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Entrevista da 2ª Rafael Correa
Restauração
conservadora ameaça ciclo progressista
Presidente do Equador diz que esquerda da América
latina pode ser derrotada por direitas que 'superaram aturdimento'
MÔNICA
BERGAMO COLUNISTA DA FOLHA
O presidente do Equador, Rafael Correa, 51, diz que
uma "restauração conservadora" está em marcha na América Latina e que
ela pode "pôr fim a esse ciclo de governos progressistas" no
continente caso eles não estejam "atentos".
"As direitas nacional e internacional já
superaram o aturdimento. Estão claramente articuladas", diz ele.
Correa esteve no Brasil na semana passada para
participar da reunião da Unasul, que reúne países da América do Sul, com os
Brics, integrados por China, Rússia, Brasil, África do Sul e Índia.
Diz que as medidas anunciadas pelos Brics podem
"marcar o início de uma ordem social menos injusta" e que, para os
EUA, a iniciativa "deve ser preocupante".
Defendeu a lei do Equador que regula os meios de
comunicação. E afirmou que pode voltar a se candidatar à reeleição em 2017
--ele está no poder desde 2007 e segue com alta popularidade.
Correa recebeu a Folha em Brasília na
quinta, dia do acidente com o Boeing que matou 298 pessoas na Ucrânia.
Leia, a seguir, um resumo da conversa:
Folha - Há poucas horas um avião caiu na Ucrânia e
ainda não está claro em que condições. Há a suspeita de que tenha sido
derrubado. Como vê a situação na região?
Rafael Correa - É um fato
gravíssimo [a queda do avião]. O que ocorre na Ucrânia é um jogo geopolítico de
grandes potências. Há o interesse da Europa no país, por seus recursos
naturais. Com a Rússia ocorre algo similar. Esperamos que se solucionem os
problemas.
Foi pura coincidência os EUA anunciarem novas
sanções à Rússia bem no dia em que o presidente do país, Vladimir Putin, se
reunia no Brasil com outros líderes dos Brics e da América do Sul?
Não quero elucubrar e tampouco tenho informações a
respeito. Mas o que, sim, se deve ressaltar, é a dupla moral. Sancionam a
Rússia, entre aspas, como se a humanidade tivesse nomeado um árbitro mundial. E
onde estão as sanções por mais de meio século de embargo dos EUA a Cuba? Isso,
sim, rompe todo o direito internacional.
Os EUA ficaram incomodados com a reunião dos Brics?
Se queremos um mundo multipolar, temos que
conformar e aproximar blocos. Foi o que ocorreu agora, entre os Brics e a
Unasul. Para o país hegemônico de um mundo unipolar, deve ser preocupante. Não
me cansei de felicitar a [presidente] Dilma [Rousseff]. A reunião foi uma ideia
brilhante. E pode marcar o início de uma ordem mundial menos injusta.
Mas as medidas anunciadas conseguirão criar de fato
um contraponto à hegemonia dos EUA e seus aliados?
A união faz a força. Os Brics são 40% da população
e 25% da produção mundial. Criaram uma nova arquitetura financeira para não
depender do FMI nem do Banco Mundial. A Unasul deve fazer o mesmo --criando
até, no futuro, a moeda única regional, para sermos menos dependentes dos
centros de poder. Por que um juiz nos EUA pode quebrar a Argentina? Porque por
eles passam todos os pagamentos [do mundo], que podem bloquear. Com um sistema
alternativo, o sistema hegemônico perderia poder.
O senhor fala de moeda única desde 2006. O Banco do
Sul, da Unasul, foi criado em 2007 e não funciona. A integração energética mal
sai do papel.
Há coisas teoricamente impecáveis. Outra coisa é na
prática, quando o tema envolve várias nações. Os Brics atuam há dez anos, são
só cinco países e recém estão executando as coisas. Mas de fato não temos tempo
a perder [na América Latina]. Temos que fazer coisas rapidamente. E não vamos
rápido.
O senhor diz que há presidentes de países no
continente que não têm interesse na integração sul-americana.
Não nos enganemos: a integração da América Latina,
com visão independente, soberana e digna, é uma preocupação para os EUA. E já
há uma restauração conservadora, da direita, das elites de sempre do
continente, para brecar estes processos integracionistas e progressistas no
interior de nossos países. E aí surgem contrapropostas à Unasul, como a Aliança
do Pacífico [integrada por Chile, Peru, México e Colômbia], que é
neoliberalismo puro.
Na última década, a bonança econômica mundial
coincidiu com a chegada ao poder de lideranças de esquerda carismáticas como
Lula e Hugo Chávez. Agora tudo mudou. A economia piorou. As lideranças não são
as mesmas. O modelo não pode estar esgotado?
Começou um novo ciclo na América Latina quando
Chávez chegou ao poder, em 1999, em plena noite liberal. Logo vieram Lula, Evo
Morales na Bolívia, Tabaré Vázquez no Uruguai, Michelle Bachelet no Chile,
Néstor Kirchner na Argentina, a revolução cidadã no Equador. Quem poderia
imaginar, nos anos 90, que esses progressistas chegariam ao poder, quando a
América Latina era puro Fujimori, Collor de Mello, Menem? Foi uma mudança de
época. Mas temos dito: há uma restauração conservadora. A direita nacional e a
internacional já superaram o aturdimento com a debacle do liberalismo e com
nossos governos. Estão claramente articuladas. A direita equatoriana tem
contato com a venezuelana, com a americana, que financia supostas ONGs, não sei
se com a brasileira, tudo para nos combater.
Mas há os problemas reais internos de cada país.
Somos vítimas de nossos próprios êxitos. Olhe os
espetaculares avanços no Brasil, sociais, de redução da pobreza. E veja os
protestos que ocorreram contra Dilma e contra o Partido dos Trabalhadores. Há
uma nova classe média que nos exige cada vez mais. Os meios de comunicação, que
são instrumentos da direita, se aproveitam para dizer que nada vale, que o
passado era melhor. Claramente há uma restauração conservadora que pode pôr fim
a esse ciclo de governos progressistas. Precisamos estar muito atentos.
O senhor já disse que é preciso evitar
personalismos na política. Pode concorrer a uma nova reeleição?
É preciso evitar. Mas, precisamente por essa
restauração conservadora, há uma imensa responsabilidade sobre nossos ombros.
Mas creia-me: como último recurso de nosso projeto está a minha reeleição em
2017.
A questão da imprensa é um tema sensível em
qualquer parte do mundo e também na América Latina. Vários países, inclusive o
Equador, aprovaram leis de regulação da comunicação.
O poder midiático se converteu em um poder
político. Nossos adversários no Equador não são a direita, mas sim seus meios
de comunicação. Nos apresentam como governos autoritários que perseguem
jornalistas patrióticos que só querem dizer a verdade. E isso não é certo.
Enfrentamos dia a dia a manipulação de informação de certos meios de
comunicação em mãos da oligarquia. Sem nenhuma legitimidade democrática, querem
impor a agenda política, querem submeter os governos, caluniam, manipulam. A
sociedade tem que se defender disso.
O PT, que no Brasil lidera essa discussão, diz que
se trata de garantir pluralidade, regulando concessões audiovisuais, o negócio,
mas jamais o seu conteúdo. No Equador a lei não interfere também no conteúdo
quando diz, por exemplo, que uma pessoa não pode ser "desprestigiada"
na imprensa ou sofrer "linchamento midiático"?
Talvez nosso erro tenha sido não utilizar a palavra
acosso em vez de linchamento. Mas está claramente descrito na lei o que é
linchamento. E isso tem que ser regulado. Você não imagina os excessos que
havia na imprensa do Equador. Se o diretor de uma empresa municipal cobrasse
taxa de água de uma rádio, sofria um linchamento até ser tirado do cargo.
O excesso de um lado não pode criar, do outro, um
desequilíbrio? O poder midiático é forte, mas o poder do Estado também o é.
Por isso há escrutínio público, há instâncias, uma
Superintendência de Comunicação [Supercom], todos [os meios de comunicação] têm
direito a defesa. E o que criticam? "Nos obrigaram a retificar
[informações] 82 vezes." Não dizem que não mentiram! Estavam acostumados a
mentir, a não dar direito de resposta, a ter o controle, a que os presidentes
tremessem diante deles. Um projeto político ganhava as eleições, mas eles é que
governavam, legislavam e julgavam. Acabou a festa. Quando lhe convém, a
imprensa se denomina o quarto poder. E todo poder deve ser regulado pela
sociedade, por meio de lei. Imagine-se o poder financeiro sem regulação, o
poder político sem fiscalização. E até o poder religioso: de repente surge uma
religião que permite sacrifícios humanos. E o único poder em que não se pode
tocar é o midiático? Temos que superar esses tabus.
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