23 de fevereiro de
2015, 7h14
O Supremo Tribunal Federal está em
vias de decidir uma questão jurídica histórica, que em 2016 acabará por completar
90 anos. A questão diz respeito à possibilidade do Presidente da República denunciar
tratados internacionais (isto é, desengajar o Brasil de um compromisso
internacionalmente assumido) sem a anuência do Congresso Nacional.
Este problema veio à tona, pela
primeira vez entre nós, em 1926, quando, nos últimos meses do governo Artur
Bernardes, ficou decidido que o país se desligaria da Sociedade (ou Liga) das
Nações. Clóvis Beviláqua, à época, consultor jurídico do Itamaraty, chamado a
se pronunciar, em minucioso parecer de 5 de julho de 1926, entendeu ser
possível ao Poder Executivo denunciar tratados sem o assentimento do
Parlamento, ainda que da vontade deste último tenha aquele necessitado quando
da ratificação do acordo.
Desde então, em decorrência desta tese
altamente favorável ao Poder Executivo e lastimável à consagração da
democracia, o poder de denunciar tratados passou a pertencer com exclusividade
ao Presidente da República. O grande Pontes de Miranda, negando validade à
lição de Beviláqua, lecionara então no sentido de ser “subversivo dos
princípios constitucionais” a denúncia de tratados sem autorização do Congresso
Nacional, de forma que o Presidente da República, do mesmo modo que faz na
ratificação, deveria “apresentar projeto de denúncia, ou denunciar o tratado,
convenção ou acordo ad referendum do Poder
Legislativo”.
Essa questão, já quase centenária,
volta à tona no Brasil em 16 de junho de 1997, quando a Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Central Única dos Trabalhadores
(CUT) ingressam no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) visando obter a declaração de inconstitucionalidade
do Decreto presidencial 2.100, de 20 de dezembro de 1996, que denunciou a
Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho, devidamente aprovada
pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo nº 68/92) e promulgada pelo Poder
Executivo (Decreto nº 1.855/96), e até então em pleno vigor no Brasil.
Na petição inicial, assinada pelos
advogados Marthius Sávio Cavalcante Lobato, José Eymard Loguercio e Ericson
Crivelli, defendeu-se a tese (que entendemos correta) da impossibilidade da
denúncia de tratados internacionais sem o assentimento prévio do Congresso
Nacional, tendo os peticionários argumentado que a Constituição de 1988 (artigo
49, inciso I) “obrigou o governo brasileiro a que toda e qualquer denúncia por
ele intencionada, seja devidamente aprovada pelo Congresso Nacional, sem o que,
estar-se-á violando o referido dispositivo constitucional”.
Referida ADI, de número 1.625/DF, de
relatoria originária do ministro Maurício Corrêa, ainda pende de decisão
definitiva do STF. Os ministros Maurício Corrêa e Carlos Ayres Britto julgaram
a ação procedente, em parte, emprestando ao Decreto Federal 2.100 interpretação
conforme o artigo 49, inciso I da Constituição, para determinar que a denúncia
da Convenção 158 da OIT condiciona-se ao referendo congressual, somente a
partir do que produz sua eficácia.
O então presidente do STF, ministro
Nelson Jobim, em voto-vista, contudo, divergiu do voto do relator para julgar
improcedente o pedido formulado, por entender que o chefe do Poder Executivo,
por representar a União na ordem internacional, pode denunciar tratados sem
anuência do Congresso. O entendimento do ministro Jobim foi no sentido de a
denúncia dos tratados se encontrar tacitamente autorizada no seu ato de
aprovação. Ressaltou, ainda, que embora caiba ao Congresso Nacional a aprovação
dos tratados, por meio de decreto legislativo, sua função, nessa matéria, é de
natureza negativa, eis que não detém o poder para negociar termos e cláusulas
ou assinar, mas apenas evitar a aplicação interna de tais normas. Entendeu, por
fim, que o princípio da harmonia dos poderes “confere predominância” ao chefe
do Poder Executivo, porquanto somente a ele compete o juízo político de
conveniência e oportunidade na admissão do tratado internacional no âmbito
interno (cf. Informativo do STF
421, de março de 2006).
O julgamento foi suspenso, em 29 de
março de 2006, com o pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa. Em 3 de junho
de 2009, o ministro Joaquim Barbosa julgou totalmente procedente a ação direta,
quando, então, pediu vista dos autos a ministra Ellen Gracie (que se aposentou
em 2011). No presente momento (janeiro de 2015) os autos encontram-se no
gabinete da ministra Rosa Weber, ainda sem solução definitiva.
Portanto, o STF terá agora que decidir
se é ou não possível o Presidente da República denunciar tratados sem
autorização do Poder Legislativo. E, para tanto, terão os demais ministros que
ainda não se manifestaram que concordar, basicamente, ou com a tese de Clóvis
Beviláqua ou com a de Pontes de Miranda, e seus respectivos seguidores.
Vejamos, brevemente, cada um desses posicionamentos.
Entendia Beviláqua que a regra
jurídica constitucional (então em vigor) que exigia a manifestação do Congresso
não havia se referido à denúncia , só tendo feito
menção de que necessita aprovação congressual a ratificação. E, se a
Constituição silenciou a respeito, é porque a intervenção do Congresso no
processo de denúncia seria dispensável. Assim, não obstante os dispositivos
constitucionais terem silenciado a respeito da denúncia dos tratados, só se
referindo ao procedimento de formação
dos atos jurídicos internacionais, a faculdade do Poder Executivo denunciar os
tratados que ele próprio celebrou, dar-se-ia em virtude da combinação dos
preceitos constitucionais que conferem as atribuições dos Poderes em que se
divide a soberania nacional.
Já para Pontes de Miranda, que
lecionava ao tempo da Constituição de 1967, com a Emenda 1 de 1969, a denúncia
de tratados pelo Poder Executivo, sem autorização do Parlamento, viola o texto
constitucional em seus princípios. Dessa forma, do mesmo modo que o Presidente
da República necessita da aprovação do Congresso, dando a ele carta branca para
ratificar o tratado, mais consentâneo com o espírito da Constituição seria que
o mesmo procedimento fosse aplicado em relação à denúncia, donde não se poderia
falar então em denúncia de tratado por ato próprio do chefe do Poder Executivo.
Manifestamos esse entendimento, com vários outros argumentos técnicos, em nosso
Curso
de Direito Internacional Público (9ª ed., ed. Revista
dos Tribunais, 2015, pp. 351-357).
Segundo entendemos, a participação do
Parlamento no procedimento de denúncia faz com que se respeite o paralelismo
que deve existir entre os atos jurídicos de assunção dos compromissos
internacionais com aqueles relativos à sua extinção. É evidente, cremos, que um
jurista de expressão como Clóvis Beviláqua não se manifestaria contrariamente a
esta tese se tivesse emitido o seu parecer à égide da Constituição de 1988, que
fixa claramente a regra da participação ativa do Parlamento no processo de
conclusão dos atos internacionais. Trata-se, agora, de observar o comando
constitucional (art. 1o , parágrafo único) segundo o qual todo o poder emana do
povo , incluindo-se nesta categoria também o poder de
denunciar tratados. Com isto se modifica, para a consagração efetiva da
democracia, uma prática internacional obscura, que até os dias atuais vem sendo
freqüentemente seguida em diversos países, entre os quais figura o Brasil.
Espera-se que a referida ADI 1.625/DF
seja definitivamente julgada de acordo com a tese de Pontes de Miranda, a qual
também reputamos como correta à luz do texto constitucional de 1988. O que se
espera é que o STF decida corretamente, impedindo que o Poder Executivo, a seu
alvedrio e a seu talante, denuncie tratados internacionais sem o assentimento
do Congresso Nacional, que, em última análise, representa a vontade de todo o
povo brasileiro. Assim, é de se perguntar: será que o povo brasileiro quer ver
o país desengajado de tratados internacionais importantes para a proteção de
direitos no plano interno e, também, para o desenvolvimento nacional? Será que
o povo aceita a denúncia de tratados por meio da vontade discricionária do
Presidente da República? Para nós, enfim, deixar ao presidente da República a
faculdade de denunciar tratados internacionais, principalmente os de proteção
dos direitos humanos, como é o caso das convenções da OIT, é fazer tábula rasa
da vontade popular e dos princípios democráticos do texto constitucional de
1988.
Valerio Mazzuoli é
pós-doutor pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito
Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Revista Consultor Jurídico , 23 de
fevereiro de 2015, 7h14
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