, alterada pela EC 28/2000, que determinou o cômputo do
prazo prescricional durante a fluência do vínculo, também em relação aos
trabalhadores rurais. Mais um retrocesso histórico.
A reconstrução do processo que
resultou a redação do artigo 7º, XXIX, revela que o golpe, representado pela
utilização de emenda popular proposta em defesa da classe trabalhadora, a fim
de assegurar o direito à incolumidade dos créditos durante o curso da relação
de emprego, para transformá-la em restrição ao direito fundamental de exercer
pretensão, alçando tal restrição (já prevista na CLT) à condição de norma
constitucional.
A intenção do legislador, porém,
não pode constituir um elemento de entrave à compreensão histórica da
Constituição. Enquanto documento vivo, a Constituição, como qualquer outra
norma jurídica, constrói-se e renova-se continuamente, dialogando com a
realidade em que se inscreve. Precisamos, portanto, compreender a Constituição
considerando as mais de duas décadas de avanços e retrocessos desde então
decorridas. Ainda estamos “digerindo” a ordem constitucional, resistindo à ela,
e necessariamente compreendendo-a à luz dos elementos de que hoje dispomos.
A prescrição no campo das
relações de trabalho retira do trabalhador a possibilidade (que se revela única
em um sistema de monopólio da jurisdição) de fazer valer a ordem constitucional
vigente. Em um ambiente de vínculos precários, sem qualquer garantia contra a
despedida, a aplicação de prazo de prescrição durante a relação de emprego
equivale a negar ao trabalhador todo o conjunto de direitos trabalhistas
inscritos na Constituição. Isso significa que sua aplicação deve submeter-se,
de uma parte, à aplicação (integral) de todos os direitos ali garantidos e, de
outra, à uma análise que busque sempre reduzir ao máximo seu âmbito de
incidência.
Essa é a razão pela qual se
justifica a tese de que não pode haver cômputo de prescrição durante um vínculo
de emprego sem garantia real contra a despedida. É também a razão porque
precisamos resistir à aplicação da prescrição intercorrente e à possibilidade
de pronúncia de ofício da prescrição, no âmbito das relações de trabalho. É,
ainda, razão suficiente para resistirmos a decisões precarizantes, como aquela
em que o prazo para exercer pretensão em relação aos créditos do FGTS é
reduzido de 30 para 05 anos.
Em uma perspectiva mais ampla, a
forma como lidamos com a prescrição trabalhista está diretamente relacionada à
própria existência da Justiça do trabalho. Sua função está ameaçada pela gestão
por metas, que estimula o desaparecimento do conflito, em lugar de sua
resolução. O resultado da mais completa eficiência, sob a perspectiva da
quantidade em detrimento da qualidade, será a desnecessidade de uma estrutura
de Poder Judiciário Trabalhista. Nosso sucesso será, portanto, nosso derradeiro
fracasso.
(*) Valdete Souto Severo é juíza
do Trabalho do TRT da 4ª Região, Mestre em Direitos Fundamentais, pela
Pontifícia Universidade Católica - PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho
pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e
RENAPEDTS - Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e
Previdência Social. Diretora da FEMARGS - Fundação Escola da Magistratura do
Trabalho do RS.
Nenhum comentário:
Postar um comentário